DISSERAM QUE

disseram que era uma poesia prosaica
mas bem mais protéica
com arroz, feijão, bife e batata


disseram que era uma poesia sem métrica
mas bem menos cansada
que aquela velha poesia patética

disseram que era uma poesia despreocupada
mas bem mais feliz
escrevendo sobre o nada

disseram que era uma poesia laissez-faire
mas bem mais democrática
escrevendo quem quiser

disseram-me pateta
mas ainda hei de provar que sou
um grande poeta

 

 

 

 

 

 

ELE & ELA

José e suas olheiras
no botequim caído
tomando fortes goles de solidão

longe do seu trabalho pesado
longe de sua mulher
chata
gorda
crente

Chorava
sem lágrimas, sem porquê

Até que viu
cambaleou
sinuosas suaves aveludadas
pernas

— Sou Michelly, tô sozinha.

Com amor
levou-a
com amor
entregou-se
com amor
viu
que ela
era ele

E agora, José?

 

 

 

 

 

 

POETA É A PUTA QUE O PARIU

sou poeta de quinta categoria
não fiquei no claustro
limando a escrita

fiz minha poesia nas esquinas
vendo as putas sendo pagas
por homens sem amor
minha poesia não tem rima
é a vida torta
um horror

 

 

 

 

 

 

MARIA

1.
Eu gosto é de dar. Dar amor, dar a buceta. É dando que se recebe. Mas nem sou capitalista, dou por altruísmo, dou como a Geni. Sou bonita, sou inteligente e não sei por que haveria de guardar meu corpo contra os homens: La dolce vita está em meus lábios, os de cima e os de baixo. Não sou mulher-objeto. Objeto é uma coisa morta, um corpo morto que se guarda para a castidade, para a religião, para o casamento, para os olhares de aprovação de velhos valores. Não sou mulher-objeto, pois sou muito viva, meu corpo pulsa e vibra.



2.
Cresci sob o ensino do sagrado. Minha mãe me arrastava às missas. Mas geniosa, fui ler mais que minha mãe e estudei as palavras. Aprendi que sagrado, sacro, sacralizar, é oferecer-se em sacrifício e isto me pareceu totalmente cruel. O deus da Bíblia era cruel. Minha mãe, desde aí, não me reconheceu mais.
Ouvi as tias aconselhando as primas sobre ser moça certa. Aprendi que o corpo de menina-moça era tabu. Era sagrado e tabu. E me parecia que as pessoas viviam tristes com isso, mas elas não sabiam.



3.
Na escola não pegava os livros que a professora indicava. Fui salva por um escritor com a sentença "Somente as coisas sagradas devem ser tocadas". Este escritor que me retirou das profundezas da minha terra & família com seu De Profundis foi condenado à prisão por ato imoral. Eu também estava condenada, mas a ser livre.



4.
Doce fonte no jardim amanhecido

Onde estão os teus pássaros

Que bicam as tuas águas

Em amor, fome e libido?



(...)

Na manhã escolhida

Os pássaros, delicados e brancos

Em doce pranto de alegria desconhecida

Beberam de meus jorros

Despertaram-me a vida



5.
Como mulher estava dessacralizada, estava naturalizada, corporificada na natureza

como gaivota que voa e sente fome.



6.
Já não havia mais homens para mim naquela cidade. Comi todos (mas eles diziam me comer). E de todos os paus que bebi nenhum vertia amor de suas entranhas: aqueles homens separavam sexo de amor. Já eu, amei em cada um o instante de nossos corpos.

Houve até um que me queria amor, com flores e galanteio, mas me dizia, sou seu dono, te pertenço. Aqueles homens me queriam menor, queriam me completar, queriam me comer, me pertencer. Apenas que: sou mulher despertencida.



7.
A pequena cidade, com suas cadeiras na calçada, suas conversas de portão e sua preguiça, vivia em burburinho.


— Vê o que andam falando? Você é pornográfica, Maria!

— Pai, eles não sabem o que falam. Pornográfico é não amar.

— Quero que saia desta casa!

Mãe baixou os olhos.



8.
Como anjo exilado fui levar minha luz a São Paulo. Completamente desconhecida. Sem olhos tortos, sem cochichos, estava solitária e feliz na multidão de Sampa.
À noite, já saí pra caçar aquele que receberia a mais bela novidade da cidade. Aquele que possuiria de meus êxtases, de meu intenso amor, de minha cruel piedade pelos homens.

No charmoso bar o jazz soava triste e provocante junto aos meus lábios vermelhos de musa impassível sozinha com seu drinque. Ele, com amigos e seu sapato italiano. Como fera dominadora e mentindo a todos a origem interiorana fui até a mesa e ofereci companhia. Espantados mas logo encantados com beleza & ousadia.
Fim da noite:

— Você quer?

— Eu quero — sou exata (não que eu descartasse ser a rainha de todos os homens aquela noite).



9.
O pescador que ante o cardume

Se vê entontecido pela pérola

De minha ostra aberta, reluzente:

— Nademos em nossas águas confluentes

Bebas do meu perfume

E esperes o teu doce deleite

Até que minha pérola no fundo do mar

Enfim se deite



10.
Um dia conheci José. Para minha surpresa José era do interior como eu. Foi para a capital com o mesmo desejo: conhecer Outros. E foi assim no desejo de conhecer o que havia de outros de nós em outro lugar foi que um e outro do mesmo lugar num lugar diferente descobrimos o amor, bregamente o mais profundo e prosaico amor. Estava completa a minha busca.



11.
Mesmo com o amor sobre terra e a paz sob as águas que eu vivia com José os frutos já não eram mais proibidos: poderia se comer de cada tipo, um diferente por dia. Ricardo até me chamava de Lilith.

 

 

 

©aktor 

 

WISLAWA

Wislawa aos 82 anos era virgem. Era cadastrada nas redes sociais como uma jovem bonita de ar cool, vinte e quatro anos, inteligente, com quase dois mil amigos no Facebook. Começou a fazer sucesso com suas postagens irônicas e inteligentes até que começou a chamar atenção da crítica com seus poemas. No entanto, recusava todos os convites, pois afinal, era Sophie, 24 anos, linda, prodigiosa e envolta em todo um mistério. Apesar dos quase dois mil amigos, Wislawa nutria um grande desprezo pela sociedade. Vivia para seus poemas e para seus gatos, pois acreditava que, apesar de todo egoísmo do ser humano, se vive para o outro. Mas o outro necessariamente não é um ser humano, pode ser um gato ou um poema. 


Descobriu a epifania lendo seus poemas para seus gatos, treze no total. Sentia-se nesses momentos a Clarice Lispector, uma escritora sempre muito complicada.

 
Vivia num vilarejo abandonado cheio de velhos que odiava, mas assim era melhor, velhos estão sempre em casa e assim não era visitada. Não gostava de velhos, gostava dos jovens do seu facebook. Chamava-os carinhosamente de "meus beatniks" quando conversava com um dos seus gato, o Godot, isso quando ele aparecia.


Os vizinhos a achavam estranha, aquela velha reclusa com treze gatos que parecia não ter ninguém e que só recebia visita uma vez por ano de uma travesti de olhos tristes.


E ainda tinha um hábito que assustava quem passava: todo dia à meia-noite punha-se à sacada para fumar um cigarro na noite gélida da Polônia. Olhar a estrelas e fumar o cigarro fazia Wislawa se sentir viva, se sentir corpo.


Era tão sóbria e feliz em sua vida, mas às vezes chorava quando pensava em seus pais. Wislawa os viu morrer sem dizer a eles que nunca acreditou em Deus e que não gostava dos homens.

 

 

 

 

PEQUENA HISTÓRIA DE (DES)AMOR


Sem ser saber se seria feliz para sempre Luís nasceu, e Luís sequer chorou. Era silêncio de álcool no centro cirúrgico. Na juventude desenvolvera uma patologia: sentia-se solitário e nascia-lhe uma espinha. Sua mãe via aquela cara e mandava-lhe beber, ver moças. Bebia tanto e voltava chorando como um bebê. Sua mãe não o compreendia.


Marco Aurélio era bem casado, dois filhos lindos. Era um desalmado. Luís era apaixonado por Marco Aurélio. Este o fazia de boneca inflável e um dia nunca mais telefonou... Fim.


Luís tentou academia faculdade TV boite gay drogas igreja evangélica yoga esportes banda de rock, só sobrou um nó no peito. Seus amigos davam conselhos, sua mãe fazia intermináveis bolos de chocolate, seu pai dizia era falta de reio, seu psiquiatra diagnosticava, era depressão. Seu psiquiatra não o compreendia.


Com o tempo aprendeu a cuidar das espinhas com Avon. Fumava.


Era uma vez Luís ajeitou-se na vida. Ganhava dinheiro e fazia sucesso escrevendo histórias de amor. Histórias bem sucedidas de amor.


Adônis sorri seus olhos azuis enquanto Luís autografa seu livro predileto. Depois, Adônis não compreendia o que Luís escrevia. É a vez.

 

 

 

 

 

 

Bruno Latorre. Nascido em 1989, é do interior de São Paulo, mas não gosta disso. Planeja ir pra Pauliceia desvairada. Fez Letras para sala de aula, mas descobriu que quer Tradução. Escreve no Insustentáveis Levezas. No mais, observa a vida pela internet e sabe que ainda tem que enfrentar muita letra pela frente.