*

 

tem um antes

mas mesmo nesse antes

morrinha espessa

mormaço denso

rola-se besta

na perlaboração

amando o sim

e o não

à espera de réstias

que não vêm

do sonho da noite passada

em branco

tal qual num cubo

num ovo seco

dentro do supositório do tempo

quando aquilo não é

e ainda assim convence

o silêncio imenso

e ainda assim o som

sonando no sonho

cinema da cabeça

mas não não vêm

e a desistência então

se instala

a porta se abre

liga-se a televisão

sem som

please

e o pé no chão

acontece

como um outro sonho

cafeinado

vitaminado

panificado

até que tudo

seja sombra

e não haja

nada

e você se sente

e digite F

e aperte Enter

 

 

 

 

 

 

*

 

disparar. na lona de um,

antes, no lombo, em

um, com nome, sem

cova, com coca

cola na mão, caiu

lona no chão, adão

o primeiro nome,

não, homem, antes

lona, morto, não, único

nome, adão

sem

sobrenome, apenas

adormecido, deitado

de bruço, pronto

pra fotografia,

adão e ainda

a coca na mão,

e ainda a folha

de santo olha

o céu de latão.

 

 

 

 

 

 

*

 

aqui se fala aqui se ouve

tal tal é melhor que tal tal

que o outro e que eu não

a aventura do feriado

a imagem inexistente

curtir é conservar

a vida ainda diferida

por suposição

eu ouvi falar que ouviram falar

ficamos dando as mãos

rindo um do outro

eu não quero ser eu mesmo

eu não quero ser seu

salvar os cãezinhos

encolhemos um mundo por escolha

saber da última da vizinhança

vencer os desenhos de vento

ginástica ou ritual ou joguinho

escrevo tudo num espelho

falo de fora pra dentro

ouço de dentro pra fora

 

 

 

 

 

 

*

 

eu sei que ninguém qualquer construção tem seu tempo

mas meu inferno é imperfeito não então vou sem tempo mesmo

afundando os pés na lama do meu coração outro

estapeando a minha própria ela cepa

ouvindo a noite das outras pessoas que não são pessoa

eu era um poeta que abraçou a morte e ficou sentado com ela e depois saímos lanchar loas

nem foder com ela eu fodi

me equilibro em mim mesmo eles

nos cotocos

nos cavacos

reles sou oco como meus parentes

herdei deles a mesquinhez e a falta de dentes depois dos cinquenta

somos cavalos

cavalos não

baixas mulas meras sem cacife

aquelas de carregar os outros nas costas eis

e ficar falando a um muro eu de esterco

não conseguir vender nem por um mal real um real malíssimo

um livro de nãos 

não e não e não e não

um livro de escaras (de depois da

Escola do Recife)

ordinário e pedestre e anão

picado de vício de  vespas

caído na estrada

atropelado

como ouriço

ou caixa

 

 

 

 

 

 

*

 

o capitalismo roubou nossas pernas. dentro de nós a tinta é falsa. foi tudo ao rés do chão para rastejarmos melhor. odeio quem fala mostrando os dentes e não as palavras. essa doença não mata, também não tem cura. ficar dançando é entrar num liquidificador? ouvir quem se estou sozinho? dinamites plantadas no peito, amarrado a uma cadeira elétrica. os pássaros são um filme, a chuva, o inimigo rumor que sobe a escadaria, fotografias falsas espalhadas na mesa, tudo película, película. o abraço está mais apertado. a cova está mais confortável. 

 

 

 

 

 

 

*

 

o acidente da madrugada não deu em nada

ainda era setembro de manhã e a barba sabia

então era o mesmo que batia à porta

a bomba continuava acionada

 

decidi embarcar no sono índio da amiga fumaça

quando eles vêm e carregam a carcaça

num outro lugar fica tudo invertido

quando volta era como uma abelha rainha

 

começa a comandar tudo e diz os nomes

e só aí as coisas se delineiam

a névoa é apenas o delineador

 

já existe uma janela e vozes vãs

o sol mesmo perfura uma fresta

e o resto é a festa do zumbido no ouvido

 

 

 

 

 

 

*

 

se eu pudesse me sentar

e ler que a infância é um lugar santo

se houvesse esse lugar

que não é um monastério

mas uma jaula confortável

onde a gente estica as pernas

e fica sendo apalpado pelos outros

que nos alisam fazem coisas custosas

para nossa imaginação

se eu pudesse me sentar ali

envolto por lama

quase sem pele

observando a saturação da cor

até o pleno esquecimento

e se o animal que eu fosse ali

como cobra bífida ou centauro anão

untasse a própria experiência de negação do tempo

olvidada a cela

se houvesse e se eu pudesse

me sentar como um peixe

dentro dela

 

 

 

 

 

 

*

 

há um bebê na cidade dizendo não vou organizar nada. eu, o travesti-menino, o animal-que-logo-sou, o bi de nietzsche, o deus mu, fluxo do olho ao cu que me equilibra torto e aureolado, ao calor do chão ensaio o voo, floco da espuma podre do iguaçu de meus pares flutuo, como um cachaço do punk fluid, vendo o passado profundo na névoa (a dor, a treva, o riso que espanta o frio): quero explodir os edifícios, depois reconstruí-los por encaixes improváveis e escalá-los e me jogar lá do alto, aqui, no asfalto.

 

 

 

 

 

 

*

 

não ao curtirama com sua cortina

a ir ao assalto

ao som na sua cabeça porejado ali dentro nascedourado como câncer zaúm

ao Ninguém também faltando

ao ficar-se torcendo para o diabo do bem

derramando a lágrima para o crocodilo do lado

e eles que se entendam com as piranhas, com o enxame

(ouve-se a frase-feita, recheio de verso de circunstância

era tão do bem aquela pessoa)

(aonde ninguém falta

aonde ninguém quer ir)

você: de rimas boas o poema de fezes está cheio

quero o ó rebuceteio

as varejeiras do polvo

dizer o não de novo

quero o não quero

acabar de romper as costuras do monstro

 

 

 

 

 

 

*

 

não dá respiro o diploma-pica fica camisa

da moda um tronco anódino em cubo branco

séries e mais séries fugas do afrontamento

o carcomido por osso e a arte me

enoja a grana a imagem de folhas

de ouro do artista (beicinhos

para o colecionador) autista que vai

pra paris e continua enganando com

signos-de-prestígio-mijo de eu

nuco não grita na carne do

rosa ou o afago do afogamento do

brecht-quando-vidro-no-olho-não-mente-entranha-não-engana

e a cor é a cor do dólar e o som tinir e o cheiro de papel novo

e impressão de abaporu no cifrão e o tato a carne

da usura dançarina e na boca nunca vi

arte como investimento diz o bode logo

de saída comprei um volpi e como um

cavalo um alqueire uma sombra de brilho de uma baga de milho o etéreo valor

izou-se

ingovernável o caralho que especulação 

é ciência de dinastias os peidos

que o pintor dava enquanto pintava

estão ali a cor urinela fedia a sacanagem

o abuso da existência do privilégio cor

dançante no bolso furado do câncer

atitude emocional costurada com

coloristas de almanaque um quadro do

fulano me faz escutar música e a finança

então urgh pfff tchuú pissssssssssssssss

 

 

 

 

 

 

*

 

você fica falando com patos

a tarde inteira

depois volta

e pega o jornal

da semana seguinte

e ainda

era terça-feira

mas o relógio do observatório

perto do jardim com o lago

na lógica de quem não sai do dentro do siamesmo

o relógio marcava um aperto

no coração

ficava doendo mindinho

inchado

e parecia

que teria

lugar uma explosão

era não

tudo voltava ao normal

o quarto sem ar

e depois

dormir

e acordar

ainda ontem

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

]

 

 

 

 

 

 

*

 

quando você morria

gritava Maria!

no quarto

desceram o seu corpo

pela escada

dois

andares

como uma narrativa

que cai

 

 

[Do livro A fresta do capital, inédito]

 

 

 

 

 

 

[imagem ©joshua hibbert]

 

 

 

 

Ricardo Pedrosa (Governador Valadares/MG, 1970) é doutorando em Literatura (UFPR), graduado em Ciências Sociais (Unicamp). Publicou Desencantos Mínimos (Iluminuras, 1996) e barato (Medusa, 2011). Tem poemas nas revistas Inimigo Rumor, Oroboro, Monturo, Vagau, etc. Edita o blogue NaturalismoPsicodélico.
 
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