Autonomia

 

Não há dinheiro que pague essa amora usada como batom na boca da minha memória.

 

 

 

 

 

 

Lady Prisantempo

 

Minha prisão de caixas cor-de-rosa cheias de chocolate.

Minha paixão por lenços cor-de-abóbora e laços bem atados.

Suave é a noite... No natal: bela e insustentável.

 

.                                .                              .

 

A Prisantempo é uma dama muito recatada (Lucy de Prisantempo) e sofre

a ilusão de receber um buquê de aprisântempos em sua cela individual

na Prisão Tempo.

Graciosa presa da prisão do tempo, acorrentada ao tempo presente,

coitada!...:

seus braços não alcançam o futuro.

E as flores nunca chegarão.

Passado não é verdade.

É.

 

Ficção.

 

 

 

 

 

 

O palhaço

 

para Lucy de Prisantempo, minha namorada

 

Quarta-feira de cinzas qualquer quarta-feira.

Arlindo andava. Perâmbulo.

De um ângulo de 180º mais uns quatro incertos passos.

Ia ao encontro do ar frio que lhe sabotava o peito.

De mau sempre com a vida, elegantemente bem trajado.

Traçava sempre o mesmo terno e o mesmo caminho.

Garboso, evitava olhar o céu e saber que estava abaixo.

(A sombra deste sob a terra é que lhe enchia os olhos.)

Supimpa, subiu as escadas da catedral... Saltou abaixo:

Uma distância de 5 ou 6 degraus.

Oui et non!

Não morreu o Arlindo: rolou escada abaixo tentando se livrar do palco.

"Ego sto ad ostium et pulso". (Apocalipse, Juiz de Fora)

 

 

 

 

 

 

microponto

 

A explicação definitiva e resumida das mortes por causa

naturalis dos

meus amantes:

Tontas vezes eu me sinto a mulher elástico num espaço

mínimo. Elástico também encolhe? Nunca percebi. O que

fiz o mais das vezes foi me esticar,

aleatoriamente e sem fim,

me espreguiçando numa cama que,

além do fim e além do cabo,

é o mundo.

O único meu.

"Você, certamente e vez por outra, será convidado a se

retirar da

minha vida por estar ocupando muito espaço. Não ligue.

Sou uma mulher elástico.

Preciso me esticar."

Foi esse o bilhete que eu deixei colado na porta da minha

casa antes que ele batesse a campainha.

Bateu.

Meu agente atendeu.

Mandou aquele homem que parecia enorme ir embora.

Chorando.

Depois, com justa e mesma causa,

mandei meu agente ir embora.

Chorando.

Mas continuo elástica: as lágrimas não me encolhem.

Sou à prova d'água.

Essa é a explicação para o fato de eu não querer namorar

[homens pequenos.

Eu não encolho.

E preciso me esticar segundo a minha natureza.

Por isso não cabe ninguém na minha cama além de mim

[pela manhã.

 

 

 

 

 

 

Escapulário

 

a minha mão escorre qual água lenta no dorso desse animal

outrora somente selvagem

agora selvagem e sagrado

um animal belíssimo

sangue puro como a água limpa que ele faz chorar em mim

o sal das lágrimas me provoca sede

de mais sangue

mesmo que seja outro e não tão puro...

(a Água que chora lágrimas nos meus olhos também provoca saudade na Rosa. as colunas sociais dão notícia de um recente casal: a Rosa e a Mágoa. em priscas eras, eram outras duas: a Rosa e a Água. mas a Água — forte, universal e nômade — dançava com todas as flores, cores e coisas. a Rosa, precária, regionalmente localizada, existindo por fidelidade atávica e atada à sua própria terra, com raízes necessariamente fixas, não aguentou o que, para ela, eram traições e se casou com a Mágoa que, afinal, era só dela, da Rosa. a Mágoa, de semelhança com a primeira, só a aliteração, que fora, aliás, silenciada. a Água ficou triste mas, assim mesmo, continuou seu carnaval de confete e serpentina para cima de todas as coisas. e, vez por outra, inclusive, para cima da Rosa. a Mágoa, com ciúmes, aumentava de tamanho para defender seu amor pela Rosa. então, a Rosa, por não suportar nem ser infiel, nem o peso da Mágoa, desfolhava as suas pétalas. que até hoje morrem separadas e a seco. uma a uma. solteiras. sem ninguém para lhes ouvir as histórias de solidão.)

... no vão livre que se constrói enquanto penso tudo isso, a minha mão continua a escorrer qual água benta no dorso do meu marido

a minha mão-fonte: que nunca seque!

ou tinta, ou lágrima: eis minha sentença.

e eis minha oração no cárcere:

"Dai-me: um pouco de texto e escapo.

Dai-me uma só palavra e estarei a salvo".

 

 

 

 

 

 

água para afogar narciso

 

para Alfonsina Storni

 

A última vez que disseram tê-la visto,

ela estava de sombrinha, xale e chapéu,

com um vestido longo, um batom escuro, e entrava na água.

 

A última vez que a vi,

sem sombra de dúvida,

ela falava muito. E gostava de mim.

Eu disse: "sem sombra de dúvida".

 

Agora só a vejo nessa imagem que é dada a todos:

sempre a mesma versão,

silenciosa,

a entrar na água,

a barra da saia já molhada.

Dos seus pés nada se via

a não ser a espuma das ondas que os cobria.

 

A última vez que a vi, percebi,

entre surpreendida e atraiçoada,

que ela estava no espelho.

E falava comigo.

 

O silêncio da outra imagem não é o que ela queria.

 

 

 

 

 

 

Uma ciranda

 

Com quantos versos se faz um amor?

E feito, por quantos poemas se pode trocá-lo?

Essa é a questão de economia poética que persegue os

[poetas desde hoje até Camões.

Faço minhas, assim, as palavras de meu ex-poeta preferido.

Mas ninguém me responde do outro lado da linha.

Por mais que eu grite, os meus gritos não saem de dentro

[do poema.

Continuo uma tradição que segue falando sozinha e

observando,

pelas frestas,

padrões e rigores éticos-estéticos

e tentando entender qual a ideologia

de todos os últimos pandemônios do mercado editorial.

Desconfio que um amor não vale um verso.

Nem cem poemas.

Não se pode trocá-lo.

 

 

 

 

 

 

Uma carta – julho de 2003

 

desde Armando Freitas Filho e para Ericson Pires

 

Para o meu pequeno sol muito forte,

Para quê a escrita e tão altas acrobacias? Os acrobatas que me ouçam:

escrever é fundamental. Nem que seja com os corpos no espaço.

"A palavra encurta a distância", eu mesma disse ao abrigo de algum lugar.

("Esse eu sem retorno que vai da página ao coração", ele teria dito).

Então, para se aproximar de alguém, faz-se a palavra. Nomeia-se. Numa tentativa de aprisionamento do signo.

Mas o texto, assim como o corpo, o eficaz, não se deixa dominar.

Produz seus escapes, suas rotas de fuga após a colisão, sua concentração e sua dispersão.

Suas portas de saída.

Um texto é um labirinto e seu segredo.

Um corpo também. Dédalo@olimpo.com.br

Após os enfrentamentos que honramos, não somos deuses. Eis a questão.

A conexão está no nosso corpo e no nosso sangue.

E por um fio.

Terra.

Para quê mesmo tanta acrobacia?

 

 

 

 

 

 

*

 

(Deitada de lado, escuto o barulho da lágrima a cair na palma da minha mão.)

 

A minha casa é a literatura. E se arrebentarem portas e janelas, me visto de  branco para me confundir com a pintura das paredes.

 

E se chuva houver e estragar a pintura, também eu ficarei estragada. Mas ainda não deixarei de ser literatura.

 

O limite da dor não é o limite do texto, nem está nos limites da casa.

 

A minha casa é a literatura. E se arrebentarem portas e janelas, me visto de branco. Para me confundir com a leitura das paredes.

 

 

 

 

 

 

A impossibilidade do poema fica declarada ao pé da página

 

Guardavida y Coração de Pássaro

 

comp-

 

artilharia-

 

m

 

Liberdade Clandestina

 

Awañene[1]

 

Awá[2]

 

Aw[3]

 

 


[1] Língua de gente

[2] Gente

[3] Tradução cultural impossível para o português a partir da língua dos Awá, que vivem no Quilombo Maranhão. Mesmo à força, como o foi no caso dos vocábulos anteriores.

 

 

 

 

 

 

Políticas y publicaciones (sí está lloviendo y es miércoles a la noche)

 

en portuñol, lengua de fronteira y sin pátria

 

Me desarmo leyendo la lluvia lenta que cale gruesa sobre mi tormenta. Y mi tormenta ahora es un libro: solamente un montón de papeles mojados que trago en la mano: todo cuanto tengo. De mi acción muscular.

 

Me desarmo entre las sábanas de los diarios. Como si yo no pudiera (o quisiera) leer: y yo yéndome dormir lo más tranquila. Mientras tanto.

 

Me desarmo entre las sábanas públicas de los blogs y de las calles. Y no, sencillamente, entre las sábanas públicas de mi casa.

 

Me desarmo entre las sábanas de ayer: viernes a la noche y, sincrónico, martes plenamente.

 

Me desarmo (ya sabes: lo mismo de antes: esto es para ser un mantra) entre las sábanas que están en tu planeta. Que, merecidamente, es también el mío.

 

Me desarmo ante las estrellas y entre tus sábanas.

 

Y entre lo más concreto que esto es: lenguaje.

 

Me desdobro entre tus palabras que son mías.

 

Y oculto un frasco de estrellas vivas entre mis faldas y tus sábanas.

 

 

 

 

 

 

entrelínguas, na alfândega

 

let me

 

make myself clear

 

but before

 

let me make myself

 

naked

 

 

(Richmond/Londres, 1995)

 

 

 

 

 

 

 

[imagem ©laurent chéhère]

 

 

 

 

Camila do Valle. Publicou Mecânica da distração: os aprisântempos (Casa 8, 2005), traduzido para o castelhano na Argentina, em 2006, pela poeta Cecilia Pavón e publicado pela Editorial Siesta. Também em 2005, escreveu o livro de contos Roubei e engoli um colar de pérolas chinesas, do qual foi feita uma primeira edição, bilíngue, pela Editorial Eloisa Cartonera, em Buenos Aires. Participa de diversas antologias, entre elas: Otra línea de fuego – 15 poetas brasileñas ultracontemporáneas (organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, traduzida pela poeta Teresa Arijón e publicada, em 2009, na Espanha), da antologia organizada por Cecilia Palmeiro para a publicação mexicana  Línea de fuga (México, 2011) e do Livro de 7 faces (2006, antologia de poetas mineiros contemporâneos, organizado por Elza de Sá Nogueira e Érika Kelmer, publicado pela Editora Nankin e prefaciado por Edimilson de Almeida Pereira). É, também, professora e pesquisadora de Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas e Literatura da Amazônia na UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). Nasceu em Leopoldina, Minas Gerais. Mora, atualmente, no Rio de Janeiro, depois de ter vivido os últimos anos entre Buenos Aires e Amazônia e, antes, em Lisboa e em Londres.