PLATAFORMA

 

Para Ângelo Monteiro

 

Algum amigo, talvez o único,

aconselhará o combate:

mude de amigo se não pode

mais, nunca mais, mudar de vida.

 

Da amada nem se fala, tudo

que ela deseja é para si:

mude de amada se não pode

mais, nunca mais, mudar de vida.

 

Diante do Nascente alugam-se

espaços claros e andorinhas:

mude de casa se não pode

mais, nunca mais, mudar de vida.

 

Uma terça parte dos anjos

já veste túnicas vermelhas:

mude de roupa se não pode

mais, nunca mais, mudar de vida.

 

 

 

 

 

 

AOS MESTRES,

COM DESRESPEITO

 

Dizem que meu povo

é alegre e pacífico.

Eu digo que meu povo

é uma grande força insultada.

Dizem que meu povo

aprendeu com as argilas

e os bons senhores de engenho

a conhecer seu lugar.

Eu digo que meu povo

deve ser respeitado

como qualquer ânsia desconhecida

da natureza.

Dizem que meu povo

não sabe escovar-se

nem escolher seu destino.

Eu digo que meu povo

é uma pedra inflamada

rolando e crescendo

do interior para o mar.

 

 

 

 

 

 

DIVAGAÇÕES SOBRE O MESMO MEDO

 

O medo cria músculos
e sólidos ossos
nas nuvens do céu.
O medo aumenta o perigo

e diminui os homens.

 

 

[Esse poema está pintado no muro do Museu do Estado,

nas Graças, bem no centro do Recife.]

 

 

 

 

 

 

UM CORPO QUE CAI

 

Tal se tocasse a extremidade
do cabelo de estranha moça
o homem semeado tocou
naquele fio com muito medo.

 

Segurando-o, pôs-se a puxá-lo
de novelo, como a tirar
uma veia do grande órgão
que emurchecia pouco a pouco

 

(o coração). Mas preferiu
seguir de costas com seu fio
e contemplar o seu tamanho
e ver extinto o seu começo.

 

Dava-nos assim esse aspecto
de quem procura levantar
à distância, por trás das casas,
uma pandorga que caíra.

 

E só ele caíra — o chão
fez-se macio como o ar
e o mais souberam, tão somente,
a carne solta e o sangue em festa.

 

 

 

 

 

 

LIMITAÇÃO DE...

 

Madalena criava cães,
muitos cães, na casa pequena,
edificada num lugar
chamado "Morro dos Relâmpagos".

 

Ali não recebia cartas
nem perguntas embaraçosas;
mas todos os cães que fugiam
das cidades a procuravam.

 

E chegavam como detentos
fugidos das prisões do Sul,
arranhavam todas as portas
e davam voltas nos oitões.

 

Madalena por fim se abria
com todo amor aos novos hóspedes:
mas sabia cantar, matá-los,
quando o número se elevava.

 

Era um canto que parecia
um ganir dos céus, de sentenças:
ela começava a cantar
e metade deles morria.

 

 

 

 

 

 

CASA VAZIA

 

Poema nenhum, nunca mais
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,
 
para esse público dos ermos,
composto apenas de nós mesmos,

uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas,
seu deserto particular,
 
ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.

 

 

 

 

 

 

CÍRCULO CÓSMICO

 

Livro-me tarde. Um deus facínora
rasga a cabeleira da treva
e emerge todo satisfeito
como uma rocha de entre as ondas.

 

Estou no patamar do mar
e suplico gesticulando
com duas bandeiras na mão:
uma rosada e outra vermelha.

 

Tudo realizado e pronto
e público e definitivo,
tal um diário oficial
grifado para a Eternidade.

 

Agora o deus mencionado
particularmente dirige
a mão de lâmina, o perdão
ridente como todo escárnio.

 

E levantado num rochedo
(no mais alto, naturalmente)
dá grande salto pirotécnico,
antes de afastar-se dali.

 

 

 

 

 

 

UMA EDIÇÃO DE "PAN"
 
No tempo em que os sonhos podiam
ser comprados, comprei teu livro.
(No frontispício, sobre um campo,
um homem simulava dormir.

 

O rosto, mensagem já morta
recebia o toque festivo
das hastes lisas, dos capins
altos e verdes que brilhavam.

 

Era uma fácil descrição
de algum rebelde que ficara
acintosamente parado
sobre o cume de uma derrota).

 

Reli-o muitas vezes, tudo
estava no começo e está:
certas manhãs bem poderiam
dispensar as outras vitórias.

 

Nenhum livro, nenhuma estrada
poderia levar mais longe
a beleza nova e sangrenta
que forçava nossas janelas.

 

 

 

 

 

 

ALTA RESIDÊNCIA

 

Pequenino e trêmulo ser,
que medrosamente apertaste
a campainha desta casa
de pedra: hoje eu te atenderia.

 

Ontem ainda era possível
recusar a tua presença,
simular um grande silêncio
até que, em prantos, te afastasses.

 

As quatro torrentes do Éden
puseram abaixo estas muralhas;
hoje, eu quero receber-te
em festa, e as torrentes não deixam.

 

Grito no terraço que estou
aqui, e ninguém acredita
que esta casa seja habitada;
ninguém quer voltar ao deserto.

 

Como estou humilde depois
que estou sozinho e a ninguém
posso dar a minha humildade,
como estou sozinho depois.

 

 

 

 

 

 

COLETIVO SUBURBANO

 

Nos ônibus, meus companheiros
são menos complicados: pensam
no almoço simples, nas mulheres,
no futebol e no chuveiro.

 

Eu, o suspeito; eu, a exceção
dentro do carro, nessa linha:
estou perdido, estou sozinho
e completamente perdido.

 

Bocejo na poltrona e só
duas vezes me descortino
diante da amada que, franzina,
desconfia de meus propósitos.

 

Somente na minha janela,
no vidro fosco, transparecem
garras de fumaça e de medo
que fumegam no vale em viagem.

 

Ao menos lá no terminal
deste ônibus existe Deus?
Impossível que não exista
e que existindo me abandone.

 

 

 

 

 

 

PROVISÕES

 

A palavra Deus está fria
como uma máquina ao relento;
é uma palavra que morreu
sem lã, na garganta dos pobres.

 

Amarrado a este tronco velho
e esperando que ele apodreça,
que grito agora tu darás
para aqueles que se aproximam?

 

Amanhã não é propriamente
uma palavra que te salve.
É um sonho que busca outro sonho
mais longínquo, para esganar-te.

 

É cedo ainda porque as chamas
da ventania não chegaram,
é cedo ainda porque insistes
em contemplá-las algum dia.

 

Vozes isoladas nos campos
murados não se comunicam;
e alguém, que de longe te viu,
entre espinheiros fecha os olhos.

 

 

 

 

 

 

CAMUFLAGEM NIETZSCHIANA

 

Eu não devia ter posado
tão inteiro nesta cidade.
Algo devia ter deixado
a salvo, dentro da floresta.

 

Tentarei na torre mais alta
ocultar um pouco de mim:
este modo de parecer
morto, que os outros não suportam.

 

Ao rés da cidade, lá onde
plantaram tantos eucaliptos,
eu vestirei as inflamáveis
roupas dos novos moradores.

 

Aproveitarei esta poça
de sombra, para disfarçar-me
e dar a última pincelada
cinza, no rosto perturbado.

 

Porque os subúrbios já começam
a mexer-se como os extremos
de um lago escuro, e alguma raiva
incendeia a franja dos morros.

 

 

 

 

 

 

O MATADOURO

 

Os animais estão morrendo
desde ontem: morrem na cozinha,
na sala, no campo — onde estão,
por falta de imaginação.

 

A gata, junto ao fogareiro,
é minha irmã que não casou.
Perto do fogo desde a infância
terrível, seus olhos me acusam.

 

O cão, que dá voltas na sala,
é meu irmão que enlouqueceu
entre as estantes: o menino
que só viu o mar uma vez.

 

O cavalo, que morde há tempo
a mesma touceira, é meu pai:
que alugou todas as choupanas
de taipa, e não saiu daqui.

 

Os animais estão morrendo
na cozinha, na luz do campo:
todos penetram aos gritos
e berros, neste matadouro.

 

 

 

 

 

 

RUA AZUL, JABOATÃO-PE

 

O menino ladrão de jambos
soube escolher a rua certa
para morrer: a minha rua,
e portanto será lembrado.

 

Com sua morte alguma fruta
amadurece sossegada,
mas quem a colherá talvez
não a deseje tanto, tanto.

 

O pequeno corpo sangrado,
vestido e calçado de folhas.
Tudo me serve: o seu destino,
cartilha lida pelo vento.

 

Os instigadores de sempre
treinam seus cães para segui-lo,
e o sol provoca um mal-estar
no rosto branco dos culpados.

 

Mas, é fácil reconhecer
que, pelo menos, esses homens
mataram o menino errado
na rua certa: minha rua.

 

 

 

 

 

 

CARTAZ

 

perto de nós
havia uma paz
e ninguém a via
havia uma foz
e ninguém a via
havia a poesia
e ninguém a via

 

perto de nós
havia uma via

e ninguém a via

 

 

[Como alguns outros, esse poema foi musicado por Myriam Brindeiro,

em arranjo do Maestro José Gomes.]

 

 

 

Notas da editora

> as imagens que ilustram esta página são desenhos de Alberto da Cunha Melo [ano 2000] e não devem ser reproduzidas sem prévia autorização de sua família;

> esta edição utilizou parte de matéria publicada sobre o poeta na extinta revista eletrônica PD-Literatura, de Asta Vonzodas, em 2002, por Silvana Guimarães, com informações fornecidas por Cláudia Cordeiro. Asta e Clau, obrigada.