Pensamentos e arredores

 

 

tentava desvendar aquela imagem
olhos fundos, um riso quase alegre
navalha e carne entre as gentes.

gostava de acompanhar seus passos
nas manhãs de inverno
dividíamos a fome das esquinas
sem aquecedores,

chafurdávamos o limo
exorcismávamos o ranço
outorgávamos às horas
estranhos frascos e perfumes.

 

 

 

 

 

 

Epitáfio

 

 

houve um tempo que a sombra apascentava

que o fruto era farto doce

que as raízes desafiavam os ventos

 

arbusto sobre.tudo agua(rda)va em silêncio

brotos rebentos de frutos

apodrecidos

 

hoje solo semente

 

 

 

 

 

 

Fluidez

 

 

Acordei com o sal da palavra.

Logo hoje, dia de deslembrar,

Invade-me traçado 
Um corpoema.

Acordei com o sal da palavra.

Toda a metáfora liquefeita

Entre os vãos 
De minhas coxas,

Vontade de escorrer

Sem margens.

 

 

 

 

 

 

Ouse


 

 

É preciso um silêncio, uma febre, uma pena: 
Arrancar a pele mil vezes, revirar o estômago; 
Prescindir de perfurar os olhos,
De enfiar nos bolsos todas as pedras.

 

 

 

 

 

 

Pulgas de concreto

 

 

Urinavam-se mutuamente para demarcar 
território: eram cães que rosnavam no
 
asfalto farejando as próprias mortes.

 

 

 

 

 

 

Linha azul

 

 

Tocavam-lhe os pulsares

Íntimos olhares clementes


Onde a linha era azul

E os nacos de tempo

Tapetes de liberdade.

 

 

 

 

 

 

Leitura suicida II

 

 

Debruço-me sobre ti

(uma fome de mil bocas)

como se a espumar

onda que arrebenta

e lambe arrecifes.

 

 

 

 

 

 

Do falo à fala

 

 

Meio loucas, meio santas

Rimam alternância

                       Lua

                          Sol

 

Meio putas, meio mantras

Freud em si

                Menor

                       Bemol

 

Da penumbra à(o) Alvorada

Fiam rapadura

      Dão a cara à tapa

              Parem rouxinol

 

 

 

 

 

 

O bonde

 

 

O tempo impreciso, necessário

Anda às voltas — turbilhão;

 

Deixa rastro de estrelas

Todas idas nalgum bonde

Caleidoscópica estação.

 

As cidades iluminadas

Mais parecem lá do alto

Liturgia, profissão;

 

Arrebentam todo dia

Os que acordam em romaria:

Bando de arribação.

 

Ecoam pelo sagrado

Medos, martírios, brinquedos

— Marionetes de colisão:

 

Há na fugacidade

Uma gente dissonante

Passos simples, claudicantes

Que se vinca em contramão.

 
 
 
 

Incondicional

.

 

Encontrar-te é prazer

imbricado à dor.

Houvesse possibilidade, 
arrancaria teu grito

— iria enfiá-lo 
em minha boca,
acostumada que sou 
com sons 
entredentes;

libertaria teu canto 
de passarinho.

E, passaria.

 

 

 

 

 

A fome de cada um

 

 

A fome que nos rege

Alimentada de lombrigas

Escoa pelos vasos

Da sociedade gastronômica

 

Fezes, ratos, outros grilos

Entopem esgotos

Que transbordam

Aos bramidos

 

Nos púlpitos, súplicas se alastram

Nas públicas, ações se arrastam

Nos púbicos, alguns gozam

[Enquanto p(h)odem,
Outros sangram

 

 

 

 

 

 

Embrulhado em papel de pão

.

 

Tomei um porre na esquina

Daquele que entroncha o sujeito

Senti o ar rarefeito

Formigamento na mão

Fiz uns versos, umas rimas

Esvaziei o segredo

Trancafiado no peito

Cuspido em papel de pão

 

Empolgado, dei vexame

Subi no banco da praça

Declamei com água nos olhos

Pra quem só fazia achar graça

Aqueles versos na mão

O papel todo amassado

Ali desvendava o mistério

Eu, homem sério

Trôpego de paixão

 

Quem não conhece essa flor

Desdenha de minha dor

Oferece remédio

Mulher cheirosa, fogosa

Que geme o nome da gente

Mas minha paixão renitente

Prefere ranger o dente

Cuspir em papel de pão

 

Quem sabe um dia ela ouça

Meus versos, minha prece

Sorrindo, logo se apresse

Cuspa em papel de pão

Um bilhete mais que sentido

Dizendo que de ouvido

Soube de minha paixão

E aceita casar comigo

 

 

 

[ imagens ©jérôme ]

 

 

 
 
Lou Vilela: "Lou é pseudônimo; Sandra é marca pessoal, escolha de mãe; Vilela, herança de pai. Nasci em Natal/RN, mas resido em Recife/PE, desde a infância. Administradora, Especialista em Logística. Uma das integrantes do livro Maria Clara — uniVersos Femininos, editora LivroPronto (2010). Possuo poemas publicados na Agenda da Tribo (2012/2013), e em diversos sítios na internet. Edito os blogues Nudez Poética e Ritmos e Rimas — este último direcionado ao leitor infantil. Lunática, patética — nos intervalos, dialética. Move-me uma fome de horizontes: à procura da forma singro mares ins.pirando nau.fragios, auroras, crepúsculos, silêncios... — faço-me moinho de ventos: sopro (re)versos".