De súbito, sentia tudo quente. Lúcido, dormente, quente. Uma aflição, dor que entrou pelo ouvido e vazou o cérebro. Ecos de fatos: atos. E que cenas monumentais! Chocantes, risíveis, doloridas, óperas. Bufas e dramas. E me  lembrei do dia da proposta. Quando você disse manso, daquela mansidão de tempestade (o medo me travou a garganta, lembranças): "Vamos conversar a sério". Para a sala, você disse, porque o quarto é para outros reinados. Epopeias.

Preciso contar, meu amor, do roteiro do meu filme. Não é um filme qualquer, mas o da nossa vida. Sempre disse que daríamos uma novela (e riu), disse ou não disse? Enjoei do que estamos vivendo agora, uma chatice. Babaquice insatisfatória. Eu saio, trepo com quem quero. Você chora, grita, se desespera em silêncio. Depois finge que não se importa — essa sua pose é nojenta —, mas me olha gelada e se fecha, fica seca. Não tolero isso! Detesto ser obrigado, mas fazer o quê? Garanto que você pensa (lhe conheço bem), que posso ser  violento. Violências? Não. Meu direito de dono. Cuspo na mão. Cuspe? Tem coisa melhor. Nupercainal!

Tenho você de novo. Desvio meus olhos de seus olhares de bicho ferido. Não sei por que, pura cena. Nunca lhe faltou  o pão de cada dia. Mesa e cama. Sem reclamações, por favor. Querer gozar nessas trepadas na marra? Peloamordedeus.

Voltemos ao filme.

Você é a personagem principal: essa é uma chance única. De brilhar. De se fartar. Nada de viver apenas de remédio caseiro. Estou devolvendo seus 30 anos, sua plenitude de fêmea. Socializando! Pode sair com quem quiser, vero. Escolher entre todos esses homens altos e fortes que enchem seus olhos, pensa que nunca percebi? Isso me lembra o problema com  os garçons. Vergonhoso. Nem eles você deixa escapar. As intimidades... E não vem dizer que eu é que tenho mania de jantar todo dia no mesmo restaurante, não. Desculpa fraca essa. Você não pode ver um homem num raio próximo que o olhar perde a razão. Sem vergonha, sem cerimônia, coitadas das mulheres mais velhas de quem você roubou os momentos.

Lembra do flanelinha, que quis abrir a porta do carro, pensa que não vi sua piscada, hein? O sangue esguichando do nariz  e ele gritando, ô doutor, que que é isso brother? Coitado, parti pra cima. Achei que ia nocautear e o que lembro é o cheiro de mijo do chão, onde ele me jogou. O cara sabia box. Derrubado vergonhosamente. E você, inútil paisagem na Copacabana da meia-noite, chorou. Pediu: para. Implorou. Tudo sua culpa, da  volúpia escrita na testa, disse isso no primeiro dia em que lhe vi. É uma marca.

O filme.

Você passa a sair quantas vezes precisar. Fernandos e Paulinhos: seu gosto é eclético. Artistas plásticos e seguranças, o que de melhor há nos dois ramos. Gosta dos artistas e dos brutamontes. A sensibilidade às vezes não é macho o suficiente? Por que a pergunta? Durmo na sua cama. Quando você começou, eu já era rei do bas-fond. Ah, entendi. Convencimento, se achando a fodona. Menos, moça, menos.

Desenvolvi cuidadosamente seu papel. Rodriguiano esse filme. Minha cabeça  identificou-se com o Perdoa-me por me traíres, é isso. Você é a  jovem mulher de um homem  mais velho. Esse papel é o meu. Sou protagonista, roteirista e diretor, e ainda vou fazer a trilha sonora, meu forte, você bem sabe.

Casados e apaixonados, você e eu.

Um dia qualquer, chego em casa descaradamente vindo de outros regaços. Quero mesmo lhe jogar na cara. Você grita, esbraveja, se arrebenta. Cena banal. Venho rápido e, de repente, dou-lhe um tapa, só pra mostrar quem manda. Arrependido, corro e pego uma compressa de gelo, toco e beijo seus lábios rachados, lambo o fio de sangue. Vem cá, foge não, dá mais um beijo, o filme tá ficando bom. Assim: pronto.


 Cena 1

Hoje vamos inaugurar, com pompa e circunstância, essa nova  fase: casamento com muita liberdade. E não vem com essa história de amor incondicional, de corpo e alma, de que não existe outro homem pra você. Mentirosa. Por que acha que chutei, soquei por baixo das mesas, nas boates, nos bares, no meio da rua? Diversão para o povo? Ou para lhe fazer de vítima, aquela a qual meus amigos querem consolar? Lembra dos poemas que fiz nos guardanapos de papel, nas bolachas de chope, falando do seu temperamento infiel? Francamente, moça. Acorda. É um filme curto, pequenos takes.

Cena 2

Você tomando um banho de banheira, muita espuma. Sai do banho, veste uma saia curta (indecente), saltos altos, blusa decotada no colo e costas, daquele tipo que você usava quando nos conhecemos, e que proibi. Claro que você lembra! Mudar todo o figurino. Tudo novo, roupa de mulher honesta.

Acabando de se arrumar agora. Maquiagem leve, afinal seu ar nunca foi de michê da central, está mais pra sacana chique. Glamour. Está vestida, pronta. Vai sair. E lhe digo, leva com você todas as sacanagens que ensinei. Não vá me envergonhar, viu? Faça tudo comme il fault. Você entendeu, eu sei. Diria que está mais do que preparada para o papel, teve o melhor professor. Fiz de você uma mulher sabida pacas, qualquer um vai  apreciar.


Cena 3

Você vem se despedir de mim. Digo que também vou sair (minto descaradamente!). Que vou pegar minha agenda, aquela  que você nunca se permitiu abrir. Tão engraçado! Tantas vezes fiquei caído de bêbado na cama, no sofá. Morto, estirado e a agenda no escritório, cheia de telefones de mulheres e você, nada. Morreu de vontade de abrir e resistiu. Uma rocha. Uma bobona, isso sim. Lá na letra "E", ao lado de seu nome (tem uma xará), está escrito, entre parêntesis, "meu amor...". Vai. Nos vemos mais tarde. Relaxa e aproveita.


Cena 4

Levanto e vou levar você à porta. Sou um gentleman fodido. Quando você sai, sento no sofá, pego a garrafa, enfio o gargalo na boca, uma talagada desce pela garganta. Choro. Você não sabe, mas tenho saído nada, na maioria das vezes. O que faço é um jogo sádico. Machuca você e a mim. Mando, e então elas telefonam, a frequência é muita, não é? Já que é pra fazer, tem que fazer direito. Um dia desses, aquele meu amigo que é apaixonado por você, viu que era só cena. Que dispensei a mulher no primeiro instante depois do alô. Acho que ele vai lhe contar, estava com cara de que ia. Não se pode confiar em ninguém.

Os telefonemas, eu dizia. As vozes delas lhe assombram, sei. Recados na secretária  eletrônica que ligo logo que você entra no quarto. Brigar me dá tesão. Tira o seu, mas mobiliza o meu. Os recados do tipo: "gostoso, quero ver você, me liga". Puro prazer para mim. Já você é covarde, e estraga o jogo. Sai do quarto, e uma fera ainda por cima. Tive que mudar de estratégia. Usar a imaginação. Combinar as ligações para a hora em que você está. Então é só pegar a extensão, sem fio, lhe segurar num abraço forte, e colocar no seu ouvido as vozes. Então você chora me empurra, arranha: impotência pura.  Ha, ha. Já ouviu.

Quer saber por que faço isso? Punição. Você me amarrou, deu um nó. No meu pau, também. Agora como na sua mão. Só quero seu jeito de amar, seu entendimento das minhas fantasias, viagens, sensibilidade. Macho! Medo de, fora de casa, brochar no meio da história. Já pensou? E minha fama de garanhão, tão bem construída? Não foi isso que lhe trouxe pra mim? Não mente, sei que foi. Você era uma criança, dona moça.

Agora só faço fora, e muito raramente, o que me nega. Menages, que você não faz. Já até propus que  poderiam ser dois homens e você,  lembro seu olhar perplexo.

Acha o que, malucona? Seria seu fim. Sensata você ao repudiar tão violentamente minhas propostas, com seu "agora você passou de todos os limites". Engraçada. Caso concordasse, ao acabar a transa — não iria resistir a ver uma cena bonita assim — você morreria. Ah, estou enfeitiçado! Soco a parede. Aumenta a agonia, preciso de espaço, tou sufocando.


Cena 5

Levanto. Vou dar uma saída. Tem  uma floricultura  aqui perto. Vou comprar rosas e uma orquídea, amarelas. Sua cor preferida. Flores para você, meu amor, amor da minha vida. Para lhe receber quando você voltar. Mole, corada, com aquele seu sorriso de quem comeu e gostou.

 

Cena final

Toca o telefone, vou atender achando que é você. É um homem, um policial. Uma coisa horrível acabou de acontecer. Disseram que você tinha morrido. Atropelada na esquina aqui de casa. Ah, como chorei!

 

Dezembro, 2011

  

 

 

 

 

[imagem ©guy bordin]

 

 

 

 

Helena Britto Pereira (Rio de Janeiro/RJ). Formada em Comunicação Social pela PUC-RJ: "escrevo, penso, para cumprir destino. Meu pai, obstetra, poderia ter dito (parafraseando Drummond), quando nasci sem chorar e, logo em seguida, urrei: 'Vem, Helena, ser grega na vida'".