A despedida
Os outros não, mas a gente se beija. Não um beijo romântico, falo daquele de cumprimento entre amigos. Gesto que ele nunca oferece a nenhuma outra, apenas a mim. Não que seja por antipatia, é apenas o hábito do grupo. Mas comigo é diferente, a mim ele beija. Beija minhas bochechas quando nos despedimos, o que é sempre depois que os outros já foram. Porque continuamos conversando. Porque estamos muito próximos. Do grupo, posso assegurar, somos nossos melhores amigos.
Na verdade, não é bem um beijo na bochecha que damos, nossos rostos é que se tocam enquanto estalamos os lábios para o ar. Duas vezes, uma de cada lado. Mais que a intenção, o que vale é o movimento, o inclinar suave, quase hesitante quando ele avança e eu posso sentir o seu cheiro. Que é estranho mas me agrada, não sei por que, de algum lugar me conforta.
Além disso, ele é tímido, e adoro notar seu constrangimento quando chega a hora de partirmos cada um pro seu canto. É como se ele fosse mudo e eu uma professora da linguagem de sinais. Leio tudo no detalhe. Ele pensa que não diz, mas normalmente seus olhos me falam o seguinte. "Tenho que ir. Que pena. Como eu digo que chegou nossa hora? Ah, ainda bem que ela disse antes. Bom, então vou dar o beijinho de despedida. Melhor não. Ah, vou sim, a gente sempre dá". Eu tanto sei que a sequência é essa que dou minha contribuição no momento exato. Disso eu não tenho dúvida, nem deixo de cumprir meu papel.
Eu diria que não é um beijo romântico também porque ele é um rapaz comprometido, tem namorada. E eu uma moça correta, como dizem meus avós, recatada. Do contrário, acho que teríamos potencial para ir mais fundo. Ultimamente, por exemplo, antes do rosto, ele toca sua mão em meu braço, e posso sentir sua temperatura, invariavelmente acima da minha. Nesse instante sempre algo palpita mais forte. Às vezes acho que é ele, sinto o ritmo de sua pulsação. Noutras tantas não me engano, quase me engasgo de tanto que bate o coração.
Também temos aprofundado o beijo. Que mal pode haver? É esse o nosso momento, o único lampejo que temos. Se ele sabe, planeja, não sei. É possível. Mas duvido que não note. Desde a semana passada, ando acrescentando uma pimenta à nossa relação. Eu sei que falando assim pareço uma mulher casada. Vejo isso nas séries de TV. Mas pra mim, aquele breve caminhar depois da escola, até o ponto de ônibus, que sempre fazemos juntos, é o nosso casamento. Ali, apesar dos passantes, somos apenas nós, e um do outro. Embora com todo o recato, claro. Ou nem todo, algum.
O primeiro beijo agora eu sempre dou estalando minha boca em contato direto com a maçã do seu rosto. No início ele se surpreendeu, mas agora já o percebo movimentando a cabeça da maneira ideal, que é doce. É um menino-menino, o meu menino. Eu é que fico pensando em avançar mais. Mas logo me reprimo. E, então, o desejo retorna novamente. E por aí vai, vou, vamos. É culpa nossa o desejo? Tudo bem, confesso, na verdade eu já acrescentei mais emoção à nossa despedida. Secretamente quando trocamos o lado do beijo, calculo a inclinação exata do meu queixo e o instante perfeito de exalar a respiração. O faço de maneira que recaia sobre os pelinhos de seu pescoço uma baforada morna. Uma vez, por estar o meio-dia fervendo, inverti e soprei. Às vezeseu mesma me impressiono com a minha astúcia. Mas também a gente aprende tanta coisa na televisão. Quando inaugurei essa tática, ele se arrepiou tanto que balançou o corpo bruscamente. Quase me acertou uma cabeçada. Sua cara no mesmo segundo inchou de tão vermelha. Mas isso eu não vi, já que abaixei o rosto disfarçando o sorriso da vitória.
Aí vem o ônibus. Ele até deixa o primeiro passar, às vezes o segundo. O recorde que eu contei foi de três, da mesma linha. É como se fosse um disco voador cuja missão é abduzi-lo. Irrompe a esquina do nada, brusco e metálico. E quando freia grita agudo, estridente, só pra me irritar ainda mais. Mas esse é o meu sinal sonoro. Antes que ele se dê conta, eu já avancei sobre sua bochecha, geralmente com a minha mão esquerda se aquecendo em seu ombro. E repetimos nosso ritual em cada detalhe macio. Meu plano agora é fazê-lo arrepiar de maneira tão desconcertante que perca o ônibus mais uma vez. Quem sabe assim ele toma vergonha na cara e me acompanha até o portão de casa. Antes de partir.
Meia-luz
Era o crepúsculo. Ela se emaranhava em um nó de dores e desejos. Talvez o chamasse de saudade. Mas era só o crepúsculo. Alguns cientistas — ela havia lido certa vez — demonstraram que muito do que sentimos — aparentemente no âmago ou alma — é pura química corporal. E passou a pensar na paixão avassaladora como uma maldição, um ente cruel, um maligno alquimista de seu ser. Mas era só o crepúsculo. Nem ela, nem os tais cientistas — talvez alguns poetas apenas — entenderam o poder da meia-luz a se esvair. Toda nostalgia-depressão-ou-mera-tristeza será sempre filha do assombro da hora em que o dia cede ao breu. Até que a noite cai, esparramam-se letreiros, promessas e postes se acendem. Enfim, a luz novamente, ainda que outra. E torna tudo mais fácil, mais indolor. Ou pior, esperançoso. E depois a aurora.
A história de uma amizade que poderia ser
Um potencial também pode ter certidão de nascimento. No caso deste a maternidade foi um bar. E as testemunhas os dois personagens (talvez só um deles), com tudo aquilo que sempre há para além de sorrisos e olhares. Até porque aos outros que os rodeavam na mesa seria muito difícil perceber, envoltos que estavam nas próprias fantasias ou tentativas. Mesmo que um deles tenha esquecido depois, naquela ocasião os dois viram. E entenderam. Mais, vislumbraram, qual uma aparição, a beleza a escorrer pelo futuro através de algo que ambos tanto admiravam: a amizade sincera e enriquecedora entre dois homens.
É bem certo (e talvez esse seja o maior vilão da nossa história) que seus momentos de vida eram bem distintos. Na noite em questão, encontravam-se nas posições de professor e aluno a celebrar com a turma o término de mais um curso. Era, portanto, o professor homem de já algum prestígio entre os pares e mídia. Enquanto o aluno, apenas uma promessa que ambos acreditavam promissora. E, claro, as fagulhas desse dia comovem até hoje porque eram figuras de grande valor. O tal professor, por exemplo, era seguidor da velha tese de que ao se colocar no lugar de ensinar acaba-se aprendendo mais. Acreditava também que a difícil missão de questionar faz de cada aprendiz um protótipo de mestre a ser ouvido, função que o aluno cumpria muito bem a seu ver.
Mas isso tudo ainda é pouco. O que houve, aí sim, foi o bar, o momento preciso em que a possibilidade se anunciou imponente, aquela noite. Com as perguntas certas, as piadas certas, as provocações exatas e o fluxo. O fluxo de ideias, conversas, risos. O lubrificado pelo álcool fluxo.
Tudo interrompido, porém, à beira do auge. A existência de outros compromissos mais tarde, que acometeu ambos. O convite mútuo de acompanhamento, proferido simultaneamente, a hesitação em seguida, o desejo, quase romântico mesmo, aquela centelha de olhar fugido que não quer encontrar seu destino pelo simples medo de ter que perdê-lo em seguida. Ou por apenas antever o fim precoce, ali, no milimétrico instante disseminador do inevitável desencontro.
É porque eram homens ainda muito corretos os dois. Ou suas pretensões à época é que assim o eram, difícil dizer. O fato é que tinham outros lugares a estar, suas palavras a cumprir. Estas que depois descobririam (ou talvez apenas um deles tenha notado): valiam menos do que as que estavam prestes a perder, caso tivessem preferido um ao outro, o prazer do momento e seu caráter fundador. Pobres homens, tanto apreciavam e perseguiam alguma sabedoria — ainda que peculiar — e comportavam-se ali como meninos, que dão margem a irresponsabilidades por crer que ainda há muito tempo para repará-las.
Mas não houve. Porque tempo é menos o correr do relógio do que as oportunidades loteadas pelo acaso. E há o resto das vidas, um tanto rígido e trabalhoso no caso de homens, como já se disse, corretos (mesmo no instante do equívoco). Hoje, tanto tempo passado, se alguém perguntasse, um desavisado poderia jurar que são amigos. Ainda lêem-se um ao outro, trocam e-mails de elogios e meias palavras nos eventos em que se encontram. O aluno (eterno aluno) ainda se orgulha de dizer 'sou amigo do professor' quando seu nome surge às rodas. Mesmo sabendo que não o é, pelo menos não do jeito que são as coisas dignas de se chamar amizade. É (talvez) apenas uma forma de se aproximar do que poderia ter sido, amenizar o peso do irrealizado, quando este se materializa por dentro. E pouco importa, mesmo, no fundo ninguém nota a diferença. Talvez apenas os dois, pensa (ou menos, ele sozinho).
[Contos do livro Rubores. Rio de Janeiro: Oito e meio, 2012]