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O escritor Cláudio Portella é autor do livro Crack. Em entrevista

à jornalista Laura Capriglione ele fala do livro.

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Laura Capriglione - Por que você resolveu escrever um livro sobre a experiência com o crack?

 

Cláudio Portella - Literatura é libertação. Para responder essa pergunta, tenho que voltar ao começo da década de 2000. Precisamente a 2001, quando me viciei no jogo de bingo e nos caça-níqueis. Padeci muito nesse vício. Gastava todo o meu salário. Vendia meus livros, furtava outros, tomava emprestado com agiota, gastava todo o cachê de minhas apresentações públicas, meus prêmios literários. Ganhei um concurso de conto em Nova York e a premiação (em dinheiro) ficou praticamente toda num grande bingo da cidade. Comecei a ter problemas na minha relação conjugal por conta do vício do jogo. Eu passava dias inteiros nos grandes e confortáveis bingos da cidade e nos caças-níqueis das esquinas. Na época, todo barzinho ou churrascaria tinha uma máquina dessas. Eu ia dormir e as luzes das máquinas ficavam girando em minha cabeça. Era fechar os olhos e lá estavam elas. Foi quando fiz então minha primeira análise, digo, análise com uma psicóloga. Mas, na verdade, sem saber, eu já vinha fazendo uma análise pessoal. Ao longo da jogatina eu escrevia sobre o assunto. Nasceu então o meu livro Bingo!. Recebi um convite de um editor português e o livro foi publicado em Portugal, no final de 2003. Mas só chegou ao mercado em 2004. De 2001 à abril de 2004 meu vício era o jogo. E eu doido para resolver esse problema. Foi quando, depois de perder uma boa soma num grande bingo no centro de Fortaleza, tomei um táxi e fui para uma favela que eu frequentava desde o começo dos anos 1990. Fumei crack na lata. O cachimbo em Fortaleza não é tão popular quanto em Sampa. Passei quase a noite inteira fumando crack. E na manhã seguinte eu já estava lá novamente. Pronto! Meu problema com o jogo estava resolvido. Troquei um vício pelo outro. Curei um no outro. Mal sabia eu a roubada em que estava me metendo. A troca mal feita que eu fazia. Em novembro de 2004, estava dando entrada na primeira internação. Percebi que poderia também escrever um livro chamado Crack. Eu já tinha feito Bingo!. Era hora do crack. Resolvi escrever um livro sobre a experiência do crack para me salvar. Me salvando, depois eu poderia pensar nos livros como literatura, com todos os seus desdobramentos.

 

 

LC - O que é que o crack tem a ver com poesia?

 

CP - Costumo dizer que sou um poeta do meu tempo. O que interessa à minha poesia é o que se passa hoje. Agora. No meu tempo. No passado, muitos poetas escreveram sobre o ópio, o haxixe. Baudelaire tem Um comedor de ópio, que na verdade é quase que uma tradução de Um comedor de ópio inglês, de um escritor britânico — não me recordo agora o seu nome e nem vou procurar no Google — que o poeta francês gostava. Burroughs escreveu muitos textos sobre a heroína. Muitos poetas da cidade de São Paulo, da chamada Geração Marginal (70/80), escreveram sobre (e sob) a maconha. O ópio, a heroína e a maconha eram os grandes baratos da época deles. O da minha é o crack. Há poesia em tudo, até no escatológico. Quanto mais na droga que dá continuidade a uma tradição romântica.

 

 

LC - Você escreveu na época em que fumava, ou é a poesia do abstinente?

 

CP - Quando fumava, nos intervalos de uma queda e outra.

 

 

LC - Você era feio e sujo e malvado e maltrapilho e mentiroso e ladrão na sua época de usuário? Você é assim?

 

CP - Eu não sou assim. Mas quando se usa é impossível não ser assim. O crack despersonifica a pessoa. Eu não tomava banho. Andava muito pedindo dinheiro. Inventava mentiras aos passantes, por 20, 10 centavos. Juntava até fazer 5 reais. Corria à favela, fumava e voltava a pedir novamente. Praticamente impossível fazer um inventário do que roubei da casa dos meus pais e levei para vender ou trocar pela droga. De um dos carros na garagem ao lixo da suíte do quarto deles. Tudo. Diversas vezes.

 

 

 

 

LC - Para você, onde estava o prazer de fumar crack (reações físicas e mentais)? Dentre todos os textos de Crack qual sintetiza melhor esse barato?

 

CP - O prazer passa também pelo ritual. O cachimbo (me veio a imagem dos grandes cachimbos da paz, usados por tribos indígenas. Os dos usuários de crack seriam o da guerra interior), para o craqueiro, é um utensílio de uso pessoal ao qual ele se apega. Geralmente eles fazem os cachimbos que podem ser feitos de diversas maneiras, com diversos tipos de material, de um pedaço de cano PVC até um soquete de lâmpada. No meu livro falo sobre isso na parte "Maricas".  Meu prazer começava aí. Gostava muito de fumar em variados tamanhos de latas de refrigerantes. As pequeninas me davam calafrios. Bastava ver uma na sarjeta e o desejo de fumar logo aparecia. Gostava também das de energéticos, que são cumpridas. O furar a lata, fazer a cinza, arrumar a pedra sobre ela e fumar já é um ato estético de prazer satisfatório. Falo sobre essa ação na parte "A Fumaça", que fecha o livro. O sabor do crack é também gostoso. O gosto da fumaça na boca. A dormência nos lábios. Tudo é muito bom. Há uma linha de pensamento na psicanálise que diz não haver distinção entre físico e mente. Tudo é o organismo único. O que psicologicamente se sente é físico e vice-versa. Para mim era muito prazeroso sentir que já não há pressa, que o tempo não mais existe, que a minha única preocupação é com a próxima pedra (isso até a que estou usando acabar). A taquicardia e o suor excessivo também são agradáveis. Contudo, e aqui mora a grande decepção, com o tempo de uso o prazer desaparece. Ficam somente a paranoia e a necessidade orgânica de usar a droga. Trechos de algumas partes do meu livro trazem um pouco do barato. Mas acredito que o trecho que fecha o livro responde à sua pergunta: "... tragar a fumaça — estar sentado à direita de Deus Pai todo poderoso". Fumar crack é tão introspectivo que você passa a ser único, o centro, daí a brincadeira com Deus.

 

 

LC - Você parou? Por quê?

 

CP - Parei. Para continuar vivo e escrevendo.

 

 

LC - O crack deixou sequelas em você? Quais?

 

CP - Uma platina com quatro parafusos e dois fios na clavícula direita. Um parafuso grande no tornozelo esquerdo e uma sequela estética no pulso esquerdo — essas últimas fraturas quando eu pulei o muro da clínica para usar crack na favela ao lado.

 

 

 

 
setembro, 2012
 
 
 
 

Cláudio Portella (Fortaleza, 1972). Escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural. Autor dos livros Bingo! (2003), Os melhores poemas de Patativa do Assaré (2006; 1ª reimpressão, 2011), Crack (2009), fodaleza.com (2009), As vísceras (2010), Cego Aderaldo (2010), o livro dos epigramas & outros poemas (2011) e Net (2011). Colabora em importantes jornais, revistas e sites do Brasil e do exterior.

 

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Laura Capriglione é repórter especial da Folha de S.Paulo.