Em foto original de urbanartcore.eu
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

"Entrei na revoada dos poetas por uma espécie de determinismo cultural. Meu pai, Benedito Cunha Melo, era algo como um decano dos poetas de Jaboatão/PE. Corriam para ele os candidatos a poeta, com seus sonetos imberbes. Ouvia, sem querer — e às vezes querendo — o velho a ler para os amigos na sala a obra de Cruz e Souza, sua maior admiração brasileira. Ouvia-o declamando sozinho, em voz alta, o 'Navio Negreiro' de Castro Alves. Depois, no colégio, lá estava eu enturmado com colegas que gostavam de literatura. Fui, de certa forma, amamentado pela poesia, sugando esse leite envenenado pela angústia do infinito". (...) "Em minha vida, a poesia é um lugar de refúgio, um abrigo para enlouquecer em paz, se isso for possível. Um refúgio no sentido primitivo que tinha a máfia, entre os camponeses da Sicília, para escapar do Clero, dos nobres e dos esbirros do Estado. Ou seja: a poesia como uma forma de suportar a vida. Mais refúgio que palco, mais defesa que ataque". Alberto da Cunha Melo [em entrevista ao jornal O Galo, Natal/RN, janeiro/2000]

 

 

José ALBERTO Tavares DA CUNHA MELO, poeta, jornalista e sociólogo, nasceu em Jaboatão/PE, em 1942, filho do professor e poeta Benedito Tavares da Cunha Melo e Dona Maria José Veloso de Melo. Morreu em Recife/PE, em 2007. Vivia em Olinda/PE.

 

Pertenceu à Geração 65 de poetas pernambucanos e, por iniciativa do poeta e crítico, César Leal, publicou os seus dois primeiros livros de poemas em separata da Revista Estudos Universitários, editada pela UFPE. As vanguardas então lançavam as regras às quais ele não se rendeu. Iniciou sua carreira poética utilizando o metro octossílabo, um dos mais raros na poesia de Língua Portuguesa em Círculo Cósmico e Oração pelo Poema. Depois, elegeu o verso livre em quatro dos seus livros, para voltar àquele metro em Poemas Anteriores e, a seguir, em Yacala. Trata-se de uma sistematização da qual se desconhece a constância na produção literária da Língua Portuguesa. Mas não é somente o metro que dá à poesia do autor a transversalidade do novo, também o seu vocabulário enigmaticamente claro, em que se insere a temática do seu tempo.

 

 "Ó meu Deus, eu quero escrever

 a minha vida, não Teu céu".

 

Foi co-fundador da Edições Pirata, editora alternativa, na qual publicou autores novos e consagrados como Mauro Mota e Rubem Braga, publicando também alguns dos seus livros: Dez Poemas Políticos, Noticiário e Poemas à Mão Livre, o último, lançado no Estado do Acre. Sua poesia em verso livre é grande e foi saudada por Henfil e Paulo Freire — o educador — com um entusiasmo incomum:

 

"Alberto Cunha! (...) Você tem a capacidade  de fazer com   que    os    escritos   do sulmaravilha pareçam frescuras e firulas de madames. Assim tipo tricô. Você não faz tricô. Você faz bueiros e bilros!". Henfil, Pasquim, RJ, 07/07/1981, sobre os livros Noticiário e Poemas à Mão Livre.

 

"Meu caro Alberto, (...) você não pode imaginar o bem que a força da sua poesia me fez. Poesia de mesmo — expressão de vida, compromisso histórico". Paulo Freire, Genève, 08/01/1980, sobre o livro Noticiário.

 

Criou, planejou e executou o Prêmio Literário Carlos Pena Filho, que, em 1982, premiou autores locais (Pernambuco) e, no ano seguinte (1983), nacionais, com o patrocínio do Bar Savoy.

 

Participou como 2º Vice-Presidente da Diretoria que reinaugurou os trabalhos da União Brasileira de Escritores, secção de Pernambuco, em 1985.

 

Dedicou-se também ao jornalismo, destacando-se como editor do "Commercio Cultural", entre os anos de 1982 a 1985, no Jornal do Commercio:

 

"POEMA-PROCESSO - Da atuação de Alberto Cunha Melo resultou que o Jornal do Commercio foi um dos poucos jornais do país a divulgar as produções do  chamado Poema-Processo, que surgira na década de sessenta no esteio do  concretismo (...)". JC Online, Especial 80 Anos.

 

De 1980 a 1981, como sociólogo, foi Gerente de Bem-Estar Social do SESC — Delegacia do Estado do Acre. Trabalhou doze anos em pesquisa social, onze dos quais na FUNDAJ — Fundação Joaquim Nabuco e publicou alguns trabalhos científicos. O poeta adorava o sertão, sol, pedras e a mata em que se embrenhava para fazer pesquisa para Comissão Estadual de Planejamento Agrícola no Estado do Acre. Insetos, cobras e lagartos não o incomodam, ele costumava dizer: "Mordida eu só sinto de cachorro pra cima".

 

Por duas vezes, foi Diretor de Assuntos Culturais da FUNDARPE — Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (1979/1980 e 1987 a 1989), onde apoiou as iniciativas de produtores culturais com vistas à sua organização social, como foi o caso da Associação dos Artistas Plásticos de Pernambuco. Na segunda administração, desenvolveu projetos em que colocou a arte a serviço da Saúde como no Arte-Saúde, que deu ao Estado de Pernambuco um dos melhores índices de vacinação de sua história. Admirador incondicional da poesia popular, reeditou o Congresso de Cantadores do Recife, em duas edições: 1987 e 1988, no Teatro de Santa Isabel. Realizou o pré-teste do Cadastro Cultural de Pernambuco, com absoluto sucesso na Cidade de Caruaru/PE, posteriormente, aprovado em toda a sua estrutura pelo Ministério da Cultura. Na sua atuação destacam-se também a criação, planejamento e execução dos seguintes projetos: Trem da Cultura (integração estadual das artes), a Via Sacra do Artesão (exposição e vídeo sobre as condições de produção do artesão em Pernambuco) e outras tantas iniciativas como os cursos (dois anos consecutivos) de Reparos em Instrumentos Musicais (FUNARTE/FUNDARPE). Em 1988, exerceu o cargo de Diretor do Arquivo Público Estadual de Pernambuco, fazendo parte do Conselho Editorial da CEP (Cia. Editora de Pernambuco). Foi também editor da revista Pasárgada (FUNDARPE/CEPE, nos anos de 1994/1995).

 

Tal como o poeta Jorge Luis Borges, Alberto da Cunha Melo trabalhou em uma biblioteca, a Biblioteca Pública, no setor de Obras Raras. Um trabalho que lhe garantiu o contato com obras importantíssimas. O ledor que ele era, raras pessoas podem ser em qualidade e quantidade. É verdade mesmo: todas as Odes de Horácio, ele copiou a lápis em papel. A obra, de tão velhinha, não pode ser "xerocada" e, fotografada, só por especialistas. Como o volume é muito grande, a despesa seria enorme (imaginem quanta admiração ele tem por Horácio. E juntem Kafka e João Cabral, na mesma proporção).

 

Escreveu A Noite da Longa Aprendizagem — Notas à Margem do Trabalho Poético, ainda não publicado, onde ele tomava notas sobre a poesia, sobre o fazer poético e sobre o mundo literário de uma forma geral. Chegou a mais de quatrocentas páginas de quatro volumes iconográficos, cheios de documentos.

 

Escreveu Poemas Finais, onde reuniu experiências concretistas, letras de músicas, haicais, pictogramas, ideogramas e toda uma poesia não sistematizada por ele: "São brincadeiras, só vão ser publicadas depois que eu morrer".

 

Encantado com a poesia do repente, pesquisou profundamente as suas fontes, o que resultou em alguns artigos, fontes fundamentais para quem quer tomar esse veio. A sua convivência com os poetas repentistas foi impressionante: ele os respeitava enlevado e vice-versa (ou verso?).

 

Apaixonado por belas imagens, adorava cinema e artes plásticas. Ele próprio tinha um traço gestual que era uma verdadeira assinatura. Às vezes, pegava uma resma de papel e desenhava, desenhava, desenhava.

 

Como jornalista, assinou a coluna "Marco Zero", na revista "Continente Multicultural" desde o número 0 (dezembro de 2000) até o número 83 (novembro de 2007), com artigo publicado após sua morte graças à sua extensa produção literária ininterrupta durante o tempo em que pode pegar a caneta ou sua velha máquina Remington e escrever seus poemas, suas crônicas.

 

A convite da Universidade de Évora, Portugal, participou do III Seminário Internacional de Lusografias (8 a 11/11/2000),  com o relançamento do seu livro Yacala e como expositor do  tema "Condições de Criação nos Países Lusófonos".

 

Alfredo Bosi, no prefácio da segunda edição fac-similar do livro Yacala, afirma:

 

"O Nordeste nos dá, mais uma vez, depois do paraibano Augusto dos Anjos (presente de modo subliminar na atmosfera de várias passagens de Yacala), do alagoano Jorge de Lima e dos pernambucanos Carlos Pena Filho e João Cabral, a sua lição de dor que se faz beleza e arranca de si forças para construir uma poesia como a de Alberto da Cunha Melo, cujo nome secreto é — resistência".

 

Sua obra foi-se impondo no cenário nacional, a despeito do seu modo de ser, avesso a palestras, debates e toda sorte de comunicação em público. O que explica a sua inclusão nas antologias Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século XX e 100 Anos de Poesia — Um Panorama da Poesia Brasileira no Século XX. Declinou inúmeras vezes de convites para tais eventos e até para lecionar em universidades.

 

Os grandes críticos do país já têm Alberto da Cunha Melo como um nome comum às suas citações. Um exemplo, ocorrido em 19/06/2001, na capa do Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo, em que Mário Chamie atestou em entrevista:

 

Estado – Quem, hoje, na poesia brasileira, estaria fora desse quadro preparatoriano (de imitadores — explicação nossa)?

 

Chamie – (...) mas dentro de um paralelismo imperfeito, estariam fora desse quadro todos aqueles autores que, entre riscos e apostas, se empenharam na descoberta de sua linguagem autônoma, por meio da qual nos seja possível ver, ouvir e testemunhar na "referência às circunstâncias do mundo", uma objetividade menos óbvia e mais surpreendente. Ferreira Gullar, Bruno Tolentino, Hilda Hilst, Gerardo Mello Moura, Alberto da Cunha Melo não estariam entre aqueles que, a seu modo, ignoraram os apelos e as conveniências de uma poesia preparatoriana?

 

 

O QUE MAIS DISSERAM DELE

 

"ALBERTO DA CUNHA MELO: há uma dor no poema, há uma carta, uma comunicação para os outros, quaisquer outros; nele a poesia existe como um 'para sempre'". Joaquim Cardozo, in Agenda poética do Recife, organizada por Cyl Gallindo, 1968, p. 14.

 

"Tenho vontade de sair cantando ou dançando, chorando ou mugindo, quando leio Alberto da Cunha Melo". Deonísio da Silva, in O cão de olhos amarelos e outros poemas inéditos, prêmio da Academia Brasileira de Letras 2007.

 

Dessa forma, Alberto da Cunha Melo cultivou com obsessão o octossílabo, mais do que o fizeram juntos todos os poetas da língua portuguesa (incluindo Cabral e Pessoa) e realizou, junto com Carlos Drummond de Andrade e, quiçá o próprio Cabral, a poesia política mais autêntica do Brasil, e, quase unicamente, a mais bem sucedida e original poesia fundada em ciência econômica da língua portuguesa". Mário Hélio, Recife/PE, 1989, posfácio do livro Poemas Anteriores.

 

"(...) Inventando uma forma fixa, Alberto da Cunha Melo ingressou em um fechadíssimo clube de poetas, entre os quais se sobressaem Giacomo da Lentino, inventor do soneto, e Arnaut Daniel, criador da sextina". César Leal, Diário de Pernambuco, Recife/PE, 13/07/1998, sobre o livro Carne de Terceira.

 

"Épico de fôlego longo, o poema remexe nos esgotos da vida real brasileira sem fazer uma concessão, por mínima que seja, ao facilitário das fórmulas populistas". José Nêumanne, Jornal da Tarde, São Paulo/SP, 07/08/1999, sobre o livro Yacala.

 

"Apesar do lirismo confessional e amoroso, nunca lhe falta a seminal atitude irônica e crítica, vezes amarga e corrosiva, que o faz um dos poetas mais densos da poesia brasileira contemporânea". Hildeberto Barbosa Filho, O Norte, João Pessoa/PB, 02/04/2000, sobre o livro Clau.

 

"Em Poemas Anteriores o racional e o sensível encontram o campo mais vibrante de uma arte carregada da emoção de um "eu lírico" que não a afoga no simples artesanato com a palavra. Os poemas, em sua extensa maioria, obedecem a uma estrutura formal caracterizada por cinco quartetos e por uma densa complexidade de recursos estilísticos utilizados com maestria pelo poeta". Cláudia Cordeiro Reis, a Clau, no prefácio do livro Poemas Anteriores, Edições Bagaço, 1989.

 

"... a sua obra posterior (...) não apenas reafirma as suas preocupações formais como o coloca entre os grandes nomes da poesia brasileira da segunda metade do séc. XX". Anco Márcio Tenório Vieira in Biblos. Enciclopédia VERBO das Literaturas de Língua Portuguesa. Lisboa/São Paulo. Editora Verbo, 1999.

 

"(...) desta vez, num longo poema narrativo (ou, de outro ângulo, numa alentada alegoria dramática), Cunha Melo amplia a lição cabralina, resumindo e expandindo sua própria arte a ponto de tornar irrefutável sua definitiva presença entre os grandes de nossa lírica. A linguagem pungente e específica, tão concreta quanto alusiva e simbólica — leia-se: o idioma servido sem complexidades ornamentais, aquele que em momento algum faz um dialeto de si mesmo — foi desde sempre a marca registrada deste maggior fabbro à inglesa, de timbre telúrico e fôlego metafísico à maneira (e à altura) de um Herbert, um Donne, ou um Hill hoje". Bruno Tolentino, revista Bravo, outubro de 1999, sobre o livro Yacala.

 

Silvana Guimarães, escritora, coeditora da Germina — Revista de Literatura e Arte: "de resto, a poesia chegava-lhe como um processo mental autônomo, indiferente à sua vontade: 'Eu odeio esse poema me perseguindo. Tive que escrever...'. E quase todo dia escrevia um. Porém, conforme confessou-me, pelo telefone, numa longa conversa, em 2002, entremeada de versos e gargalhadas: 'Menina, a poesia é uma doença, os poemas são os sintomas, aliás, a arte é uma doença, a poesia é uma doença séria que eu herdei de meu pai, desde menino, ouvindo-o do meu quarto recitar bem alto os versos de Castro Alves e Cruz e Souza, peguei a doença, virei poeta, ser poeta é um estigma, tenho uma sobrinha, menina ainda, adoeceu também, outro dia numa festa, disse à mãe que tudo estava tão bonito, que ela sentia até o 'cheiro das borboletas', isso não é puro Guimarães Rosa? Sou um homem comum, na minha rua me chamam de 'Seu Alberto' e o que eu gosto mesmo de fazer, é pescar'". Para nossa sorte, a poesia não tem cura. Nem a morte pode com ela. Foi-se Alberto da Cunha Melo, naquele ácido outubro de 2007. Ficou Alberto da Cunha Melo em sua poesia viva para sempre. Dele, guardo lições inesquecíveis de generosidade poética e a coleção de assombros e encantamentos que ainda me causam seus versos, chegando aos meus olhos quase sempre aos domingos, pelas mãos solidárias e incansáveis de Cláudia Cordeiro, a Clau, companheira e musa. E, ainda, tive o privilégio de ganhar seus poemas de presente — um deles, dedicado ao meu pai —, publicados em O Cão de Olhos Amarelos & Outros Poemas Inéditos — Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras 2007 (São Paulo: A Girafa, 2006):

 

 

A COISA

 

Para Antônio A. F. Guimarães

 

POEMA SOBRE

UMA COISA

POEMA COBRE

UMA COISA

POEMA SÓ

UMA COISA

 

 

 

 

LIÇÕES TARDIAS

 

Para Silvana Guimarães

 

Não devemos aprender a esperar.

Devemos, sim,

esquecer as coisas esperadas.

Ainda que nos digam:

"espere-me, à tal hora, em tal jardim",

o jardim nos deve bastar.

Que a chegada daquilo

que nos fez esperar

seja algo normal naquele mundo,

como a morte de uma borboleta

ou a fuga de um lagarto nas pedras.

Se nada chega,

se ninguém aparece,

não notaremos a sua falta.