Arranjos de Pássaros e Flores é livro mágico, é livro de poeta-alquimista, um Wilmar Silva a fazer fluir rio carregado de poesia por entre palavras-seixos, palavras-árvores, flores, fogos, pássaros. Fabrício Carpinejar dissera com propriedade que o poeta mineiro Wilmar Silva não repete o roteiro de Manoel de Barros, e sim o enriquece com novos atalhos, dialogando com a conterrânea matriz rosiana. Pois o caminho do poeta nascido em Rio Paranaíba, Minas Gerais, se apoia na força de original linguagem poética para incendiar todos os limites entre o ser-interior e a natureza-exterior, ao provocar forte transfusão alquímica entre as presenças da natureza, animadas ou inanimadas. O eu-poético se faz, assim, mundo natural, eu, riacho alcanço o cerrado, eu-pássaro vadiice só eu me junco, eu, pássaro/preto imito a dança do vento e algas enleadas nos cabelos, eu – lobo insone entre Amapola, eu — dreno melros de cetim. Tudo se corresponde, tudo se enovela em formidáveis labirintos cósmicos, tudo se zenbudisma na sagrada percepção de mágica imanência, beleza pulsante da figuração natural. Euave/ liquefaço. E, sobre todas as coisas, sopra o hálito erotizado que muitos chamam vida, eu — errante sujo de inseto, eu foz de orgasmo no festim floral, eu — coruja velejo teu corpo de orgia. Pois o convite fundamental é que mergulhemos com toda urgência no rio carregado de palavras-gravetos, palavras-estrelas, palavras-mitos (eu — ícaro agregado à cera e madeixa no precipício da alcatéia, para o ilimitado navegar de verbos sem direção (plâncton-me, zoológico-me farfalho tórrido), alquimia profusamente mineira, universal, Wilmar Silva e timoneiro, sim, eu hipocampo e fugaz — sou ave que exaure cavalo ao vento. Sim, sempre adiante, espantosa poesia viajante, poeta-diamante.

 

 
Afonso Henriques Neto (Belo Horizonte/MG, 1944). Poeta. Participou de várias antologias e publicou entre outros Abismo com violinos (São Paulo: Massao Ohno, 1995), Eles devem ter visto o caos (Rio de Janeiro, 7Letras, 1998) e Cerveja no dilúvio (Rio de Janeiro, 7Letras, 2011). Vive no Rio de Janeiro. Desde 1976, é professor do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense.

 

 

 

 

 

 

 

Arranjos de Pássaros e Flores é prova inequívoca da maturidade de Wilmar Silva, um dos principais poetas em atividade na cena literária contemporânea brasileira, a despeito das dificuldades de circulação do objeto poético tanto nas livrarias como no âmbito acadêmico, que ainda insiste na valorização necessária, mas não logicamente única de cânones defuntos.

O titulo, em um primeiro instante, pode remeter à expressiva e elegíaca poesia do mato-grossense Manoel de Barros. A impressão logo é desfeita e os leitores descobrem estar diante de poemas anfíbios, que lembram, em alguns instantes, a poesia vegetal, animal e cerebral do francês Francis Ponge, sobretudo os textos de "A Mesa" e "O Princípio das Coisas".

A natureza não é mera coadjuvante dos arranjos ornitológicos e florais de Wilmar Silva. Desde pequeno, o menino de Rio Paranaíba, insistia em ouvir com atenção o pio dos pássaros, o murmúrio do vento, a sagacidade das águas, o movimento da terra. Tamanha sensibilidade foi desenvolvida, mais tarde, através do teatro e da performance, pois o palco é o complemento ideal às propostas literárias do artista, que merece ser cada vez mais conhecido.

No seu livro anterior, ANU, Wilmar Silva já apostava nas transcendências do literário. Assim como o maranhense Ferreira Gullar em "O Formigueiro", obra do final da década de 50, ele explodia as palavras no espaço livre e aberto da página em branco. Letras, sílabas e fonemas sofriam densa metamorfose em signos novos, especiais, transgressões de limites previamente estabelecidas.

É a agrolírica de Wilmar Silva, após suas intensas reflexões sobre o desordenamento da linguagem, lugar por excelência do embate, luta corporal entre forças centrifugas e centrípetas que ecoavam na própria estrutura, nada linear, dos poemas. O universo de seres e coisas que maravilha o poeta está anos-luz da verborragia urbana, do caos e transe de errâncias sem referências, almas-fantasmas à procura da raiz do belo, tão sumida entre nós, escravos das idiossincrasias e fluxos temporais.

Wilmar Silva não tem vergonha de sua natureza interior, da arma telúrica e local, melhor forma de se combater as artimanhas do global. O quintal do poeta é um arsenal de esperança, onde planta, como bem nos ensina o pensador francês Jacques Rancière, uma política da escrita, cujos frutos são sintomática celebração da utopia.

O poeta constrói seus mineiríssimos ikebanas, sem o temor da palavra Minas, já tão desgastada em discursos de políticos, letras de música, modos de usar, medos de ousar. Ao contrário, Minas surge com força total nos arranjos de girassol, jasmim e quaresmeira. "Agridoce avoante beija-flor", Wilmar Silva vira pétala de flor de bico de andorinha, transformações a favor e em nome da linguagem, essa sim a grande beneficiada pelo alto nível de pesquisa experimental do autor.

Em alguns momentos, a seiva textual de Wilmar Silva é um recuo ao Medievo. As cantigas d'amigo e a pureza provençal, destacam-se no fio tênue entre ancestralidade e modernidade em que pode ser enquadrado o verso vital de Wilmar Silva. No último poema desse livro-calendário, define-se: "eu-menino-do-campo, te faço conviva/ e digo que a palavra que escrevo é/ origem, invento gaivotas no sertão". Não preciso dizer mais nada.

 

[Escrito em 2002]

 

 

Alécio Cunha (Boa Esperança/MG, 1969-Belo Horizonte/MG, 2009). Formado em jornalismo pela FAFICH/UFMG em 1990. Atuou na revista Istoé Minas e no Jornal de Casa. Desde 1995, é repórter da Editoria de Cultura do jornal Hoje em Dia, em Belo Horizonte, onde também é cronista e crítico literário. Publicou os livros Lírica caduca (Belo Horizonte: Editora Por Ora, 1999) e Mínima memória (Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2007). Participou das antologias Cinema em palavras (1996), O achamento de Portugal (2005), Pelada poética (2006) e Terças poéticas (2006). Foi professor de Cinema na PUC-Minas de Arcos/MG.

 

 

 

 

 

 

 

Insólito exemplo de poeta rural, com um forte pendor medievalesco, Wilmar Silva apresenta, neste seu novo livro, sua "velha" obsessão com a terra e suas coisas, a incontrolável vontade de verbalizar um mundo "analfabeto", situado do lado de fora do sistema escrito, plantado no chão. Aqui encontram-se 31 cenas em que o poeta procura "arranjar" o turbilhão de imagens puras, profundamente brutas, sem a malícia nem a maldade do cenário urbano, imagens de um mais-aquém deste "tempo de partido" (Drummond) em que vegetamos, emudecidos, despotencializados, com pouco ou quase nenhum sentido. Indiferente a qualquer ideologia, seja ela negativa ou positiva, como que apegado a uma despolitização estratégica, que acaba por ser uma politização poética, Wilmar Silva deseja vivenciar uma espécie de "tempo do todo", uma totalidade perdida no curso da história; deseja, como os românticos alemães, religar-se a uma instância cultural da qual foi arrancado, regressar ao seu mundo originário. O poeta sabe que, no fundo, esse retorno é impossível, mas tenta, insistentemente tenta, revelando o estado crítico de um desejo, o estado de crise que tem caracterizado seu gesto poético.

 

 

Anelito de Oliveira (Bocaiuva/MG). Poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e editor brasileiro. Doutor em Literatura brasileira pela USP e Mestre na mesma área pela UFMG. Criou e editou o jornal "Não" (1994/1995) e a revista "Orobó" (1997/1999). Editou o Suplemento Literário de Minas Gerais (1999/2003). Publicou Lama (2000) e Três festas: a love song as Monk (2004), oganizou a antologia Fenda 16 poetas vivos (2001) e colaborou com inúmeras publicações. Concebeu e coordenou vários eventos sobre africanidade no Brasil, como "Afrologias" (1995), "Barracação" (2003) e "Alma negra" (2005). É professor e pesquisador na Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Bloga em www.anelitodeoliveira.blogspot.com.

 

 

 

 

 

 

 

Os imitadores sequestram o autor original e cobram um resgate baixo, desvalorizando a vítima. A estranheza se transforma em regra e o que era motivo de adoração e exclusividade vira moeda corrente. Clones surgiram aos borbotões na poesia brasileira, de Cabral, de Drummond, dos concretistas. Manoel de Barros foi a última vitima do saque. Como se arrombar a gramática e transformar verbos em substantivos produzissem atributos suficientes para qualquer um chegar à grandeza do escritor do Pantanal. Estilo não se copia. Ninguém vai produzir coca-cola transcrevendo sua fórmula. O poeta mineiro Wilmar Silva é uma surpresa neste cenário de homens duplicados. Não repete o roteiro de Manoel de Barros, e sim o enriquece com novos atalhos, dialogando com a conterrânea matriz rosiana. Seu décimo livro Arranjos de Pássaros e Flores encanta pelas dificuldades do trajeto. É sua melhor obra, depois dos interessantes e experimentais ANU (2001) e Pardal de Rapina (1999). Descreve 31 dias em um jardim durante o inverno, no mais cruel dos meses, propondo cenas minúsculas do mundo vegetal. Da "lavoura de pétalas", define o caráter dos moradores. Apanha as minúcias de uma estação difícil às plantas, em que o homem procura o recolhimento. Só que ele vai atrás do que o homem não procura. Ao contrário de se trancar em casa, a voz poética se sujeita ao descampado. Não faz a ousadia das travessias dos grandes rios, mas traz a resistência navegável de um igarapé. O que poderia ser paisagismo ou beletrismo acaba sendo volúpia verbal. São detalhes que diferenciam uma cena da outra, a natureza muda de acordo com a proporção da chuva e da neblina.

 

 

Agropoema

 

Os poemas retratam o limiar do sangue; primeiro, diante das árvores, depois das marés de folhas e galhos. Wilmar Silva realiza um metapoema rural. O jardim orquestrado é mais mato do que estufa. "Eu rumino de capim." Diferentemente do lirismo deslumbrado, que se submete aos caprichos da natureza, ele estabelece aquilo que Anelito de Oliveira caracteriza como "estado crítico do desejo". Não se encontra a nostalgia da harmonia, a idealização romântica e a passividade contemplativa, mas a intervenção fônica, o guerrear visceral, a impureza do convívio, a doação do caos e as perdas resultantes do hibridismo e da fusão literária. Fratura-se a linguagem e o osso é prontamente recolocado no lugar, sem gritos e traumas. Vigora uma inquietação insubordinada, um ruído onírico entre o narrador e o retrato, até porque nenhuma observação imutável é verdadeira.

Wilmar Silva confere à poesia o ingrediente cítrico da prosa, o fraseado acontece como uma irrupção da inconsciência, correnteza gramínea, que mais se enriquece quando transgredida e devastada. Eis o começo do verbo: fertilizar, fermentar e coagular o terreno do verso. Rescrever o texto a partir de suas próprias sobras e sombras. Fazer adubo da saliva e da secreção.

Os poemas efetuam o paralelo de diferentes aves com o cardume de flores, como pica-pau e flor-de-lótus ou de jandaia com crisântemo. Provoca o contraste do alto com o baixo, o embate do céu com o chão, expressando os humores e a fúria de um casal amoroso. O homem representaria a função etérea ("quase bicho do mato") e a terra, o elo feminino ("origem da água". No ambiente de luxúria e de contágio, o erotismo se faz presente, movendo as cartilagens do solo e se impregnando de uma vaivém da clareza com o obscuro. Declarações somo "olivas para enxaguar teu corpo" são seguidas de "eu, influência,/lavo teu corpo com a própria lima". O encaixe consiste em fixar a erosão, despetalar o deserto, desertificar a flor. "Erodir e mais do que desmatar,/ eleger o mesmo pântano." Apesar da possibilidade de ser confundido com o barroco, o que se vê é uma cadeia enxuta, horizontal, mínima. O moto-contínuo é cultivar o possível, a matéria próxima.

Ocorre uma mesma deformação sintática, já vista em Barros e Rosa, como "te tálamo", "zoológico-me", "euave", "plâncton-me". Com Barros, o poeta guarda a afinidade com o ermo e o erro, tanto que "sujo de inseto" (Silva) se aproxima muito do "sujo de mato" (Barros) e o título Arranjos de Pássaros e Flores (Silva) de Arranjos para assobio (Barros). A diferenciação está na valorização da cadência sonora, melódica, insular, em detrimento da fulgurância da imagem. A pintura e as metáforas visuais permanecem em segundo plano, prevalecendo a metamorfose oral, o coração rítmico, o emaranhado sensual. Tampouco se verifica mensagens aforísticas, juízos, explicações ao poema e instruções teológicas e telúricas, como no autor matogrossense. Escrita polifônica, que muda com rapidez logo ao se declarar. "Idiomas que olvido a todo instante." O testemunho em primeira pessoa dá a sensação do eterno desenlace. Wilmar Silva utiliza o "eu"como magia evocatória, declarando a transformação: "eu-riacho", "eu-pássaro", "eu-ícaro". Na maioria das vezes, reafirma a identidade no início do discurso, estabelecendo uma mudança de rota. Veste e desveste o corpo no jardim das delícias.

 

 

Fabrício Carpinejar (Caxias do Sul/RS, 1972). Poeta. Prêmio Nacional Olavo Bilac 2003, da Academia Brasileira de Letras, com Biografia de uma árvore, escolhido o melhor livro de poesia de 2002. Prêmio Erico Verissimo 2006, pelo conjunto da obra, da Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre. Outros livros publicados: Caixa de sapatos (2003), Como no céu/livro de visitas (2005, finalista do Prêmio Jabuti na categoria Poesia), Meu filho, minha filha (2007). Prêmio Jabuti 2009, na categoria Contos e Crônicas, com o livro Canalhas. Site oficial: www.carpinejar.com.br. Blogue: http://www.carpinejar.blogspot.com.

 

 

 

 

 

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O livro: Wilmar Silva. Arranjos de pássaros e flores.

Belo Horizonte: Orobó Edições, 2002, 1.ed. | Belo Horizonte: Asa de Papel, 2011, 2.ed.

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março, 2012