*

 

sobra um gesto
um acento gráfico
um dia do cão que não pode sair
porque chove
sobra a garota de tranças na janela
esperando o tráfego
passar
esperando o tráfico
chegar
sobra uma coceira no dedão do pé
e o rod stewart
que não quer talk about it
sobra um reggae
ou um rap
um don't worry
be happy
sobra um ultrassom de tireoide
uma dose de ouzo
um cê tá falando grego
sobra o auto-retrato falsificado
de el greco
sobra o boleto do bradesco
com acesso wi-fi
sobra uma fanta laranja
pra receita de hi-fi
sobra a estagiária
um boquete no salão oval
e a secretária caliente
maggie gyllenhall
sobra confete
let's go party
tem um vídeo do van damme

que ensina a abrir espacate

 

 

 

 

 

 

*

 

e se você fosse
comigo pro nebraska
seguir a cientologia
de l. ron hubbard
que diz que nos desperta
uma consciência imortal
que diz que nos dá poderes
de deuses gregos
e se você fosse
comigo pra utah
seguir as visões
de joseph smith
tentar a poligamia
evitar o meu ciúme
e o consumo de cafeína
e se você fosse
comigo pra nova york
gritar oh lord
numa igreja do harlem
repetir my lord
numa igreja do bronx
fingir que não somos
turistas
você tem passaporte visto dólar?
oh, shit!

 

 

 

 

 

 

*

 

e se eu te dissesse
que ando mudando os ganchos de lugar
só pra te acusar
de pendurar toalhas no lugar errado?
mesmo assim você ficaria?
e se eu te roubasse
dezessete minutos de vida
te oferecendo um trago
de um cigarro adulterado?
mesmo assim você ficaria?
e se eu ainda me superasse
em técnicas de tai-chi-chuan
para desprezar suas ideias
e te dizer fica zen?
mesmo assim você ficaria?
e se eu não movesse uma palha
pra livrar tua cara
pra te isentar da taxa
do barco de caronte?
mesmo assim você ficaria?
o formulário está preso na geladeira
preencha se quiser
volto às seis

 

 

 

 

 

 

*

 

às vezes não é só o café fraco requentado num refratário barato
nem o pior filme do mundo na tela de 24 polegadas
não é teu vizinho comemorando um gol
nem o porteiro te avisando que tua encomenda chegou
não é aquela pessoa que te machucou de maneira irreversível
ou aquela que te pergunta quantos anos tem teu cachorro
não é o último gole de conhaque naquele dia quente demais
ou o pijama improvisado com qualquer coisa que saia do armário
não é aquela promessa quebrada pelo teu arquétipo fraco
nem a centésima tentativa de começar uma dieta
não é aquele talk show que destila gramáticas fora de uso
ou o manual de boas maneiras da tua avó
não é o último dvd daquele box do teu seriado predileto
nem a explosão do bueiro que não acertou tua cabeça
não é aquela muvuca ao redor do atropelado
ou a solidão de um idoso no globo repórter
às vezes é você saber
ao fim de uma caixa de lenços descartáveis
decorada com bexigas e confetes

 

 

 

 

 

 

*

 

a primeira vez que te vi
não teve a teresa
de manuel bandeira
eram minhas as pernas estúpidas
eu andava em l
feito cavalo de xadrez
eu tava com o dedão do pé inflamado
por conta de um alicate não esterilizado
eu tava descalça
por conta do dedão inflamado
e do alicate não esterilizado
eu pensava num roteiro
prum filme de ação iraniano
eu carregava o cartão de um marceneiro
para que ele derrubasse as certezas
que eu ninava na parte de cima do beliche
eu quis te fazer uma carícia pela metade
e te receitar suplementos vitamínicos
aqueles cheios de abecedário
pra que entre nossas palavras
cruzadas
os espaços fossem grandes demais
para as três letras
de fim

 

 

 

 

 

 

*

 

porradaria em jogo de hóquei
no canal de esportes
da tv a cabo
caras que ficam sequelados
aos 28 anos de idade
em qualquer motel de denver
traficantes de oxicodona
que circulam em pátios
de conjuntos residenciais
policiais com lábios sujos
de donuts de framboesa
café que escorre
pelo decote de prostitutas
travestis que se chamam dorothy
cobram cinquenta dólares
e dizem amém
assim que se abaixam
e olham pela janela
de mustangs prateados
psicopatas aposentados
que se mudam para a irlanda
e testam novos sotaques
para gargantas cortadas com arame

 

 

 

 

 

 

*

 

teu velho moleton encardido de tabaco
e um último suspiro da tua jugular
antes de você
eu desmontava matrioskas
e as triturava
na velocidade 5
do liquidificador
eu nunca me importei com a rússia
ou com as sombrias parábolas sobre as tentações carnais
de tolstói
antes de você
— desculpa a rima —
dói

 

 

 

 

 

 

*

 

morre-se
assim
todos os dias
em atentados
chacinas
epidemias
de velhice
engasgado
alergia crônica
a aspirina
sem ar
de asma
sem paradeiro
da bombinha
de incêndio
parto
câncer
e astrologia
overdose
de anti-heróis
da coleção sabrina
cirrose
derrame
greve de fabricantes
de insulina
de ruas
calçadas
e bigornas lançadas
para testes
de pontaria
suicídio para combater
fibromialgia
de amor
e tudo
que não é
recíproco

 

 

 

 

 

 

*

 

você tem isso de viver entre mudanças
de números do relógio digital
escolhe o toque canto do galo pra acordar
pra que tudo seja assim mesmo
ridículo
como as pantufas que você mete nos pés
pra dar uma de pato donald
no holiday on ice
tem aquela iluminação via spot
tudo mó style
que o próximo inquilino
vai mandar arrancar
e a constelação de órion
que você montou com o velho kit de starfix
e acabou chamando de nebulosa
só pra impressionar a garota míope
que você esqueceu
semana passada
na sala de estar

 

 

 

 

 

 

*

 

tem uma coisa na maneira que você sobe na escada
pra escolher um filme do tarkovski
tem uma mensagem subliminar no seu cartão de visitas
tem sua insuportável mania de estalar beijos no meu ouvido
e seus cabelos que fazem cócegas no meu ombro
tem aquela sua camisola de megastore que sacaneia seus joelhos
e vai se desfazer na primeira lavagem
tem seu curso rápido de inglês
e seus amigos que te pagam uma cerveja na happy hour
tem essa besteira de você querer que eu me excite com antropologia
tem seu salto preso na calçada
e as moedas que você joga pro pedinte
tem sua falta de sentido no espelho retrovisor do meu carro
e sua frieza ao alimentar o gato
tem sua medalha de ginástica olímpica
e aquilo que você faz com as pernas
esqueça o resto

 

 

 

 

 

 

*

 

sinal de ocupado
em todas as linhas
do tele-sexo
nó na 
garganta
nas juntas
de nós
— nossas —
remendadas
com durepox
dia de cão
que chafurda
em teus restos
rasos
cão que não trepa
na segunda-feira
feito ele
te esqueço
então penso 
em linda 
lovelace
mas o que escorre 
entre meus dedos
é só leite de magnésia 
da phillips

 

 

 

 

 

 

*

 

tenho o nome de outro cara
tatuado no cóccix
caso você queira saber
antes de tirar a minha roupa
que as coisas pra mim
mesmo as que não se apagam
não duram muito tempo

 

 

 

 

 

 

*

 

não me interessam
hobbits
hobbies
harold hobbs
nem double cheeseburgers
que tu compra no bob's
tudo tão irrelevante
quanto espiga de milho
sabe o nome?
corn cob
tenta de novo
um advertising
coloca mais blow
nesse teu job
ou fica parado
quem sabe assim
tu ganha fama

num flash mob

 

 

[imagens ©irving penn]

 
 
 
 
 
 
 
Adriana Brunstein é PhD em física, escritora e roteirista, com trabalhos em várias vertentes e meios da comunicação. Ganhou o prêmio HQMIX 2008 de melhor roteirista nacional pelo roteiro da Graphic Novel Prontuário 666 — Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão e foi contemplada pelo 13º Cultura Inglesa Festival com o curta-metragem Olhos de Fuligem. Publicou o romance Estado Fundamental pela Panelinha Books (2012). Vive em São Paulo.