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"Tenho total desprezo pelo que é feito nas academias".

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Sueli Cavendish - Falemos de O Cânone Ocidental: tendo em vista o seu sucesso, tornou-se praticamente um marco na história literária. Alguma surpresa com relação ao alcance deste livro? Surpreende-o que tenha alcançado sucesso em países de línguas tão diversas, entre os quais o Brasil?

 

Harold Bloom - Não, não me surpreende. Tenho uma carreira razoavelmente longa, desde que comecei a ensinar em Yale, 47 anos de ensino. E comecei a publicar ensaios e crítica desde 57, uma longa carreira como escritor e crítico, portanto. Mas o que gostaria de comentar é algo que talvez não atinja tanto o Brasil quanto atinge os países de língua inglesa. Tudo mudou há cerca de uma geração atrás. Entre 1967 e 1970, assistimos à ascensão de uma agressiva contracultura, que começou como um justificado protesto contra os horrores da Segunda Guerra Mundial. Tenho consciência de que ocorreu em escala mundial, porém veio a expandir-se e formar um movimento com efeitos culturais perniciosos nos países de língua inglesa, particularmente nas instituições de ensino e na grande imprensa do mundo de língua inglesa. E me parece — embora tenha lutado bravamente contra essa tendência fui derrotado — que no curso desse processo que dura 30 anos, o estudo da literatura ocidental como uma entidade que em si mesma possui valor estético e cultural foi se extinguindo gradualmente e agora chegou ao fim. A literatura foi substituída pelo que essas pessoas chamam de "estudos culturais". Mesmo que ainda seja chamada algumas vezes de Literatura Inglesa, ou Literatura Comparada, ou o que seja, não é mais o estudo de literatura enquanto literatura. Em consequência desse fenômeno o meu próprio trabalho foi afetado e vem passando por diversas fases. Eu havia começado por uma brutal renovação de toda a tradição romântica, nas literaturas inglesa e americana, que terminou no final dos 60. No verão de 67, comecei a escrever um livro muito estranho que veio a se tornar A Angústia da Influência. Um projeto que durou cinco ou seis anos, pois escrevia ao mesmo tempo Agon: Por uma Teoria do Revisionismo, que publiquei em 1982. Depois comecei a escrever introduções para uma enorme coleção chamada The Chelsea House Anthologies (Antologias da Chelsea House), o que me ensinou a escrever de forma bem mais simples. Havia me tornado um escritor esotérico e comecei a me "desoterizar", tentando escrever para um público cada vez maior. Isso começou a afetar meus próprios livros. Porque vim a compreender que não estava mais interessado na audiência universitária de língua inglesa simplesmente porque não havia mais instituições universitárias de língua inglesa. Nove entre os dez professores que lá ensinavam me pareciam bárbaros. Eu não queria associar-me a eles. Então passei a escrever para o público em geral. Depois que me desvinculei da Chelsea House, escrevi um livro chamado Ruin the Sacred Truths (tradução livre: A Ruína das Verdades Sagradas). Em 1989, comecei um livro chamado O Livro de J. Desde os anos noventa até o presente escrevi A Religião Americana, O Cânone Ocidental e em seguida A Criação do Humano e agora este livro que devo publicar em setembro, chamado Gênio, no qual analiso e defendo o conceito de gênio. Comecei a encontrar audiências diferentes e cada vez maiores, aqui nos Estados Unidos, e no exterior. E não me surpreende que as do exterior sejam tão grandes quanto as dos Estados Unidos. Aqui, assim como na Inglaterra e na Austrália, eu quase que invariavelmente sou atacado nas resenhas, porque os acadêmicos do que chamo "escola do ressentimento" escrevem essas resenhas e me condenam. Apesar disso, descobri que tenho uma audiência de muitos milhares de leitores, não apenas nos Estados Unidos, como também na Europa, na Ásia, na África, na América Latina. Nos últimos anos, tenho sido traduzido em muitas línguas. Na verdade, o autor escreve para o que Dr. Johnson (Samuel Johnson, poeta inglês) chamaria de o leitor comum, pessoas que precisam de algo, ou que procuram algo que possua beleza e impacto emocional. Algo que eleve o seu nível de consciência, que os torne mais inteligentes, mais confiantes e mais perceptivos. Não me surpreende, pois, a aceitação que meus livros têm no Brasil. Aprendi a escrever — você esteve em minhas aulas e deve ter percebido — quase do mesmo modo como falo, sou muito pessoal. Dá-se o mesmo quando ensino. Falo com o leitor, ou com o aluno, como se o conhecesse, comunico-me com ele de forma direta, como se já tivéssemos nos encontrado e passado muitas horas juntos. Falo com o leitor como falo com um amigo. Com total desprezo pelo que é feito nas academias. Aqui (em Yale) é um pouco melhor que outras universidades, mas ainda acho difícil de tolerar o que fazem.

 

 

SC - O senhor então conclui que a guerra contra os resentniks foi perdida?

 

HB - Perdemos a guerra. Creio que perdemos a guerra, nas Universidades e nas faculdades de elite do Mundo de Língua Inglesa. É uma causa perdida. Perdemos a guerra. E tenho estado em ação nessa guerra, lutando uma guerra de guerrilha. Mas entendo agora que o campo de batalha era inadequado. O campo de batalha não pode ser a instituição educacional nem a grande mídia totalmente corrupta. É preciso falar diretamente para os milhares e milhares de leitores. Não sei como lidarei com o problema da hegemonia dos estudos culturais nas universidades, me entristece muito, pois o que sei é que há de fato, mesmo na Inglaterra, onde é grande a força desses setores, milhares e milhares de leitores reais, que não se sentarão para ler com propósitos ideológicos, ou para mudar o mundo, ou fundar uma sociedade melhor. Pois se lemos para salvar o mundo, para mudar a sociedade, não estamos lendo de fato. Portanto, tem sido muito gratificante conhecer tantas pessoas, verdadeiros leitores. Gostaria de poder viajar mais e conhecer o Brasil. Reconheço, porém, que temos muitos problemas nos Estados Unidos, muita injustiça, contra qual devemos nos insurgir. Não tanto quanto no Brasil, onde uma enorme massa não parece receber qualquer atenção dos governantes. Sinto que não importam as boas intenções, pois ler é uma atividade solitária, que não se compara sequer ao amor entre dois amantes. Não envolve duas pessoas, é algo de si para si, uma espécie de circuito fechado. Ler é uma questão de resgatar na obra o que desde sempre pertence ao leitor, de ir lá buscar o que já se tem. Como disse Emerson, em toda obra de gênio encontramos os nossos próprios pensamentos, que uma vez rejeitamos, e que agora brilham em nova roupagem, recuperados pela arte.

 

 

SC - Alguma vez o senhor sentiu-se tentado a alterar a lista do Cânone, a revisá-la de algum modo?

 

HB - A lista do Cânone, naquele livro, eu a ponho sob protesto. Fico muito satisfeito de poder registrar para você esta afirmação. A lista consta dos que me ocorreram naquele momento. Meu agente insistiu, mas eu não queria publicar. Meu editor também insistiu, mas eu não queria publicar. Considero-a muito inadequada e incompleta, particularmente injusta com o Brasil. Mas o fato é que eu não podia recomendar más traduções. Havia aquele livro maravilhoso, Memórias Póstumas de Brás Cubas (de Machado de Assis), que foi traduzido como Epitaph for a Small Winner (Epitáfio para um Pequeno Vencedor), uma tradução lamentável. O livro agora tem uma boa tradução, uma tradução decente, mas na época com aquela tradução eu não podia fazer ideia da grandeza do livro. Ao invés de revisar todo O Cânone Ocidental eu apenas suprimiria a lista. Ela terminou causando uma grande conturbação, em muitos países. Na tradução suíça de O Cânone Ocidental eu disse aos editores: "Não vai haver lista". O mesmo com relação à edição italiana. Mas a lista permaneceu na tradução espanhola, por exemplo. De fato eu me arrependo da lista, mas é tarde para retirá-la da edição inglesa ou espanhola ou checa. Não apenas é incompleta — porque eu não tinha em mãos boas traduções, e tinha que considerar as mais recentes — como não a elaborei sistematicamente de modo algum, foi apenas o que me ocorreu no momento. De minha parte, creio que ela nada tem a ver com o livro. Eu queria escrever sobre uma centena de escritores, mas não havia espaço e era imperativo que eu escrevesse sobre Cervantes, Shakespeare, Dante etc. Mas poderia ter escolhido muitos outros. Eu escolhi um tanto arbitrariamente, não houve sistematização. Escrevi sobre 26 escritores, mas queria escrever sobre muitas centenas. Infelizmente não havia espaço.

 

 

 

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[Publicada na Revista Continente Multicultural, em 1º de maio de 2002]

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dezembro, 2012
 
 
 
Sueli Cavendish (Recife/PE). Ensaísta e Tradutora. Professora Adjunta efetiva de Literaturas de Língua Inglesa no Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na Graduação e na Pós-graduação. Doutora em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com a tese "O Jagunço e o Fidalgo: Avessos e Anversos em 'Grande Sertão: Veredas' e 'O Som e a Fúria'". Visiting scholar e Visiting fellow, respectivamente, da University of Southern Mississippi e da Yale University, entre 2001 e 2002. Prof. Visitante do Depto. de Letras da UFRJ, 2002-2003. Editora de Eutomia — Revista Online de Literatura e Linguística [www.revistaeutomia.com.br] voltada para a publicação da produção teórico-crítica em Letras e Linguística e de textos ficcionais — poemas e contos. Autora dos capítulos de livros "A Inflexão Modernista e Pós" in Do Jeito Delas: Poesia Feminina em Língua Inglesa (7Letras), "O Homem sem Conteúdo" in Nove abraços no Inapreensível, org. Alberto Pucheu (Azougue),  "Reflexividade e Diferenciação do Humano: Poe, Borges, Rosa, Faulkner" (UFRJ/Aquarela) e de artigos e ensaios em várias revistas científicas impressas e online e em blogues de literatura. Tradutora de Deleuze: Um Aprendizado em Filosofia, de Michael Hardt e de vários contos de William Faulkner, entre os quais "Folhas Rubras" (Revista USP, 90) e "Aquele Sol Noturno" (Eutomia, Edição 8, 2011).