*

 

a manhã nos obriga

a chorar

sempre

 

esquecer

a tosse noturna do filho

 

a urgência

do amor

 

o verbo

nosso pai

o silêncio

nosso filho

 

nosso rito diário

de esquecer

 

 

 

 

 

 

*

 

não sei verbalizar
o abismo

sei cair
dentro dele
como dois olhos que eu avisto e temo

e o chão se demora —
amor —
a tocar meus pés

 

 

 

 

 

 

*

 

te amo
de bom sono

acorda
o que tenho
de melhor
entre as pernas:

o pensamento

 

 

 

 

 

 

*

 

estou farta
de pessoas
que não vêm

esperar os filhos à mesa
esperar que tudo dê certo

esta casa está em desordem
e não há sequer um canto
para abrigar a paz

escrevo com muito medo
de que os homens saibam
que a mesa não está posta

e eu não limpei
o leite derramado

 

 

 

 

 

 

*

 

é uma cidade muito pequena

para tanta distância

 

é preciso

ir devagar

com os cuidados, meu pai

 

devagar com os cuidados

 

é uma cidade muito pequena

para caber tanta dor

 

 

 

 

 

 

*

 

I.

acredite pai
como dói esse braço de mar

muito mais que sua ausência



II.

nunca foi boi
nunca te doeu
um pasto na alma

são estas coisas —
muito mais
do que seus olhos

 

 

 

 

 

 

*

 

aprende
a hora
das coisas

à certa altura
elas têm boca
mãos incríveis —

tu te sentes uma harpa

à certa altura
as coisas têm olhos
que tu nunca
vais esquecer

 

 

 

 

 

 

*

 

permanece na língua
o sabor de lima

e é doce —
como diz a memória

fruta
colhida
fora do tempo

 

 

[Poemas inéditos]

 

 

 

 

 

esquecer
as palavras
para pôr
na carta

lembrar apenas
a invisível
arquitetura
da mudez

 

 

 

 

 

 

*

 

de novo
dia

alma de hortelã
e névoa

o silêncio perdoa
meu corpo
magro
perdoa o homem
que se foi

é setembro

basta uma oração
e é manhã de novo

 

 

 

 

 

 

*

 

depois da dor
o filho dorme
com doçura

tento não me
perder
na sucessão
de batalhas

se escrevo
é por medo
de compreender

 

 

 

 

 

 

ABSTRATO

eu nunca beijei um poema.

no entanto ele está aqui
roçando leve minha
boca

nas horas dos
mais
doídos
silêncios

 

 

 

 

 

 

RESISTÊNCIA

um pote cheio
do furor que escorria dos teus olhos
guardei

porque gastamos todas
as nossas mãos

e restou inteiro
esse sentimento
enrugado

que não
passa

 

 

 

 

 

 

INTIMIDADE

um pequeno itinerário de passos
uma claustrofobia acariciada
gente que todo dia me bate
à porta e entrega-me os
cílios meus que encontraram
na calçada...

o dedinho de uma linda preta
com quem dividir os cílios caídos
com quem dividir o medo
de não sobreviver e de sofrer
a violência das crianças na escola.

aquela voz grave todas as manhãs
todas as manhãs
aquele cheiro só
aquele cheiro de capim chovido
os olhos negros do meu pai
e uma cidade íntima
soluçando dentro de mim.

 

 

 

 

 

 

CESARIANA

               para Pedro

seus pequenos olhos
cor de aurora represada
ainda que um dia se afastem
ficarão

nessa pequena cicatriz

 

 

 

 

 

 

NASCENTE

córrego
cachoeira
ribeirão

eu choro
pra pertencer à paisagem

 

 

 

 

 

 

*

 

difícil supor
com quantas mãos se tece
a solidão

porque se diz mais nobre
uma mão que segure
apenas filhos

porque olhando
ao longe
os lajedos não tem fim
e ardem calados
sob o sol

 

 

[Poemas do livro O silêncio tange o sino. Ateliê Editorial, 2010]

 

 

 

 

 

[imagens ©marg]

 

 

 

 

Mariana Botelho (Padre Paraíso, Vale do Jequitinhonha/MG, 1983). Poeta. Publicou em 2010, pela Ateliê Editorial, seu livro de estreia, o silêncio tange o sino. Tem poemas publicados na revista Ciência e Cultura, da SBPC (2009 e 2010), no Suplemento Literário de Minas Gerais (2010) e em diversos sites literários. Participou de eventos como o Festival Internacional de Leitura de Campinas (2009) e ZIP/Zona de Invenção Poesia & (abril de 2010, no Centro Cultural da UFMG e maio de 2010, na Casa UNA). Participou como convidada do poeta Ricardo Aleixo do projeto "Sentimentos do Mundo", promovido pela UFMG. Em 2011 foi ao ar, na Rede Minas, o programa Imagem da Palavra, dedicado à sua poesia. Escreve no blogue Suave Coisa [ http://www.quelevequenada.blogspot.com ]. Vive em Belo Horizonte/MG.