Dentro

 

eu estava dentro do quarto

havia tanto dentro, você dizia

tantas portas e ruas e longes

como dias e horas e versos

apinhados de sede e de ontens

 

eu estava aqui dentro, você me ouvia?

boneca russa em casa de silêncios

antes do verbo, dentro da carne

meus tambores apontavam a direção

 

tão dentro, tão dentro, você repetia

e eu naquele vestido cor de arco-íris e espera

sandálias vermelhas, vontades, pulseiras

poemas espalhados por todo o chão

 

 

 

 

 

 

 

Sob(re) um céu de Dalí

 

éramos aquele tempo

de solidão e espera

e existíamos

porque nos víamos

 

nos acentos da palavra

nos intentos da carne

nos ímpetos da coragem

nos moinhos de vento

no vento, no vento

na valsa, no desassossego

e em versos de deixar-se ir

 

naquele tempo de amor e demora

só tínhamos as cores do outono

em um céu de Dalí

 

 

 

 

 

 

Sua

 

tão sua e ainda assim errante

porque tudo em si movia

mãos, lábios, montes

 

tudo era assim

prelúdio, além, afora

tudo era assim adiante

 

 

 

 

 

 

O olho do furacão

 

primeiro a boca

o círculo das línguas

a fome de um tempo

em que mais humanos

colados, de nós apartados

desaparecêssemos

como que extintos

 

noutras palavras

um tempo de versos forjados

no olho do furacão

 

de toda forma, desaparecíamos

como desaparece uma língua

sem pátria nem vestígios

 

morríamos rotos e estrangeiros

aquela morte de urgências

 

 

 

 

 

 

Solo de piano

 

se você viesse e com sua pressa

derramasse os seus versos

sobre as rendas e apelos

desse meu vestido azul

 

se você viesse e com minhas presas

eu confundisse as suas pernas

e de nós não se soubesse

o começo, a que viemos

eu seria o norte, você o sul

 

mas se em vez de cais

eu fosse solidão e tempestade

pretensa palavra de alento

e você homem ao mar em mim

ainda assim me quisesse

 

se você viesse

mais bolero, menos tango

eu — solo de piano

 

se você viesse

 

 

 

 

 

 

Tear

 

ela tece com fio lilás

as rotas do seu olhar

 

mas quando ele chega

ensaia outras cores

inventa moda

cobre-se de rendas

 

ele anseia por suas saias

e rende-se às suas teias

 

 

 

 

 

 

Pérolas

 

das coisas breves, o peso de pés atados à pedra

que tínhamos aqueles olhos de ir ao fundo

existir entre mergulhos, querer pérolas

 

e como sangrássemos sem ver, permanecíamos

eu ancorada ao seu silêncio

vestida de distâncias e maresia

 

das coisas belas, o gozo da palavra

a morte anunciada naquele estranho dialeto

de corpos e poemas impossíveis:

 

eu quero morrer de amor, ele dizia

seu verso atravessado em minha garganta

 

 

 

 

 

 

Outdoor

 

nenhuma palavra, amor

nem mesmo um fonema

uma letra apressada de outdoor

 

as coisas querem-se coisas:

casa é casa, fome é fome

o poema, o avesso do espanto

um corpo sem vontades

 

tanta palavra, amor

e minha pena-fardo-deusa-de-si

ignora, exaure, exaspera

 

cada verso é um veneno lento

para as minhas brevidades

 

 

 

 

 

 

Vernáculo

 

nunca mais outros olhos

não depois daqueles dias

 

você me pedia

o verso selvagem

e eu a sua língua

uma morte por que viver

 

nunca mais outras sendas

não depois daqueles dias

 

queríamos de nós dois

os risos insustentáveis

e diríamos sim ao peso das horas

que era assim a nossa liturgia:

 

eu cabia em  seu desamparo

você em minha melancolia

 

 

 

 

 

 

Mandrágoras

 

não escrevo ao som de oboés

não me adorna o colar de estrelas

a buganvília vermelha

 

você viu aquela bandeira?

talvez esquecida no sótão

sob o tapete, no fundo falso

lugar-qualquer que não aqui

 

quando vier, amor

desdobre-me céus de ontem

ruas tomadas de gentes

gérberas, clareiras

mas traga outras bandeiras

têmperas cor-de-rosa

lúcidas subversões

 

venha a tempo das luas cheias

de reinventarmos as crenças

que os cães colherão seus  versos

entre raízes de mandrágoras

 

 

 

 

 
 

 

Retratos II

 

há um não-lugar para todas essas coisas

meu mar em fúria, seu chão em sépia

retratos de uma solidão a céu aberto

 

mas disse-me assim:

prefiro você entre as orquídeas

 

 

 

 

 

 

Móbile

 

demora-se o chão

promete flores, atrito

e não me toca os pés

 

não falo sobre nuvens

olhos de moça em parapeito

móbile de borboletas

atravessando-me a visão

 

falo sobre teus olhos

e minha sede de precipícios

sobre o corpo entre trapézios

e a calma do abismo

 

 

 

 

 

 

Cárceres

 

não bastava morar em meus olhos

atar à minha palavra — devastada

seus artifícios de linguagem

 

nas manhãs de julho

cercava-me de flores:

calêndulas, violetas

 

e dizia que no cárcere de sua língua

eu teria o gosto de sua lira pagã

 

me queria em seus olhos, mas não no mar

mar adentro, mar de dentro

suas flores me perdiam

 

 

 

 

 

 

Marco Zero

 

não sei se Ella

ou aquele seu bilhete

em letra miúda

de amores antigos

 

tão você anunciar-se

em jornais e flores

entre o norte

e o sul das coisas

aqui, onde me divido

assim, quando nem existo

no fim, marco de mim

seu verso, meu começo

 

foi como se a vida

tivesse algum centro

o afago de um deus

entre tanto interdito

 

 

 

 

 

 

À beira

 

tudo era quase:

corpo, corte, lâmina

tudo à beira

se não distante

tudo era perto de

 

estranha e bela substância

em tela de cores decompostas

e dores reviradas

 

tão bruta longe da palavra

tão outra

e você me lia

 

de que delicada matéria

é feita a poesia?

 

 
[imagens ©alexander]
 
 

 

 

Daniela Delias (Pelotas/RS). Poeta. É psicóloga, docente do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande, cidade onde reside atualmente. Edita, desde 2008, o blogue de poesia Do Lado de Cá [http://danidelias-poesia.blogspot.com.br/].