Hoje
de manhã encontrei-me com um ser insuportável, desses que gostariam de
pôr pra baixo até o pico da Bandeira, com seus 2.892 m, conhecido por
sua lendária firmeza. Memorizei a altura exata desse pico, que fica
próximo à minha cidade natal, pois durante anos sonhei em escalá-lo,
antes do aparecimento da artrose nos joelhos. Agora, só por um milagre
do Padre José de Anchieta, aliás, Beato e futuramente Santo, que, ao que
tudo indica, sofria de uma
doença reumática e sentia muitas dores nas
articulações.
Voltando
ao papo sinistro, quando eu
ia começar a ficar meio baqueada, depois de ouvir por alguns
minutos a tal pessoa nefasta, de repente lembrei-me de uma marcha
carnavalesca e, quando dei por mim, já estava cantando a plenos pulmões,
enquanto dirigia defensivamente o meu carrinho sem direção hidráulica:
"Você quis me dar o golpe/mas eu soube me esquivar/já lutei como o Helio
Gracie/já briguei com o Valdemar".
É
preciso ressaltar que eu era bebê quando a marchinha, da autoria de
Antonio Almeida e, se não me engano, de Zé Tinoco, intitulada "Marcha do
golpe", animou o carnaval de 1956. Mas, como marcou um fato histórico,
foi muito importante para a geração de meus pais, no tempo que as
músicas carnavalescas faziam a crônica do cotidiano
brasileiro.
Nas
eleições do tumultuado ano anterior, Juscelino Kubitschek, para alegria
de minha mãe, sua fã incondicional, fora escolhido presidente da
república, vencendo nas urnas os candidatos Juarez Távora, Ademar de
Barros e Plínio Salgado.
A
"Marcha do golpe" foi criada para comemorar a posse de JK, que teve de
vencer uma grande resistência, pois houve a intenção de um golpe ou
coisa parecida. O boxe e o jiu-jítsu estavam na última moda e os grandes
mestres Hélio Gracie e Valdemar Santana no auge da popularidade, o que
justificava plenamente a analogia, no contexto político da
época.
O
encontro com o ser insuportável me fez voltar no tempo. Revi uma cena
antiga que achei muito engraçada e que serviu-me como lição pra vida
toda. Eu era bem pequena, não sei dizer exatamente quantos anos tinha,
mas me lembro bem da visita de
uma senhora à minha casa. Estávamos sozinhas, mamãe e eu. A visitante tinha mais ou
menos a idade de minha mãe, era bonita, vaidosa, usava maquiagem
caprichada. Em resumo, bastante chique para os padrões da época.
Sobretudo, extremamente espaçosa. Ia chegando e pondo defeito em tudo.
Quando terminava de apontar o que considerava como desleixo pessoal da
mamãe, que não pintava o cabelo e nem fazia as unhas, começava a
enumerar uma extensa lista sobre a feiura e o desmazelo da casa. Usando
um leque que cheirava a sândalo, abanava-se cada vez mais rápido,
esticando o braço para mostrar os "horrores" que via. Teias de aranha?
Não perdoava nenhuma. Poeira? Uma indecência. Coisas fora do lugar?
Pornografia pura. Se mamãe lhe servia café, dizia que estava fraco ou
doce demais. Sucos? Considerava-os indigestos. Até defeito na água ela
punha, dizendo que era preciso lavar a vela do filtro de tempos em
tempos, pro líquido não ficar com gosto de barro. Enfim, era assim, a
crítica em pessoa.
Ela
não aceitava a ideia de que mamãe tinha outro tipo de vaidade, mais
sutil e sofisticada, e que era uma pessoa nada convencional. Creio que
nem lhe passava pela cabeça que isso podia existir, obcecada que era com
sua própria aparência.
Como
boa libriana, minha mãe não gostava de confrontos e nem tampouco de
gastar vela com defunto ruim. Fingia concordar com a visitante, rindo
ironicamente, repetindo a cada observação do entojo: "deveras, madame
X?", até que ela desistia das provocações, vendo que daquele mato não
sairia coelho, pois mamãe não lhe opunha resistência, e ia embora com
seus saltinhos barulhentos.
Certa
vez, depois de uma dessas visitas, mamãe fez algo que achei notável: com
um pano de prato começou a se abanar, imitando os movimentos da tal
madame X, cantando alto "Você quis me dar o golpe, mas eu soube me
esquivar", enquanto dançava pela cozinha, rindo muito. E eu, que vivia
tentando entender por que ela não respondia às provocações da madame X,
que quase me matavam de raiva, danei a cantar e a dançar também. Foi a
minha primeira lição sobre a esquiva, movimento fundamental no
boxe.
Mamãe
detestava pessoas fofoqueiras e pegajosas, que queriam forçá-la a uma
intimidade que não desejava ter. Era livre, não gostava de dar
satisfação de seus atos, hoje vejo com clareza como ela se sentia bem
sozinha. Certa vez, bateram palmas na porta (não existia campainha na
casa) e ela, extremamente intuitiva, já sabia quem era e mandou-me dizer
que não estava em casa. Foi esconder-se longe, no fundo do quintal,
agachada atrás do tronco de uma mangueira enorme que tínhamos. Quando
voltei, encontrei-a gargalhando e comecei a rir também, até fazer xixi
na calcinha. Para uma criança, ver a mãe mentir e desfrutar da própria
mentira é algo simplesmente delicioso. Ainda mais quando essa mãe tem
fama de responsável, exigente e severa.
Esses
episódios fizeram-me refletir sobre a importância da esquiva não só no
boxe, mas também na vida. Em alguns casos, como não sair cantando a
"Marcha do golpe"? Não é bom a gente pensar que já enfrentou até o Hélio
Gracie e o Valdemar Santana? E, como na vida a força dos oponentes é
grande demais se comparada à dos adjuvantes, a esquiva representa, sem
dúvida, a melhor forma de "vingança branca" que
conheço.