À minha meia-irmã

 

 

Tenho duas irmãs: uma é irmã por parte de mãe — ela não conheceu o pai, que fugiu assim que soube da gravidez — a outra é a irmã mais nova. Com essa, tenho sérias incomunicações. [Sei que meu pai lamenta profundamente a falta de cumplicidade dos dois filhos, apesar de um e outro gesto de afeto ser mais visível ultimamente, nestes vinte e cinco anos de estranhezas. Outra coisa: no domingo de Dia dos Pais, a minha irmã mais velha disse que não se importava tanto com a data e com o paradeiro alheio do pai. "O que importa é a minha filha ter uma boa mãe. Esse negócio de ficar sofrendo por aí não é comigo, não..."]

Esta minha meia-irmã — jamais a chamei assim — talvez seja o ideal do que gostaria de ser e de como gostaria de ser lembrado quando morrer. Não sei se há alguém mais leal do que ela. Não sei se há alguém que abra tanto o coração pela necessidade dos outros. Esta minha irmã, para você entender melhor, todo dia faz um longo curativo na vizinha doente, uma senhora de sessenta anos com sérios problemas de cicatrização nas pernas, acho que em decorrência de diabetes. A filha (e melhor amiga dela) não consegue fazer o curativo porque passa mal, vomita, não suporta o excesso de pus, sangue, varizes e dores que própria mãe tem. Eu também não suportaria. A minha irmã suporta e nunca a vi reclamando da falta de consideração alheia, nunca ouvi comentar o que faz, nunca fez de sua bondade uma moeda de troca.

Sempre fomos parceiros nas dificuldades financeiras; eu com os meus vícios, sempre gastando e bebendo mais do que tenho, ela com a inabilidade para administrar o próprio dinheiro. Dia desses reclamei com ela por ter intermediado e gasto trinta reais de um pagamento meu sem me avisar. Eu contava com o dinheiro para uma ida a um bar de sexta-feira, mas disse que andava precisando dos trocados porque meu carro tinha estragado e arrebentado com meu orçamento, o que não deixa de ser verdade, mas parcial. Ela quase chorou em desculpas e fiquei ainda mais comovido — e com a consciência pesada — porque os trinta reais foram para ela pagar uma conta de luz atrasada em dois meses.

Estamos trabalhando juntos na Feira do Livro da cidade. Ela se preocupa com as crianças, que, de tempos em tempos, roubam umas revistas minhas — eu não estou muito aí, não —, se preocupa com o meu almoço que esfria e com os livros tortos nos expositores. Chego a ficar constrangido porque sou, enfim, uma criaturinha bem egoísta, sabe — as mulheres que já amei sabem disso — um homem um tanto disperso que só pensa no próprio equilíbrio emocional e que muitas vezes desfaz do sofrimento alheio por achar que ele não é tanto assim — não estou falando aqui da dor física, da dor de ter as pernas impossibilitadas —, um cronista que escreve de si como personagem de uma vida monótona e sem grandes escaladas.

Hoje terminei de pagar as parcelas da minha viagem a Recife. Comentei de passagem com a minha irmã que faltavam, depois do balanço do faturamento do dia, apenas cinquenta reais para quitar a conta — não mencionei qual. Isso era coisa de umas seis da tarde, um pouco antes dela ir pra casa. Como a Feira fechou por volta das oito, a conta se pagou e até sobrou para comprar um garrafão de vinho de treze reais, um vinho ruim, mas honesto, bom para tomar durante as histórias de colonização que ando emergindo.

São dez e meia da noite. Leio o Le Monde, bolsista-mor que sou, e a minha irmã bate à porta. Ela quer saber se preciso de cinquenta reais emprestados, está preocupada com a minha conta, alega saber o que é não ter cinquenta reais ou trinta reais, e essas crianças são ladinas mesmo, são doidas, ela tem medo que eu tenha prejuízo na Feira, as professoras não avisam e as crianças não levam trocados, meu irmão, deus me livre a minha filha roubar revista, tomara que você consiga pagar tudo, tomara que amanhã seja um bom dia também...

Minha irmã, pare de falar assim senão eu vou chorar.

Eu não sei o que é amor, andam fazendo bons dias, e sei que você pertence ao meu coração amplo, fraco e inominado.

 

 

 

 

Lira de Domingo

 

 

São trinta copos de chope / São trinta homens sentados

São trezentos desejos presos / São trinta mil sonhos frustrados

Solibar, de Alceu Valença

 

A minha lira de domingo é hoje, é por esses dias: ando a mesma nota na composição de mim, repito as mesmas histórias de desamor, abro meu relicário inconclusivo aos amigos que já me conhecem muito bem, uma romaria pessoal de vozes internas um bom tanto melancólicas.

Conversando na madrugada com um coração tão entrincheirado quanto o meu — ainda acredito que as mulheres sofrem de um modo ancestral muito mais intenso – percebo um vazio de estrelas habitando quem já sofreu, como se falar de amor fosse jogar no campo do adversário, sabendo do resultado. Parece que perdemos o direito à ingenuidade.

Voltei a jogar futebol depois do fim. Não deveria, na verdade, pois sigo com a velha pubialgia e com o encaminhamento da fisioterapia perdido em algum canto da casa. Mas voltei, com 30% de minha antiga movimentação, me sentindo muito bem por fazer algo que remete ao mais verdadeiro de mim — eu que tenho por mérito mentir profundamente ao meu coração, que chega à Roma sem passar por mim —, apesar de jogar de goleiro a maior parte do tempo por conta das dores.

Lá pela décima cerveja (de cada um), esta mulher familiar me diz coisas sobre meu jogo, sobre intensidade e transposição, o que me faz pensar sobre.

Trago ao futebol algo que não tenho na superfície, uma certa dose de autoconfiança e arrojo, desafio. Encaro o adversário sem lhe dar um nome e vejo o medo em seus corpos, pedindo para não serem vencidos, pedindo clemência, pedindo auxílio na marcação, e aquilo... Aquilo me faz ainda mais forte e impetuoso, e quando perco, volto à carga ainda mais corajoso, e se perco de novo, me levanto, e nada abala minhas convicções.

A minha balada cotidiana é outra coisa. Sou assolado pela dúvida, sou covarde, faço tudo sem saber se é por mim ou pelo crivo alheio, se me apaixono é pela metade, a outra parte protejo do medo, um tipo de amor clandestino, que deixo viajar no porão de algum navio oceânico.

Não é tarde para ser sozinho, mas a cerveja está acabando e o princípio da manhã nos empurra ao sono — palavra que não quer falar —. Hoje é domingo, com todo o seu aroma de calma e solidão.

Vejamos o que as canções têm para dizer.

 
 
 
 
 
[imagens ©silvia pelissero]
 
 
 
 
 
 

Daniel Zanella é cronista e jornalista. Nascido em Curitiba, mora há vinte anos em Araucária. É editor do impresso literário RelevO.