"Ao som inaugural de uma palavra

Imprimirás a letra como um selo.

A parte evoca o todo e o elo lavra".

(Leonor Scliar-Cabral, "Alef",

Sagração do Alfabeto,  p. 15)

 

Em Sagração do Alfabeto1, Leonor Scliar-Cabral recria uma ampla aquarela poética revelando a essência de grafemas e instâncias sonoras que compõem o universo da linguagem e da escrita. Com engenho e arte, na intersecção entre a vasta experiência na área linguística e a expressividade da palavra poética, Leonor oferta um significativo tributo a uma das mais importantes realizações do homem: a construção do alfabeto. Como consigna a própria autora, no posfácio do livro, é lenta a trajetória da escrita, desde a fase predominantemente pictográfica (correspondente à tradução mimética da realidade do mundo), passando pela época da predominância dos ideogramas, até culminar com a produção da escrita fonográfica, em que uma única letra ou várias letras correspondem a uma sílaba ou a um fonema.

Nos 22 sonetos do livro, Leonor Scliar-Cabral apresenta rico instrumento verbal, depura-o e o refina ao máximo e, com ele, visita e revisita a beleza das letras hebraicas, que se transformam, com a poesia, em cintilantes frases, ideias, frações de tempo e pensamento. Alef, bet, dalet, guímel, hê e todas as que as sucedem recebem um poema que as retrata em sua doce singularidade, nelas navega e mergulha, entoando muito bem construídas figuras, de que emergem tintas metalinguísticas e reflexivas, enquanto a música se expande pelo tecido poético:

 

"da voz em solo grego: consoantes

e vogais costuradas em contraste

Nas cirandas infinitas das bacantes"

(Hê, p.39)

 

Ao homenagear o elo perdido entre os hieróglifos e o alfabeto fenício, Leonor Scliar-Cabral capta o momento em que um desenho é fixado para representar um determinado som — nesta melismática rede de correspondências, vai remando nas águas que conduzem ao abstraimento do desenho. Nesta segunda etapa, em que os sinais já não guardam relação com os referentes externos, poupa-se a memória e alastram-se os sistemas escritos e sua espetacular produtividade.

Para amplificar a proposta de resgate do elo entre as mencionadas fases do desenvolvimento da escrita e frisar os movimentos de criação/construção de linguagens e idiomas, Sagração do Alfabeto apresenta tradução dos poemas escritos para francês, espanhol, inglês e hebraico, a cargo, respectivamente, de Marie-Hélène Torres, Walter C. Costa, Alexis Levitin a Naama Silverman-Forner.

A edição em cinco línguas potencializa, evidentemente, a materialização do projeto poético de Leonor Scliar-Cabral. Em suas faces geradoras de novas interfaces e reverberações de espelho, a palavra poética conhece e reconhece seus átomos e moléculas componentes e alcança a consciência de sua ancestralidade, plena em cada momento único, aceso, transmutante e ao mesmo tempo re/des/velador. A completar com elegância a delicada concepção do projeto inserem-se as significativas ilustrações e a capa de autoria do também poeta e artista plástico Rodrigo de Haro.

Em "Kaf", a poeta alude às libélulas que "tremulam e semeiam o pólen das canções, o som dos bardos" e a ilustração de Haro sublinha a natureza da forma e a volatilidade da letra hebraica, a cada abertura de asas, como se fosse uma libélula a deixar camadas de desenho, rastros de sombra e cor pelas bordas de um papiro inaugural.

Em Gramáticas da Criação, diz George Steiner: "No coração da forma, habita uma tristeza, um traço da perda"2. Reconhecendo a beleza do projeto poético de Leonor, e reconhecendo no livro a vocação poética da autora, sua enorme cultura linguística e a tradição judaica, escreve Moacyr Scliar no prefácio à Sagração do Alfabeto: "De certa forma, Leonor recupera a tradição da Cabala, que, como sabemos, valorizava cada letra..."  e "... recupera em cada letra o seu simbolismo histórico e o usa como inspiração para seus poemas. Que, como diz o primeiro destes ('Alef', naturalmente — que Borges, autor de um livro com o mesmo título, aplaudiria de pé, "rompem ígneos os enigmas do tempo"3.

Aliterações, assonâncias e surpreendentes efeitos sinestésicos se multiplicam pelos vinte e dois sonetos do livro — sim, sonetos — em que a forma, em seu aparentemente rígido conjunto de fronteiras, expande, paradoxalmente, o alcance desta poesia de grafemas consagrados, pois sugere e mimetiza a fixação da escrita e com ela traça, ressalta e fertiliza um panorama de analogias infinitas.

A voz da poeta dá passagem ao som. A música dá forma à dança das letras que conduzem às sílabas. E, das hastes que compõem as letras, brota um corpo semântico e por vezes mimético. Da luz de ser tecido em fios anagramáticos. Das ideias e da experiência real que precede toda e qualquer forma. Forma de dar o nome. De fixar o tempo de cada nome.

Em "Babel e Desbabel", prefácio de Haroldo de Campos ao volume "Éden", que reúne várias de suas traduções/transcriações bíblicas (Antigo Testamento), o próprio tradutor alude à Gramatologia de J. Derrida, lembrando que, na referida obra, reporta-se o autor ao Dicionário Filosófico de Voltaire: "Babel significa a cidade de Deus [...], nome que os antigos davam às suas capitais". Escreve Haroldo: "O autor da Gramatologia sugere, a partir dessa interpretação, que "o nome de Deus Pai seria o nome dessa origem das línguas"4.

Nas esquinas e ressonâncias da câmara babélica, Leonor Scliar-Cabral, recompõe incandescências em sua força textual. Ígneos-desígnios de água-fogo, guardando a dissonância dos contrastes, liberam as trilhas do código de segredos. Já não segregam, mas irrompem íntegros para a pupila e para a "boca oracular". Em impressionante jogo semântico e fonético com o adjetivo ígneo, a poeta lança mão do fogo primordial, para de/re/signar o que projeta:

 

"o círculo completo, a mandala,

Testemunha ocular, a perfeição,

o múltiplo dos múltiplos, cabala."

("Áyin", p.105)

 

 

Notas

 

1 SCLIAR-CABRAL, Leonor. Sagração do Alfabeto. São Paulo: Scortecci, 2009, 1 ed., 176 págs.

2 STEINER, George. Gramáticas de Criação. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D'Água, 2002.

3 SCLIAR, Moacyr. "A cabalística e genial poesia de Leonor Scliar-Cabral" prefácio à Sagração do Alfabeto. São Paulo: Scortecci, 1ª. ed. 2009, p. 11-12.

4 CAMPOS, Haroldo. Éden — Um Tríptico Bíblico. São Paulo: 2004, Perspectiva, Coleção Signos, vol. 38.

 

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O livro: Leonor Scliar-Cabral. Sagração do Alfabeto. São Paulo: Scortecci, 2009, 1 ed., 176 págs.

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dezembro, 2012
 
 
 

 

 

Beatriz Amaral. Mestre em Literatura e Crítica Literária, musicista e escritora, publicou nove livros, entre os quais Planagem (1998), Alquimia dos Círculos (2003), Luas de Júpiter (2007).
 
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