Anomalia

 

 

A anomalia

de não ter orelhas

me afasta das mulheres


Foi presente

a uma puta

que não sabe Van Gogh


Por um amor verdadeiro

eu cortaria os pulsos.

 

 

 

 

 

 

Menos calendário que metafísica  

 

 

O céu de hoje, o que o tinge, irmã, é algo místico;

sempre o é, mas esse é o ovo de dentro do ovo;

os outros seis dias são apenas ovos

desprovidos de uma segunda casca.

 

Desse ovo, abstrato, provém

uma, nua de átomos, gema, que

ao fundir-se às cores, altera-as

sem ao menos modificá-las.

 

Vá à feira e certifique-se.

 

Um morango,

experimentando-o, notarás

que tal substância

possui consórcio também

com o odor e o paladar —

leve uma dúzia da fruta e

(nobre experiência)

saboreie outra amanhã.

 

Agonizar agora não seria como

agonizar em uma quinta;

a dor seria tão pungente quanto;

mas quinta, deveras,

tudo é átomo: não há brechas.

 

Hoje elas são possíveis —

talvez porque Deus dormira.

 

Repare no andar deste carroceiro:

É igual e diferente; paradoxalmente exato;

tão óbvio que não causa dúvidas

nem suscita questões.

 

Considere nosso ignóbil cão:

Tenta, em vão, como o fizera ontem e

certamente o fará amanhã, morder o rabo;

não terá sucesso em sua empresa,

mas, como por feitiço da data

o faz de forma distinta.

 

Mas o que engorda o jornal

não vem desse ovo, irmã:

Homem procura casal; Fluminense,

desfalcado de sua maior estrela,

enfrenta o líder em casa; Sinfonia para o povo

no parque do Ibirapuera;

Caderno Infantil; Aluga-se chácara para

natal e ano novo; "Mestres da

Literatura Portuguesa" — penúltimo

fascículo.

 

Ao passo que, Domingo, irmã,

é menos calendário que metafísica.

 

 

 

 

 

 

O abacate

 

 

O abacate projeto.

O abacate conceito.


Ainda sem cor e forma.

O abacate rascunho.

Ainda sem sabor.

Antes do primeiro abacateiro desse mundo.


O abacate na cabeça de Deus: 

uma ideia a concretizar-se.

 

 

 

 

 

 

Útero e algoz



Costurei um vudu

à sua imagem e semelhança 

(para uso caseiro)

com a agulha 

(útero e algoz)

que encontrei no palheiro


Por um erro de cálculo 

saíste melhor e a encomenda 

de uma multinacional 

não tardou a chegar 


O meu, sucesso de vendas 

em toda a América Latina,

há de ter

concorrente à altura.

 

 

 

 

 

 

Quando meninos cospem (domingo no parque)



Uma roda gigante 

envolve o carro do pipoqueiro


Ninguém na fila trem

fantasma no banheiro


Nem todo banco é banco

o do casal virou castelo do amor


O sol no tobogã 

A lua que chegou 


O preço do bilhete

faz a mulher virar bicho


Um carrossel de abelhas

vira dumbo no lixo 


Tomei um chá de sumiço 

quando achei a xícara maluca 


Dá medo olhar a fila 

da montanha russa 


Quando meninos cospem

do teleférico: 

é tiro ao alvo sim 

é tiro ao alvo

é bate-bate sim 

e eu me salvo 

careca de saber 

um tanto calvo 


Quando não há por que 

de diversão: 

é splash sim 

é sim splash 

também fui assim 

crachá de creche 

até faria fumaça 

mas quem se esquece?

 

 

 

 

 

 

Orvalho

 

 

Se o orvalho, simplório orvalho, nasce assim:

da noite pro dia...

Por que o nosso amor, minha flor, não ousaria?

 

 

 

 

 

 

A batalha das aranhas azuis



pelas costas do inimigo

fez-se o ventre do qual

nasceram
milhares de estátuas

cada uma com o mesmo

par de olhos tristes que — ao

contrário de minha

boca — fecharei um dia.


Em todo onze de novembro

livres da inanimação graças

ao milagre anual

tais esculturas, em gangue, promovem

arruaças pelos

quatro cantos do mundo celebrando

o que a história não oficial

batizou:
A batalha das aranhas azuis —


Apedrejam vidraças universitárias

ao sul da Califórnia.

Na neve de Moscou, guerreiam, infantilmente.

As Tupiniquins disfarçadas

de escritores consagrados cometem

pequenos furtos

na lentidão dos semáforos.

Aos pés da Torre Eiffel (bem como

no ponto mais alto da Cordilheira

dos Andes) bebem

vinho comem

carneiro fumam

ópio tocam

flauta recitam

meus poemas e agradecem a Deus

pelo feriado não oficial.


Ao final do espetáculo voltam

cambaleando a seus postos e

misturadas às estátuas oficiais retomam

a certeza de que

quase nunca serão

notadas talvez

por um cachorro mijão

ou
sabe-se lá por

um universitário

extremamente
atento.

 

 

 

 

 

 

Metalinguagem

 

 

Escrevo, a lápis, cavalo: ca-va-lo.

Apago a palavra, poupando-lhe a sílaba primeira.

A essa, adiciono três: pa-ce-te.


Aos que, porventura lerem,

esse meu papiro (o qual pregarei

na porta de alguma igreja) imaginarão

um capacete e um confuso —

a outra palavra do cartaz.


Mas não trata-se de um trivial capacete:

um terço dele veio a cavalo;

e esse, valendo-se de análogo processo,

tem sua parte de canalha: ca-na-lha.


As beatas, o jornaleiro, ou o padre, ou

um indigente a coçar o carvão do bigode

com o frio esmeralda do topo da garrafa,

deveriam pensar, ao encararem meu manifesto

em algo como (ou no que quiserem):


Um capacete que relincha e dá coices no próprio dono;

um capacete cuja viseira são enormes dentes,

e neles há adesivos de baixo calão;

um capacete que defeca a granel, causando acidentes

em autódromos, avenidas e estacionamentos;

um capacete com ferraduras da sorte a um preço exorbitante.


Talvez eu esteja confuso;

mas não da confusão que o leitor deduz:

de outra,

a qual nascera

da palavra "contemplação".

 

 

 

 

 

 

A Mona Lisa de dentro

 

Como se fora trégua do sol 

— que morde antes de assoprar —

rubro-infernal, americano, 

vesti-la semi-nua

nessa miniminissaia

para o Carnaval fora de época

daqueles pobres pedreiros


O que eles têm

além da marmita e a pele vermelha,

além das bicas de suor e o carteado,

além das pequenas coisinhas

e a leve embriaguez, menina,

são os imensos sonhos,

e sonhar é tudo,

sonhar é, e sempre será,

tudo.
  
Tivessem também

os olhos de Lince

dos poetas lunáticos

enxergariam o contraste

entre a Mona Lisa de dentro

e O Grito de fora;

antagonismo que colocará

seu dedo do meio,

morena Vanessa,

em seu devido lugar

quando chegares ao teatro 

do seu banho aonde

o bandido tornar-se-á 

o mais procurado

entre todos os mocinhos.


Ser comida pelos olhos

dos homens com quem

jamais dormiria: sua

posição
predileta.

 

 

 

 

 

 

( Giz de construção )

 

Entre o céu e o inferno

brincam as crianças

de amarelinha.

 

 

 

 

 

 

Poema branco

 

 

A primeira, contra o vento;

a segunda, a favor. Uma o pensa,

lazarento; e a outra, esplendor.


A amante

do fogo, tal qual

a amante da água

— a que se acende e

a que se ascende   

igualmente
batizadas:
vela.

 

 

 

 

 

 

A viagem

 

 

A fêmea a cavalgar

sem sair do lugar

há de chegar às estrelas.


Levando no olhar

o homem a arfar

que ousou convencê-la.

  

 

 

 

 

[imagem ©simone tagliaferri]

 

 

 

 

Renato Silva. Autor do livro Uma cidade nas nuvens, pela Editora Patuá, é aquariano peixe fora d'água. Nefelibata,  paulistano, dislexo e agnóstico, escreve para respirar: dois pulmões? Muito pouco. Para tudo depois da metade, como se isso fosse meta. Publicou no site Terra, na Revista Rebosteio, em alguns jornais literários e diversos blogues. Não crê no homem, mas acredita na humanidade. Bloga em Uma Cidade das Nuvens e está no Facebook.
 
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