O licor polonês que encontrei no armário de bebidas do cartunista Ziraldo era de cerejas. Não sei de que espécie, pois há vários tipos de cerejeiras. Um deles, o Primus avium, dá uma madeira usada na fabricação de instrumentos musicais, além de frutas muito doces. Independentemente de saber que tipo de cerejeira existiria na Polônia, estava mesmo curioso para conhecer o gosto da bebida. Pedi um trago. O licor era saborosíssimo. Como havia dezenas de garrafas, perguntei se não me ofertaria uma de presente. Ziraldo negou-me a dádiva, explicando que comprara aquilo tudo para tomar em casa, que eu poderia beber o quanto desejasse, desde que fosse com ele e na casa dele. Mariozinho Rocha, ao meu lado, disse que topava a  parada. Ziraldo foi buscar os copos.

Os que ali estavam haviam participado comigo de uma reunião e depois vieram fazer-nos companhia e apreciar o licor, entre eles, Sérgio Cabral, Millôr Fernandes, Jaguar e outros colaboradores e diretores de O Pasquim. Como havíamos combinado que a discussão sobre o programa de televisão não seria mais colocada em pauta, conversamos sobre assuntos diversos. Política, o Rio, censura, etc. E foi assim que terminou a noite em que O Pasquim se recusou a substituir J. Silvestre na tevê.

Tudo começara quando noticiaram, numa terça-feira, que J. Silvestre não renovaria o contrato com TV Tupi, na qual eu também trabalhava como produtor musical de outra estrela da casa, Bibi Ferreira. Foi um deus-nos-acuda, todos preocupados em encontrar uma solução para o preenchimento do espaço que ficaria vago nas noites de segunda-feira. Duas horas em que a emissora era líder de audiência. Assim que soube do ocorrido, telefonei para Ziraldo e expus a ideia que acalentava há tempos, de produzir um programa de tevê com o humorismo, a opinião e o padrão gráfico-visual revolucionários do grande fenômeno da imprensa brasileira: O Pasquim. Ziraldo aceitou convocar a diretoria do jornal para um bate-papo sobre o projeto, em sua casa. Uma pena que terminaram por concluir que, com a censura do jeito que estava, o programa não iria muito longe e não valia a pena tentar. "Dane-se a censura", argumentei. "Digamos que ela tire o programa do ar: assim mesmo ele terá cumprido seu papel como denunciante da arbitrariedade". De nada adiantou.

O engraçado era que eu havia reservado minha lábia especialmente para tentar convencer Millôr Fernandes de que a ideia era boa. Pelos meus cálculos, seria ele quem ofereceria maior resistência ao plano. Para minha surpresa, aconteceu justamente o contrário. Millôr foi o único que brigou do meu lado a favor do projeto até a votação final, que enterrou o sonho de ver algo de muito novo subvertendo a linguagem da mídia daquela época.

Mas valeu. O que acabou entrando no ar, nas segundas-feiras, foi um  programa totalmente diverso. Ao saber que havia sido inaugurada a pioneira linha de transmissão que possibilitaria, pela primeira vez, transmitir de forma simultânea um mesmo programa apresentado no Rio e em São Paulo, parti com o pequeno recorte de jornal para mostrá-lo a Lucena e Arrabal, os Boni e Walter Clark do momento. Dali nasceria o programa que, feito para ser uma espécie de gincana disputada entre as duas cidades, acabou degringolando em uma competição de mau gosto. Lembro perfeitamente do quadro em que um comilão de São Paulo, ocupando metade da tela, e um comilão do Rio, ocupando a outra metade, disputavam entre si quem conseguiria devorar em menos tempo uma montanha de salsichas. No fim, o comilão derrotado apelou argumentando que as salsichas servidas ao oponente, na outra cidade e na outra metade da tela, eram menores do que as que lhe foram servidas. Quando vi exibidas em close as duas salsichas espetadas em garfos, para que fossem comparadas, uma em cada metade da tela, pedi meu afastamento da produção.

Preferi continuar frustrado de tudo, apenas imaginando para toda a vida como teria sido o programa se O Pasquim houvesse topado a aventura.

De tudo restou de presente o olhar, ainda que frustrado, de Millôr, ao erguer para mim um brinde depois da reunião. E também a lembrança doce do licor de cerejas polonesas de Ziraldo. Quando encontrá-lo novamente, espero que ainda se lembre da marca.

 

 

 
maio, 2012