Ele acordou com um forte zumbido no ouvido direito. Era seu passado querendo sair pelo buraco peludo da orelha. Quando criança, costumava brincar de rodopiar até provocar zonzeiras, às vezes, crises de vômito. E ele sempre rodopiava para o lado direito. Até que, adolescente, atravessou um período de terrível má sorte e deduziu que se rodopiasse tudo de novo, só que para o lado esquerdo, as mazelas daquele momento se dissipariam. E como ele não brincava mais de rodopiar havia anos, pensou que seria até divertido. E assim o fez, rodopiou a tarde toda para o lado esquerdo. Dessa vez, no entanto, não conseguiu vomitar. Teve uma infernal ânsia por dois dias seguidos, mas nada de vômito.

 

Sessenta anos se passaram até que ele acordou com um forte zumbido no ouvido direito. Ele sabia que era uma ânsia de ouvido. Tomou seu desjejum e foi ao médico otorrino da vizinhança. Notou que havia enfermeira nova no consultório. A cara dela era medonha de feia, mas para compensar tinha um traseiro até que nada mal e peitos que quase saltavam do uniforme enquanto ela enfiava a seringa dentro de sua orelha. Quando virou a cabeça para que toda a cera saísse com a água morna, ouviu-se um tilintar na bacia de alumínio. Era um pedaço de unha pintada de azul. Ah, os anos 70! Ele estava com seu violão tentando ensinar uma jovem a tocar a música "Moonlight Drive", do The Doors e quando cantavam "let's swim to the moon / let's climb through the tide / surrender to the waking world / that laps against our side" a unha da jovem, pintada de azul, quebrou-se nas cordas desafinadas e caiu no buraco do violão. Naquele tempo não existia esmalte da cor azul, então as moças fabricavam os seus, misturando tinta de caneta Bic com base transparente.

 

E agora aquela unha estava ali, diante da enfermeira, que fez uma careta tenebrosa ao ver sair de dentro de sua orelha um pequeno esqueleto de rã. Ele teve uma namorada no colegial que adorava anfíbios e aquela havia sido a primeira rã que dissecaram juntos. Na época, a tal namorada conservou em formol o pequeno coração dessa rã e disse que carregaria o vidrinho por onde fosse, como prova de amor. Em troca, ele retribuiu o afeto dando um aquário cheio de pequenos girinos, dizendo-lhe o quanto eles se pareciam com espermatozoides. E de repente será que ela não queria bater uma punheta pra ele, guardar a porra num potinho e depois olhar no microscópio para ver se espermatozoides realmente se parecem com girinos? A namorada ficou tão ofendida que espatifou o vidrinho com o pequeno coração da rã e pisoteou tanto nele que virou uma meleca de carne moída no carpete. Algum tempo depois, a namorada enviou-lhe uma caixa cheia de sapos-boi, com um bilhete advertindo que os girinos do aquário haviam crescido e que a raiva dela também estava inflada como o bócio daqueles bichos.

 

A enfermeira, ainda apavorada com o esqueleto de rã, respirou com certo alívio, quando viu sair da orelha dele o que parecia ser uma inofensiva folha de caderno dobrada em origami. Era a carta de uma adolescente que se dizia sua filha. Ela escreveu com caneta gel dourada e prateada, quase inteligível — porque cores estrambóticas não ficam bem em certos papéis. A menina dizia que ele e sua mãe tiveram um encontro embalado por muito lança-perfume no carnaval de 85, que não estava atrás de dinheiro, queria apenas conhecê-lo de perto. Assinava como Rita, a filha do carnaval. Ele marcou um encontro com a tal filha no Parque Municipal, perto do carrinho de pipocas e já havia comprado um saco de pipocas coloridas pra agradar a menina, mas desistiu quando a viu se aproximar calçando um par de All Star pintado de roxo e várias estrelas e purpurinas coladas em torno. Não se sentia pronto para criar laços profundos com mulher alguma, mesmo que fosse filha sua.

 

De supetão, outro tilintar na bacia de alumínio. Era um dente de ouro, reluzindo como mil sóis na cara da enfermeira feiosa. Ele perdeu esse dente correndo atrás de Salete, a mulher de quem foi noivo durante dois anos. Salete sabia que tinha pernas de matar qualquer homem e por isso mesmo era uma vadia sem-vergonha, fazendo questão de andar com roupas curtas e elaborando chantagens emocionais em troca de presentes caros. Ele aturava porque Salete era gostosa, cheirosa, um troféu que ele exibia pra lá e pra cá, despertando inveja nos outros homens e despeito nas ex-namoradas. Além disso, Salete recompensava cada desatino com afagos generosos nas matinês de sábado e entre quatro paredes a danada fazia carícias tão exóticas, que deixaria quem soubesse de cabelo em pé. Em uma terça-feira qualquer ele viu Salete de conversinha com o taxista e não gostou nada. Disse-lhe barbaridades ali mesmo, no meio da rua e depois foi para o boteco aliviar a angústia do peito com doses de cachaça. Armou-se chuva forte e na volta para casa passou em frente ao restaurante onde Salete trabalhava. Lá estava ela, toda gostosa, toda cheirosa, de papo com um grisalho de terno. Ela estava usando um vestido de veludo verde tão colado que ao se afastar para anotar o pedido da clientela, dava pra ver que a bandida estava sem calcinha. Gritou seu nome, Salete!, Salete!, e ela apareceu sem aliança de noivado no dedo; ele perguntou por que ela não havia ligado depois que brigaram e ela disse irreverente que não podia correr atrás dele na calçada porque não queria molhar seu vestido, "é muito caro e lindo"; que ele fosse atrás de todas as outras, já que não era de ontem que todo mundo falava por uma boca só que ele não podia ver um rabo de saia que estava logo atrás dando bola; Salete disse também que ficou sabendo que nem a melhor amiga ele perdoou; falou que havia penhorado o anel de noivado para comprar uma passagem a Buenos Aires e que estava de malas prontas; e virou as costas deixando seu perfume de pomba-gira no ar; ele quis correr atrás, só que resvalou feio em uma casca de laranja e caiu de boca no chão, perdendo o dente de ouro.

 

Ele sentiu muita coceira no ouvido quando a estátua da Vênus de Milo — uma réplica em tamanho real — começou a sair de sua orelha. A enfermeira soltou um gritinho de espanto e bateu palmas encantada, como nos espetáculos. Ele havia pagado uma nota por aquela Vênus de Milo e durante anos ela decorou seu quarto. Nas noites de solidão, secretamente, ele botava na Vênus uma peruca morena, pintava seus lábios de carmim, perfumava seu colo, adornava seu pescoço com um colar de pedras tropicais. Punha-lhe também um xale de renda preto e a conduzia pela casa em tangos febris de Carlos Gardel. Por fim, deitava-se com a Vênus em sua cama, contava-lhe histórias de piratas, beijava seus lábios, acariciava sua barriga e buscava seus seios com a boca. E como um filhote de felino sedento por leite, mamava durante horas nos seios da Deusa, da Grande Mãe. E vagia, vagia, vagia como um gatinho vadio, clamando por Salete. Seus gemidos costumavam deixar os moradores de rua muito assustados e crentes de que naquela casa habitava um velho louco.

 

Durante quase toda a manhã, saiu de sua orelha as memórias das mulheres de sua vida e cada uma delas o fazia pensar no quanto ele foi calhorda com aquelas mulheres. Era tanta coisa que saía da orelha peluda que a enfermeira trocou de recipiente cinco vezes. E sem que ele visse, ela pegou para si várias memórias. Sutiã de cetim da Victoria's Secret, fotografia da cantora Wanderléia nua, frasco de colônia francesa, um chaveiro escrito "Love", rouge que não se produzia mais, grampos de cabelo de diamantes, ingressos velhos para o filme "Na cama com Madonna", agenda telefônica com capa de flores, cinta-liga, dois maços de cigarro Derby, jarrão de prata com rosas amarelas, autógrafo de Leo Jaime em um absorvente usado, porta-joias com um par de delicadas bailarinas dançando, diversas fitas e presilhas de cabelo e uma garrafa de vinho que a enfermeira bebeu ali mesmo, às pressas, debaixo da maca, enquanto ele colocava o casaco e assinava o cheque pra pagar o otorrino. Ele pediu que a enfermeira lhe arrumasse uma grande caixa e ela voltou completamente bêbada (do vinho que saiu de sua orelha e que bebeu às escondidas), empurrando uma cadeira de rodas, dizendo que não havia encontrado caixa alguma, apenas aquela cadeira de rodas. Ele sentou ali carinhosamente todo aquele refluxo de memórias e empurrou seu enjoo de orelha na cadeira de rodas até a sua casa. À noite, acendeu um baseado saído da ânsia de seu ouvido, maquiou com todo o cuidado a Vênus de Milo, dançou tango com ela e atravessou o resto da madrugada gemendo como um gatinho filhote, mamando desesperadamente nos dois seios da estátua e clamando por Salete.

 

Quando o sol nasceu, inspirada nas memórias das mulheres daquele velho arrogante, a enfermeira feiosa apanhou um trem para Buenos Aires, de onde pretendia nunca mais voltar.

 

 

 

 
julho, 2012
 
 
 

 

 
Priscila Merizzio, curitibana, nascida no Ano do Búfalo. Bloga no Maladragem nas Palavras: http://priscilamerizzio.wordpress.com.
 
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