[imagem original de Antônio Carlos Belchior]
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

Ademir Assunção

2 poemas



Tanto ódio, Carlos



o mundo é grande

e tem extremos


tem estrela e tem estrume

tem perfume e tem veneno


tem dias a gente ama

tem dias a gente briga


mundo mundo vasto mundo

mundo malo mundo bueno


não me chamo raimundo

mas algo estranho me intriga


como cabe tanto ódio

num caráter tão pequeno?





Um idiota no meio do caminho



não havia uma pedra no meio do caminho

havia um idiota completo com seu olor de ódio

um idiota completo que relinchava

— sem a elegância dos cavalos

um idiota completo com seu fedor de coisa pútrida

babando bílis, bebendo pus, peidando, defecando

sobre bandeiras verdes sem matas

sobre bandeiras azuis de céus sufocantes

sobre bandeiras amarelas de raiva

sobre bandeiras brancas manchadas de sangue

um idiota completo regurgitando e resfolegando

violência, tortura, ameaças, assassinatos

um idiota completo e mentiroso com seu pau hasteado

numa selva escura e sem saída, sem onça-pintada

sem lobo-guará, sem tatu-peba, sem rola-bosta

um idiota completo que berra nos ouvidos de madalena

eu não te estupro porque você é feia!

meu filho não te come porque você é preta!

um führerzinho mal ajambrado em talho tosco

gritando morte aos veados! morte aos vermelhos!

morte aos que ouvem essa música barulhenta!

morte aos montes! morte em marte! marche! marche!

e a turba trevosa e tenebrosa entra em transe

e afia as facas e estala as esporas e engatilha as armas

revelando às crianças uma face dura e rude

sem leveza, sem beleza, sem delicadeza alguma

um idiota tão maligno e digno de pena

que nem vale o esforço de um poema



Ademir Assunção

Na Germina

> Poesia

> Risca Faca







Adriana Versiani

O amor e seu tempo



entre bananeiras,

a bica 

onde, velha, se banhava.


sobre a pedra de minério:

a sombra de José,

esquecido das palavras.


dos pássaros,

agora,

só sabiam as asas.



Adriana Versiani

Na Germina

> Poesia

> A Genética da Coisa

> Sementinha







Alex Simões

QU4DR1LHA



João marcava Teresa que enviava a Raimundo

num direct pra Maria que zapeava Joaquim que tuitava pra Lili

que não dava match com ninguém.

Raimundo foi cancelado, Maria compartilha fake news,

Joaquim e Lili estão em isolamento social,

marcando nas publicações e enviando pro zap de J. Pinto Fernandes

que não tinha visualizado o Stories.



Alex Simões

Na Germina

> Poesia

> Estar vivo é poder sempre perder-se







Amanda Vital

confidência



para Drummond



assim que ponho os pés

nas calçadas empoeiradas

do pó preto da Usiminas


retiro de seus altos-fornos

as lâminas da minha vida


"sou triste, orgulhoso: de ferro"

já dizia o poeta dos minérios


e alguns quilômetros depois

transformam a poesia em aço


oitenta por cento de mim

é de material galvanizado


filha legítima da siderurgia,

pretume dos pés descalços.



Amanda Vital

Na Germina

> Poesia







André Ricardo Aguiar

Quadrilha



João que pegou de Tereza que pegou de Raimundo

que pegou de Maria que pegou de Joaquim

que pegou de Lili que pegou de alguém.


João foi pro hospital, Tereza pra quarentena, Raimundo

foi só uma virose, Maria espalhou fake news,

Joaquim foi pra aglomeração, Lili ficou em casa

lavando freneticamente as mãos enquanto via na TV

Bolsonaro — que não tinha entrado pra história —

infectar o país.



André Ricardo Aguiar

Na Germina

> Poesia







Antônio Oswaldo

Guedes (Drummondiana nº 1)



E agora, Guedes?

O Chile acordou,

A luz acendeu,

A noite esquentou,

Estudante gritou,

Revolta espalhou,

Escumalha aderiu...


E agora, Guedes?

O que será do Chile,

Se salário já não há

E a universidade pública

Virou paga por lá?

E os velhinhos suicidas,

Sem plano de saúde?

E o povo todo,

Sem saúde pública?

O que seus Chicago's Boys,

Mimados playboys,

Aprontaram por lá?


E agora, Guedes?

O metrô não veio,

Santiago parou,

O Chile descarrilhou,

Barricada surgiu,

Tudo queimou,

General decretou

Toque de recolher,

Não adiantou,

Povaréu desafiou...


E agora, Guedes?

A receita falhou?

Seu modelo faliu?

O Chile não era tão bom?

Eu não quis acreditar

Que você faria

Igual por aqui...

E agora que o Chile fracassou

Onde está seu modelo

Que já matou vinte,

Feriu cem,

Prendeu mil?...

Seu modelo chileno

Não era tão bom?

Como foi que faliu?


E agora, Guedes?

Chile não há mais...

Você está sozinho no escuro,

Perdido, sem rumo...

Mas errar é tão humano!

Corrija a rota,

Admita a derrota

Dos seus Chicago's Boys,

Seus Chicago's "Toys"

De gente que manda,

Comanda a miséria...


E agora, Guedes?

Que seu neoliberalismo

Nos lançou no abismo

Da desesperança?

Coragem!

Faça mea culpa,

Saia de cena,

Mas não fuja correndo,

Diga que falhou,

Beba o seu veneno

E morra com a honra

Tão pouca que lhe sobrou...







Chico Buarque

Até o fim



Quando nasci veio um anjo safado

O chato dum querubim

E decretou que eu tava predestinado

A ser errado assim

Já de saída a minha estrada entortou

Mas vou até o fim


Inda garoto deixei de ir à escola

Cassaram meu boletim

Não sou ladrão, eu não sou bom de bola

Nem posso ouvir clarim

Um bom futuro é o que jamais me esperou

Mas vou até o fim


Eu bem que tenho ensaiado um progresso

Virei cantor de festim

Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso

Em Quixeramobim

Não sei como o maracatu começou

Mas vou até o fim


Por conta de umas questões paralelas

Quebraram meu bandolim

Não querem mais ouvir as minhas mazelas

E a minha voz chinfrim

Criei barriga, minha mula empacou

Mas vou até o fim


Não tem cigarro, acabou minha renda

Deu praga no meu capim

Minha mulher fugiu com o dono da venda

O que será de mim?

Eu já nem lembro pronde mesmo que vou

Mas vou até o fim


Como já disse era um anjo safado

O chato dum querubim

Que decretou que eu tava predestinado

A ser todo ruim

Já de saída a minha estrada entortou

Mas vou até o fim



Chico Buarque

Na Web

> Quase tudo







Emílio Moura

Soneto a Carlos Drummond de Andrade



A hora madura envolve-te e palpita

nela o que ora te oferta, ora recusa:

posse do que és, na solidão recôndita,

graça de amar, ressurreição dos mitos.


Claros enigmas riscam céus distantes.

Falam-te as coisas pela voz que é o próprio

sentimento do mundo e pela meiga

sombra gentil que ressuscita a infância.


Ouço-te andar nas lajes desta rua,

que nem sei se é de Minas ou de alguma

pátria remota que ao teu canto se abre.


E amo-te a voz multiplicada em ecos:

verbo dócil à força íntima e pura

que à máquina do mundo se incorpora.



Emílio Moura

Na Germina

> Poesia

> Emílio Moura: abandono póstumo, por Fabrício Carpinejar






Fabrício Marques

2 poemas



nascer é muito comprido



quando eu nasci

nem um anjo torto

desses que vivem na sombra

nem um anjo esbelto

desses que tocam trombeta

nem um anjo muito louco

com asas de avião

nem um anjo safado

chato querubim


surgiu-me, no meio de tantos

serafins, um estranho ser

equilibrando-se entre a vaga

literatura e os poemas com defeito


primeiro anunciou: não há nada a dizer

embora nada tenha sido dito

disse depois, principalmente:

tudo já foi dito, inclusive isto

então saiu, meio sem jeito

com passos desencontrados


no torvelinho dos séculos

minha voz é um eco

dentro do silêncio de um eco

em outros ecos desdobrado







Ecos de Drummond



Por que só existir?

Que tal viver?







[o poema virou canção]



Fabrício Marques

Na Germina

> Poesia

> A carne é franca






Guga Limeira & Hugo Limeira

Abril







[cantiga de amor sem eira nem beira...]



Guga Limeira

Na Web

> Paraíba Criativa

> Instagram





Jairo Fará

Meia homenagem a Drummond



No meio do cameio tinha meia pedra

Ao meio-dia e meia

No meio do cameio tinha meia pedra

Nunca meio esquecerei desse acontecimeio

Na vida das meias retinas meio fatigadas

N me d cam tin u ped e me.



Jairo Fará

Na Germina

> Poesia

> Ilustração [Poesia Visual]









Kaio Carmona

Na Germina

> Poesia







Kátia Borges:



Perdi o bonde e a esperança, São Longuinho

Se eu achar, dou três pulinhos e não volto pálido para casa



Kátia Borges

Na Germina

> Poesia

> O poema perfeito brinca entre os ossos do crânio







líria porto

maria-homem



(chamam-na assim lá no bairro)

tem cabelo nas ventas

enfrenta o trabalho

o patrão

e quando volta pra casa

traz leite pão e até carne

pra alimentar as crianças


(o marido

aquele traste)



líria porto

Na Germina

> poesia

> tudo vira poesia







Mariza Lourenço

orgânico



no meio do caminho tinha uma cueca

surrada, encardida, mas de bom uso, ainda

lavei-a com esmero em sabão de coco 

e amaciante

oh, bons anos de ventura aqueles

com minha querida cueca

[felicidade não é bem durável]


noutros caminhos, outras cuecas

e a falta de paciência

melhor levar à lavanderia

resolvi: encardiu

vai pro lixo

[felicidade não se recicla]


Mariza Lourenço

Na Germina

> Contos

> A Genética da Coisa







Nuno Rau

Coração Veterano



quando eu nasci um anjo porco

desses que andam nos esgotos

veio ler a minha mão

não disse nada

e de soslaio

seguiu subtraindo ao ar de maio

todos os signos postos na escritura


quando eu nasci um anjo sonso

e louco cego súbito inconstante

veio ler a minha mão

esse farsante

riscou um tosco enigma em minha pele

e sem anestesia:

será poesia?



Nuno Rau

Na Germina

> Poesia

> Escola de Samba Grêmio Recreativo Solidão







Raul Drewnick:



Quando eu nasci um anjo torto

como aquele do Drummond

disse vai polaco

chispa poltrão

você tem sorte.

Se você fosse outro

tinha nascido morto.







No rumo da modernidade

depois de tantos anos penosos

ainda temos sonhos pecaminosos

com lírios românticos

com ícones parnasianos

e já chegamos à metade

sem encontrar nem mário

nem oswald nem

carlos drummond de andrade.



Raul Drewnick 

Na Germina

> Poesia







Romério Rômulo

Deixei as vidas arcaicas, delinquentes



Não vim de pai nem mãe. Sou filho torto.

Eu, filho da quadrilha e do esgoto.


Bandeiras ancestrais que me trouxeram

Nos ouros e nas pedras me deixaram.


Fui quantos na estrada deste mundo?

Não tive rima, nunca fui Raimundo.


Amei fadas e bruxas e miúras

E fui queimado no fogo destas fúrias.


Deixei as vidas arcaicas, delinquentes

No rasgo das estradas mais dementes.


Eu amei tantas, nem tanto fui amado

Absurdas vilãs do meu pecado.



Romério Rômulo

Na Germina

> Poesia

> Entrevista

> A Genética da Coisa

> Na Berlinda [Poemas]







Silvana Guimarães

arruaça



para drummond, meu príncipe



ele me lambia

e a lama debruçava-se sobre brumadinho


ele me lambia

a boca os dentes a barba babasilabavam


ele me lambia

e o 38º presidente tomava posse do brasil


ele me lambia

o coração chamejava entre as coxas


ele me lambia

e lula deixava a prisão


ele me lambia

o beijo abocanhava cuspe & cheiro de sal


ele me lambia

e o tal presidente destroçava o país


ele me lambia

meu nome na ponta da línguafaca


ele me lambia

e uma onça esturricava no pantanal


ele me lambia

aquela língua tão quente tão fugaz tão lenta



Silvana Guimarães

Na Germina

> 7 Contos de Réus

> A Genética da Coisa








Torquato Neto

Let's play that



quando eu nasci

um anjo louco muito louco

veio ler a minha mão

não era um anjo barroco

era um anjo muito louco, torto

com asas de avião


eis que esse anjo me disse

apertando minha mão

com um sorriso entre dentes

vai bicho desafinar

o coro dos contentes

vai bicho desafinar

o coro dos contentes

let's play that



[Antônio Carlos Belchior]

 

 

 

 

outubro, 2021