não

 

sim

      subiríamos aquele prédio

talvez atravessar uma janela

e estilhaçar sobre a carnura do concreto

 

sim

      pediríamos tudo de novo

toda ascensão inútil

                          passageira

para poder chegar inutilmente ao solo

 

mesmo que tropeçássemos sozinhos

inventando motivos para a beira

ou desmontando cada pedra do caminho

 

que carne triste e dados relançados

não passam de palavras (nós sabemos)

ou de calçados

         pra quem vai sair descalço

 

sim subiríamos aquele prédio

e melhor do que um pulo

                            agora um grito

que feito faca rasgue a carne do concreto

 

não pediríamos tudo de novo

nem mesmo o novo

                    inútil passageiro

mas feito grito atacaríamos o solo

 

mesmo que atravessássemos sozinhos

a beira desmontada da janela

e além da pedra achar

                    calçar outro caminho

 

onde tristes motivos relançados

(que bem sabemos

                   são palavras

                                    só)

se tornariam pés para quem vem descalço

 

sim     subiríamos aquele prédio

 

 

 

 

 

 

arquitetura

 

mas sobretudo

                        preparar a brita

que brita não é calma e controlada

conforme pedra ou carne

                                    é pesada

ainda que tratável

            quando escrita

 

melhor

            do sem sentido é que ela incita

uma poética

                        a partir do nada

e assim se assoma

            ainda que calada

uma estrutura armada com bauxita

 

agora venha vida

                        venha dor

nada se negue

            à sua arquitetura

que busca simetria em sua sina

 

mas não prevê que o risco

            de uma flor

— coisa sem nome

                        que sequer perdura —

possa brotar nas frestas

            da ruína

 

 

 

 
 
 

*

 

                            para marcos siscar

 

não se diz morte

                   o pálido sentido

duma palavra          morte

                            o entupimento

súbito da carótida     um zunido

encerrando o horizonte do evento

 

não se diz não se diz não se diz não

à morte

         à mais-matéria desta vida

que rouba ou dá significado           é vão

(desmundo descoberto em desmedida)

 

numa subida

                   numa simples curva

a pausa da respiração cansada

a sensação que a vida está passim

 

um aperto no peito

                   a vista turva

talvez uma visão

                   mais certo um nada

tombar sem medo sobre o leito

         e assim

 

 

 

 

 

 

*

 

                   para adriano scandolara

 

nenhum grito na noite

talvez uma taça de vinho

o brinde sozinho na mesa

um bom senso o controle

remoto

         a bitolada

 

cerveja entremeada aos burburinhos

dum bar        dos bares

nenhum grito na noite

até um choro

 

um gemido sincero

da última trepada da noite

nenhum grito

o uivo dos cães nessa noite sem lua

baforadas sintéticas

um beco alguns becos entre

avenidas da noite

 

nenhum grito na noite

saraivadas de balas 3 homicídios

5 ou 6 assaltos

um moleque perdido no centro da noite

 

a cadência dum samba a caçamba de lixo

nenhum grito na noite

putas michês travestis trabalhando

silêncio de sorriso sarcasmo vencido um grito?

nenhum grito na noite

 

por entre bueiros

os ratos seguem seus rastros

todos os vagões permanecem

nos trilhos

os porteiros discretamente

 

         adormecem

 

aquários bancos cinemas

                            as luzes acesas

diamantes cansados na bruma esta noite

         nenhum grito

os metrôs funcionam

paz milimética no trânsito

um policial ou outro

numa viatura

 

na noite sem barbárie a carcaça do tédio

a boca aberta sem remédio

um vazio crescendo feito cárie

medo nenhum

grito na noite

 

um desejo imperfeito um saber

cansado

de que um grito

um grito apenas

ainda possa demolir o silêncio

da noite

 

 

 

[imagens ©bird eye]            

 

Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984). Professor da UFPR, tradutor e poeta. Publicou traduções de As janelas, seguidas de poemas em prosa franceses, de Rainer Maria Rilke (Ed. Crisálida, em parceria com Bruno D'Abruzzo), e de A anatomia da melancolia, vols. 1 e 2, de Robert Burton (Ed. UFPR). Tem poemas publicados em revistas como Cult e Macondo e participa do blogue coletivo Escamandro [ http://escamandro.wordpress.com/ ]. Vive em Curitiba/PR.