Générique de Fin
Foi quando comecei a ouvir o Générique de Fin. Que vontade de chorar que me deu, e, logo a gente, que é forte, se diz forte, tenta ser forte, se fortalece com tanta coisa árdua num dia. Pra chegar em casa e querer desabar com Preisner, ou agarrar-se a um fotografia de Camille Claudel e desejar voltar no tempo para interceder por ela junto a Deus ou qualquer coisa que o valha. Quanta tolice, quanta palavra que não se usa nessa minha cabeça, quanto som que não se escuta. Eles não escutam porque sabem que faz mal, sabem que quem não tampa os ouvidos e ainda ousa! gostar de uma sonoridade de morte é lançado de braços abertos para uma pedra fria dentro do escuro. E dizer "quero ser simples" agora adianta? Agora que eu tomei uma via — leiam bem, uma via. Como retomar tudo o que não me diz respeito porque eu jamais quis que dissesse alguma coisa de mim? Vem um choro comovido, completamente ridículo, completamente deslocado de uma era de represas, da cidade-concreto chamada Brasília, século-seco, vinte e um. Os sentimentos todos arrefecidos, encurvados como uma moça antiga sobre um piano ou um tocador ou um colo de amante. Eu, que sou forte, me sei forte, me quero fortalecido, nessas horas deságuo como se tivessem de mim apenas a funcionalidade de um vaso: serventia de aplacar as sedes; depois, um destino de louça em escuridões de armários.
Pretensões tantas, por que me deram? Ou me dei a mim mesmo um olhar de vaca, estirado sobre a paisagem, ciente do futuro de si e das outras vacas. A intuição do abate. Um reluzir de lâmina antes do sangue jorrando em cubas muito sujas.
Preisner ao fundo. Todo o drama da liberdade está liberto dos enunciados e das teses. Quis uma vez adentrar o árduo do cotidiano e poder cheirar no humano as mortes limpas que levam consigo. Foram raras. Dentro das figuras honradas há um humilhar-se eterno em posição fetal junto a cantos e insignificâncias. Dentro dos chamamentos de abraço, um espírito em posição de ave de rapina à espera. À espreita, à beira. Rondando as vidas alheias disfarçam caminhos próprios e conquistas próprias e escarram favores no lugar de auxílios e beijos. Sempre esguios e ágeis, sempre equilibristas na corda bamba que une uma maldade bem-disfarçada de benefício e um benefício ineficaz. Nós damos um jeito. Queria dar um jeito, acordar e lavar a cara e com a sujeira dos poros levar embora bem lavado o verniz de visionário. Ir ser lutador corajoso lá fora, de armadura de linho e algodão, de sapatos italianos, de posicionamento político, fiel a marcas, cidadão, praticante de religião, destaque acadêmico, consumidor de cultura, leitor de notícias, filantropo, quem sabe.
Mas não. Por mais que eu me arme e me invista de elmo e couraça, é a própria manhã que me violenta das formas mais insuspeitas e me deixa cada vez mais vencido para o proselitismo dos bem-aventurados e para a pieguice das rotinas bem-vividas. Uma certa luz contrastante à matéria grosseira torna a própria matéria invisível e o que está fora do tempo e do espaço assoma em relevância. Isso aconteceu hoje, quando cheguei em casa e a manhã acendia a um desfecho inevitável de autoimolação. O sol do meio dia engoliu a vida, ao som de Preisner.
Eu pretendia me redimir de divagações e pretextos de sonhador. Queria encarar de frente a simplicidade das tarefas e das responsabilidades, do dinheiro ganho e do dinheiro gasto, do amor conquistado através de tanta, tanta, tanta coisa alheia ao próprio amor.
Não é pra mim. A manhã suicida me lembra de ressurreições e a nostalgia de uma luz quase onírica das nove horas me remete a alguns lugares que nunca existiram. Amanhece de novo e de novo a noite engole o dia e regurgita. Preisner me desvia do caminho que eu ia tomar e que não era meu, mas ainda tenho inveja dos que não tomaram conhecimento da própria infelicidade. Camille Claudel aguarda entre uma carta e outra no interior de um pátio em Villeneuve-lès-Avignon. Pousa para uma fotografia com um olhar estirado de vaca. Sessenta e sete anos se passam e ainda assim aquele exato segundo persiste. Mas isso não me diz respeito, repito todos os dias, porque preciso situar-me em meu tempo e suas pequenezas grandiosas. Perdidas na poeira da História estão as pequenezas de Villeneuve-lès-Avignon. É necessário agora fixar mente e corpo nestas coisas contemporâneas. Preciso tentar mais uma vez. E outra. E outra.
Começo agora...
Mas há tempo. Meu pensamento embaça e retoma cores de uns lugares que nunca existiram. Antes que eu queira, também me perco na poeira e reclino a cabeça para sentir a música. Melhor deixar para outro dia.
Pequenas Cartas Azuis #5
Laura começou a lamentar-se muito, de novo. Está praticamente incomunicável. De vez em quando ela me deixa entrar em sua casa, mas recusa ajuda. Põe-se a falar coisas indecifráveis para a maioria das pessoas. Não sei dizer exatamente por que, mas há dias em que compreendo tudo, e esse nó que ela tem passa a ser meu também. Outro dia nós dobrávamos juntos os lençóis e ela disse o seu nome. Meus gestos pararam no ar e meu rosto também ficou imóvel. Depois fingi que não era nada e nos olhamos com compreensão, naquele silêncio. Acho que Laura sentiu por mim o mesmo nó que eu sentira por ela. O azul da manhã gritava claro sobre a nossa cumplicidade. Terminamos de fazer a cama e ela foi embora antes que eu tivesse coragem de abraçá-la.
Catherine Deneuve
Acercar-se dele era como conseguir ingresso para o filme mais badalado do festival mais badalado da cidade. A gente se perguntava como seria, uma vez platéia, uma vez acomodado entre tantos outros estranhos, um apagar de luzes que diminuiria a espera para revelar o encanto, a comunhão silenciosa, aquele compartilhamento feito projeção. Assistir ao desenrolar daquele moço em gesto e voz, em luz e cor, o seu corpo estático ou em movimento, ser eleito entre aplausos um especialista naquele moço. Escrevi ensaios, dediquei teses a ele. Jamais suspeitei que encontrá-lo fosse como ver um filme ruim com a Catherine Deneuve. Lá pelos trinta minutos, você percebe a direção canhestra, a pobreza do roteiro. Mas é um filme com Catherine Deneuve, então você quer assisti-lo até o final. Depois da sessão, aquele gosto de ter perdido alguma coisa muito boa que na verdade nunca existiu. Ali, naquele moço, foi o verbo quem matou a poesia. Só os olhos tinham alguma coisa de mágico. Só olhos eram cinema puro, mas deveria ter sido mudo para sempre para que se percebesse uma alma em eterno estado de graça. Só em silêncio é que ele era cinema. Carlitos indo embora numa estrada de terra. Expressionismo alemão, Nosferatu assomando sua sombra sobre a nossa cama. Se só o cinema salva, só os olhos é que eram cinema. O resto não interessa.
Aqueles olhos eram a Catherine Deneuve dele.
Imo
E foi que me doíam aquelas felicidades estranhas que, uma vez conquistadas tratam de hastear uma flâmula de incerteza e receio por cada território onde vicejam e fazem graça. Tal qual um rapsodo que passa pela cidade e ilumina um lugar e seu povo antes de partir para outro. E se ele retorna, depois que passa, as luzes das casas tilintam de novo com o mesmo frêmito de um primeiro poema?
De presenças, só sei saudades. Mesmo quando ele recita e o lume do verso me chispa o rosto na noite escura, é de saudades que me silencio e me abrevio. O depois engole a voz e com as cordas da voz o depois me enforca; o depois engole a casa e as luzes da casa o depois apaga. E atinge então a encosta, e a estrada. De perenidades, estradas.
Mas não se cala o verso a mim consagrado. Há que se memorizar cada letra, cada traço de voz que me risca o ouvido e me forma em sentido. Juntei-me de sentidos, quando ele veio. Cacos tantos, de incoerências fartas. Rapsodo do depois, me fica nas veias até seu emudecer e seu próximo passo para além da cidade. E a cidade volta a desconhecer luz e o verbo tilintar então só serve para copos e colheres alanhando rotina e vaziez.
Ele canta epopeias, eu relembro causos. Ele ressignifica meus sentidos e eu rezo permanência e exaurimento. Que se canse de vislumbrar cidades além da cidade onde seus pés raízam. Firmes, raízem, eu rezo. E me permito estranhezas de felicidades, temerosas alegrias, medos descompassados de fenecimento quando a sombra da mó assoma sobre trigos e joios.
O tempo me arranha os dentes e os ossos, e os versos prosseguem tanto quanto nos esquecemos da estrada e das outras cidades além da estrada. Tranquilidade só mesmo se eu fosse uma ilha. Vim a ser ilharga que o remanso ataca com gentileza e tepidez, pois é de ardil e de chasco a natureza das enseadas.
E me mantenho pétreo durante o dia; vítreo ao longo da noite. Erigido sobre uma canção da qual ninguém na cidade recorda direito: um navio naufragado que só relata suas travessias antigas a corais e cardumes. Crepuscular então, quando vitral perpassado pela voz de um bardo.
A noite dissipa as luzes quando dormimos. Eu me dispo de desconfianças e amuos, porque me acostumo até quando o canto está suspenso. (ressoa)
E foi que me doíam de propósito todas as coisas a que o tempo arrancava cores e cascas. Primeiro, em fuga precipitada. Agora, em consciência esperançosa. Destas a que o próprio bom senso se encarrega de fazer troça, mas que são resistentes a descrenças e gargalhadas.
O dia nos vira as costas e nos viramos na cama, um para o outro, norte e norte, leste de bruma amanhecendo vicissitudes e viscos. Ressoa, rapsódia inconstante e custosa: a volatilidade assombrada de certas coisas douradas, que ao golpe mais frágil deixam escapar tonalidades invisíveis desse mesmo ouro, em vibrações metálicas. Sinos que dobram em som, mas jamais em forma. Auras cuja volição secreta é o escuro, irrealizável e ainda mais leve. Ressonar que tremula não porque hesita, mas porque fulgura. Obstinação e permanência sobre os nossos ombros. Fica e trabalha. Depois da lida, o canto de ontem ilumina a casa, e os versos povoam o descanso compartilhado entre coseduras e desfiamentos de um impossível sudário.