Guardar: vigiar para defender, proteger, preservar

Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa Houaiss 3.0

 

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Antonio Cicero

 

 

Foi em julho de 1995. Eu estava no bar do meu pai, em Santandré, onde trabalhava & ouvia as histórias mais incríveis que a vida pode nos contar — através do linguajar (linjaguar) dos bêbados mais engenhosos que conheci. Era uma manhã como outra qualquer, o dia devia estar claro & o vento, frio. Inverno. Tinha vinte & poucos anos & estava fissurado em poesia — não largava os famigerados manuais de colégio, com toda aquela fauna de barrocos, árcades, românticos, parnasianos, simbolistas & modernistas (onde geralmente parava o tempo & a poesia deixava de existir). Entre uma dose de Fogo Paulista, um comentário sobre o Ramalhão (o glorioso Esporte Clube Santo André), um bolinho de carne (uma das especialidades de meu querido pai & um dos sucessos do cardápio do bar), uma dose de Cavalinho, um rabo de galo, uma biriba, eu lia os dois jornais que meu pai assinava: Notícias Populares & Diário do Grande ABC. Sempre fui muito fã do saudoso & inigualável Notícias Populares (aquele que "se espremer sai sangue"), mas foi no segundo, no Diário, que naquela manhã li uma reportagem sobre o lançamento de uma revista de poesia numa livraria local. Porra! Para mim, que andava cometendo esse crime de lesa-vida chamado poesia, aquilo foi bomba de excitação, uma dose cavalar de veneno antimonotonia. Aqueles eram tempos em que me chamava Raimundo &, gauche, sem rima ou solução, nem alegre nem triste, tentando descobrir a trilha para Pasárgada, perguntava: & agora José? Devorei a reportagem & decidi que ainda naquela semana passaria na tal livraria. A revista se chamava A Cigarra (editada pelos poetas Jurema Barreto de Souza & Zhô Bertholini) & a livraria era a Alpharrabio (capitaneada pela poeta Dalila Teles Veras). A manchete do dia já vinha cheia de charme: "'Cigarra' simboliza resistência poética".

 

 

Zhô, Jurema & A Cigarra

 

 

Chegou o tal dia de conhecer a Livraria Espaço Cultural Alpharrabio. Peguei minha mochila, alguns tostões, abri uma brejuca & desci a Coronel Seabra. Passei pelo querido Corintinha, pelo parque do Ipiranguinha & continuei pela imensa Perimetral até chegar à Avenida Portugal, onde, subindo, sigo sentido bairro até a Eduardo Monteiro, onde paro, respiro, & desço até o número 151. Lá estava eu, em frente à livraria que, de alguma forma, já fazia parte do meu imaginário. Adentrei a casa. Havia, além da simpática varanda com seus bancos de leitura, uns sofás logo à entrada, muitas estantes cheias de livros, um quadro com uma foto de Oswald de Andrade onde se lia: "A massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico", uma mesa ao fundo, um ambiente agradável. Fui atendido por Valdecírio Teles Veras (marido de Dalila, um prosador dos bons & um sujeito muitíssimo gente boa). Perguntei das revistas & comprei dois exemplares antigos — além de uma antologia do Augusto dos Anjos & mais algum outro título que se apagou da minha memória. O Teles ainda me mostrou o bar, que antigamente ficava nos fundos, & me falou um pouco sobre a programação. Ouvi atentamente, paguei & fui para casa ler as novas aquisições.

 

 

Fachada antiga da Livraria Alpharrabio

 

 

O lançamento do próximo número da revista A Cigarra seria no sábado próximo, à tarde (se a minha memória maryjane 7.0 years old não me trai). Eu jamais imaginaria que aquele lançamento transformaria não só todos os meus sábados nos próximos anos, mas também a minha vida. É sem pedir licença que as coisas incríveis adentram nossa passagem por este planeta. A mim, que importava a glória, o fracasso ou a linha do horizonte, se o que eu curtia era o Alpharrabio?

 

No dia do lançamento, tomei coragem & algumas brejas, & me mandei para o Alpharrabio. A casa estava cheia. Muito cheia. Não tinha ainda a menor idéia sobre questões que abarcam o público de poesia (essa entidade sobre a qual muito se discute hoje em dia) e, naquele instante, apenas tive a impressão que a coisa era realmente importante, que era popular. Enfim.

 

Passei a tarde por ali, possuído pela minha timidez monstruosa, acariciando lombadas de livros & tomando umas cervejas. Fui apresentado a Dalila, que me recebeu muito bem. Também conheci naquela tarde os poetas-editores Jurema Barreto de Souza & Zhô Bertholini. Zhô, vestindo uma camiseta de Jimi Hendrix, me mostrou a publicação, falou de uns nomes aqui & acolá. Comprei um exemplar da revista & o ótimo livro do Zhô, o Sem ensaio, de 1994. Mas há algo que desejo comunicar aqui nesta crônica: a essa altura do texto, confesso caro leitor, que já estou achando que esse lançamento no sábado foi, em verdade, num dia de semana à noite. Bem, não é colocando os penduricalhos nos bugalhos que os alhos se transformam no combustível da memória? Hã? De qualquer modo, prossigamos. Afinal, o que conta é que foi meu primeiro contato com as alpharrabianas — aquelas tardes de sábado que, ainda que passem muitos séculos, ficará sempre um pouco.

 

 

A Cigarra N.22

 

 

No próximo número d'A Cigarra, lançado algum tempo depois, tive a honra de ter meu primeiro poema publicado. Era uma porcaria de poema, mas o que seria do mundo sem os poemas ruins? Um dia ainda farei uma bela antologia feita só de poemas ruins! Uma antologia para ser lida em noites de severo inverno, acompanhado de conhaque espanhol & música sinfônica. Poemas ruins à parte, o importante mesmo era toda a avalanche de conhecimento que respirava ali conosco, o que valia mesmo eram as inúmeras conversas que eu teria com as pessoas que frequentavam o lugar, o barato era o monumento humano que ali se erguia.

 

Como disse, durantes anos & anos, os sábados à tarde se tornariam sagrados para mim. Muita leitura, muita discussão, alguns porres homéricos, muita amizade & cumplicidade. São experiências que para mim jamais deixarão de ser tesouros de alumbramento, relíquias humanas guardadas para todo sempre em minha caixinha de jóias da memória.

 

Foi naquela casa antiga, onde o velho Oswald resmungava que sua incrível fábrica de biscoitos finos um dia ainda daria pé (esse nosso anárquico Willy Wonka & sua fantástica fábrica dos biscoitos finos), que conheci pessoas muito bacanas, com quem troquei muitas idéias & reparti grossas lascas do filé da vida. Foi lá, entre uma cerveja & outra, uma cachacinha do Piauí, observado por Drummond, Sá-Carneiro, Bandeira, Mário, & tantos outros, que conheci as Corrêa (Semíramis, Patricia & Nora — três das pessoas mais importantes & queridas da minha vida), o Nelson Policarpo (que sempre me lembrou um Nick Cave de bom humor), o Helio Neri (grande amigo & um dos poetas que mais gosto de ler), o Adriano Figueirinha (saudades, amigo), Danilo Bueno (grande amigo & grande poeta), o Antonio Possidonio Sampaio, a Margarete Schiavinatto, o João Alberto Tessarini, o Wagner Calmon (saudades, amigo), o Guilherme Vidotto, o José Duda, o Hildebrando Pafundi, a Wilma Lima, o Fernando Cereja, o Artur Soares da Cruz, o Zé Terra, a Rosana Chrispim, o Alexandre Takara, o Gilberto Tadeu de Lima, o Tarso de Melo, o Kleber Mantovani, o Artur Gomes, a Luzia Maninha. Ufa! Aliás, Maninha, la torquatiana, era a carregadora de piano editorial, construtora de tantos & tantos livros que fizeram a alegria geral dos malucos por poesia.

 

De todos os lados me chamam

— Onde vais Cobra Norato?

Tenho aqui três arvorezinhas jovens à tua espera

 

— Não posso

Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia

 

E as crias da Luzia (que não é rainha, mas é Maninha, e isso faz rima, que é muito mais legal que qualquer reinado) eram os imprescindíveis livros, catálogos, fanzines, plaquetes, revistas. O diabo A4! Coisas que ela (engenheira do Piauí) construía & com as quais a gente se divertia & fazia a nossa história acontecer.

 

É, meus caros leitores, foi um tempo realmente incrível. Era um tempo repartido, tempo de pessoas que repartiam. Era o tempo dos alpharrabistas. Os alpharrabistas que chegaram chegando, dançaram dançando. Não eram nada discretos, nem silenciosos, mas escolhiam a hora & o tempo do seu precioso trabalho. Eram pacientes, assíduos & deveras perseverantes. Executavam, segundo as regras herméticas, desde a pintura, o ensaio, a ficção, o canto, o dramático, o lírico, o épico. Evitavam qualquer relação com pessoas de temperamento sórdido. Os alpharrabistas chegaram chegando. Lavro & dou fé.

 

Durante esse tempo, assisti a algumas oficinas de poesia (duas, uma ministrada por Dalila & outra por Zhô), participei de vários eventos (entre eles o Talentos Emergentes, que deu voz ao jovem poetariado do ABC paulista), fiz uma faculdade, assisti cancioneiros, escrevi uma coluna sobre poesia chamada Umapalavra no charmoso & saudoso jornal Tribuna Popular (editado no muque pelo inolvidável Figueirinha Jacaré), dancei, bebi direto da fonte, casei, publiquei livros, comemorei, deitei & rolei. Curti à beça, é isso que quero dizer. Comecei a ver no escuro novos tons de escuro.

 

Há muita coisa para se falar do Alpharrabio. Para mim, poderia resumir que foi o começo de tudo. Tudo o quê? O começo de tudo aquilo que valeu a pena. & continua valendo.

 

Foi muita gente, foi muita poesia, muita alegria, muita cerveja, muita amizade, muita conversa, muito afeto, foi muito tudo. & aqueles anos foram inesquecíveis justamente por isso. Porque as coisas da vida só nos servem assim, inesquecíveis.

 

 

Dalila Teles Veras, José Paulo Paes & Antonio Possidonio Sampaio, na Livraria Alpharrabio

 

 

Hoje, no momento em que essa charmosíssima livraria, inaugurada em 1992, completa seus vinte anos de guerrilha cultural, sinto uma saudade boa. &, colecionando cabelos brancos com a mesma ânsia que o velho Santiago buscava seu espadarte, desta janela no centro da Paulicéia, olhando o sol iluminar as curvas do Copan sob estrias de nuvens que parecem imitar a caligrafia de alguma língua morta, neste momento em que se completam 90 anos daquela semana que bagunçou o coreto da arte nacional, sinto que tamanha paixão (daquela poeta portuguesa que abriu o coração & a porta de sua livraria a todos nós) só poderia mesmo ter gerado essa generosidade maciça, que, é certo, poucas vezes teremos chance de presenciar em nossa vida. Os incríveis dias de Alpharrabio foram minha semana de arte moderna afetiva. & acredito que assim tenha sido para muita gente.

 

E foi mais: o Alpharrabio foi meu Café Nice, foi minha Galeria Six em 7 de outubro de 1955, foi minha Nutopia, foi meu Cabaret Voltaire, minha "Stairway to Heaven", meu Sabadoyle, minha City Lights Books, meu Festival de Woodstock, minha redação do Le Corsaire-Satan, minha Universidade Federal da Bahia nos anos de 1960, foi minha Coney Island of the Mind, foi minha Recife Mangue Bit, minha Florença medieval, minha Abbey Road em 1969, foi minha greve dos operários do ABC nos anos 80, foi minha passeata dos Cem Mil nos anos 60, foi minha Tróia, foi minha Livrespaço nos anos 80, foi minha vereda para o grande sertão, foi minha esquina da Ipiranga com a São João. Acima de tudo, foi minha, a minha Alpharrabio!

 

Aos que partiram, fica essa saudade boa & a alegria de ter compartilhado um pedaço delicioso da vida com vocês. Aos que ficaram, meu carinho, meu respeito & meu muito obrigado pela gentileza. Para a maestra: obrigado, Dalila, por abrir tantas janelas & salvar tantos afogados, obrigado por tudo. Meus parabéns a você & ao vintanista Alpharrabio.

 

 

A poeta Dalila Teles Veras & a Livraria Alpharrabio

 

 

fevereiro, 2012