O silêncio de Orfeu

 

 

IV

 

 

A tua beleza é sopro dos caminhos.

O eco dos teus passos é o louvor das montanhas.

Tanta sede tenho do teu nome,

tanta fome alimenta-me para a tua vinda,

que a minha sombra tornou-se um pássaro de areia,

um crepúsculo de sal. A noite soletrou,

em cada estrela, a inocência dos teus sonhos.

Não há manhã capaz de silenciar

essa lua de rubro vinho

a latejar o nosso  abraço.

 

 

 

 

 

 

Quando a espera é um ritual de lua e sombra

 

 

IV

 

 

Como barcos a se findarem

nas margens do desassossego,

minhas ânsias quebraram-se

em maresias de sal e ausência.

Tudo em mim palpita a solidão.

Em tudo rasgo-me na espera:

doce canção de trigo e mel

a amadurecer o meu corpo.

Esse verão distante já me inscreve

em palavras de febre,

sílabas de um magma vivo, desnudo:

tua presença tatuada no cio desse ardor.

Como pássaros a se desmancharem

nas asas de uma longa espera,

minhas ânsias aquecem

as sementes desse sol em esplendor.

 

 

 

 

 

 

VI

 

 

Todo poema sempre foi o eco do teu olhar,

o leve adejar do teu rosto.

Por isso os desertos gritaram

as agonias todas em mim.

 

 

 

 

 

 

Dentro da noite escura

 

 

IV

 

 

O que pode a morte contra o Poema?

Qual a força do desespero ante o encantamento

vindo do clamor fecundo da vida?

O que pode o nada contra a fúria da palavra?

Qual solidão é capaz de destruir esse sopro

feito do ardor de toda fragilidade?

 

O Poema abre o peito contra a tarde,

contra o delírio dos desastres

e se joga do mais alto precipício

até despencar desnudo

no êxtase pleno da vida.

 

 

 

 

 

 

Cantilenas do impossível amor

 

 

IV

 

 

Semeei todas as cicatrizes no amor.

Espargi todas as chagas no abraço.

Tudo em mim consagrei

a esse esplendor de sombras,

magnífico em sua violência voraz,

em seu terror luminoso.

Depois do leve espargir dessa flama,

restou-me a alma fraturada

e a busca de um impossível poema.

 

 

[Poemas do livro Arqueologia dos acasos. São Paulo: Delicatta, 2010]

 

 

 

II

 

Calei, em mim, a fúria dos acasos.

Estou predestinado a amanhecer

pássaros em toda palavra.

há sempre uma quietude

de ninhos sobre o meu abandono.

 

 

 

 

 

 

VII

 

 

Pousei o rosto nos nascimentos.

Nos meus olhos, uma palavra cegou-me

com a força imorredoura de tudo o que respira.

Sou a inteira vida no seu âmago,

no avesso da própria vida. Sou pulsação

até onde a morte existe. Fui convocado

pelas presenças a morar nelas, a fecundar

suas raízes. Da correnteza do meu pulso,

nasce essa vertigem a latejar sementes,

a queimar sonhos em barcos de âmbar,

em pássaros de argila e sopro. Pousei

o rosto nos nascimentos. Carrego na fronte

o estigma de imperecível despertar.

 

 

 

 

 

 

X

 

 

Não adianta acordar desse sonho.

Ele te acorrenta a ti mesmo,

veste tua nudez com a rocha

mais viva, mais densa.

De nada resolve te libertares

dessa ilusão. Ela é tuas veias,

teu pulso, teu cerne mais secreto.

Perdê-la é encontrar a morte,

é morrer estando morto.

Se despertares dessa delicada

ficção, uma outra te espera:

labirinto de névoas a escavar

o teu nome, o teu rosto...

Não adianta acordar desse sonho:

pássaro sem contornos, infinito,

a abraçar a sombra de tua sombra.

 

 

 

 

 

 

XXX

 

 

Não há, em mim, espaço suficiente

para esse delírio, para esse clamor

vindo da exaltação do fogo.

Magma de ardentes relâmpagos,

ele me toma nos braços,

enreda-se em minhas pernas,

pelos desvãos da minha pele,

e tatua em meu pensamento

um corcel desenhado

por súbitas tempestades,

por agudas fatalidades.

Não há, em mim, pulso suficiente

para essa febre, para essa sede

vinda da vertigem da noite.

Nos meus sonhos, há um palpitar

de dorsos e flancos incendiados pela lua.

 

 

 

 

 

 

XLIII

 

 

Pacifico o poema, para que o dia

fique mais próximo do meu coração.

Semeio essa manhã nos subterrâneos

do meu nome, para que a luz do sol

seja capaz de me acender no espanto

vivo de cada palavra. Abraço, em mim,

as paisagens todas; festejo o silêncio

na leve iluminura do orvalho. Um ninho

abriga suave canto: é no meu nome

que ele adormece asas e voos.

 

 

 

[Poemas do livro Sobre a nudez dos sonhos. Goiânia: Kelps, 2011]

 

 

 

Celebração das marés

 

I

 

Um risco de veleiros em fuga

sempre foi o teu nome.

Arquipélagos de incandescentes pássaros

os teus olhos. Os frutos do sal,

a íris do sol na filigrana das águas,

os cardumes do outono

clamam em teus pulsos

a presença de um fogo vivo,

cicatriz de um oceano em fúria.

 

Sempre foi o teu nome as marés.

Em toda palavra,

navegam barcos de pólen,

peixes de constelações ardentes.

Em casa silêncio,

nasce o azul dos cavalos-marinhos,

movimento dos remos singrando o mistério.

 

O teu nome sempre foi os promontórios,

as ilhas desvairadas pelo verão.

Sobre a nudez do desejo repousam

a brancura das velas infladas,

a plena luminosidade do meio-dia.

 

Em teu destino os corais tramaram

a encantação das estrelas marinhas,

a memória dos búzios.

Essa é a convocação das marés:

esculpir os sonhos na febre das ondas,

na areia desfeita nas orlas.

 

No teu nome o sono das crianças

apascentou a cólera das naufrágios.

 

 

 

 

 

 

III

 

 

Do poema nada nos resta

a não ser essa viagem

rumo aos mares,

esse gosto de naufrágio

ao findar das paixões,

esse astrolábio partido.

 

O poema,

peixe cego,

barco amputado,

nada nos ensina,

em nada modifica

a força das marés.

 

Rastro de espuma

na pele dos acasos,

o poema finca as âncoras

no sal, na eternidade,

onde nossas ausências

ardem o grito dos corais.

 

O poema é nudez precária,

procela sem ventos, sem nuvens.

Quando nele adormecemos,

acordamos com os ossos fraturados,

vergastados pelas maresias.

 

O poema é tão inútil

quando o mar ao fim da tarde.

 

Por isso seu esplendor é límpido

como a beleza do silêncio.

 

 

 

 

 

 

VI

 

 

Abracei inteiramente a solidão.

O mar derramou minha presença

em todo espaço onde não existo.

De pé, em frente ao esplendor das águas,

soletro o sal, a luz dos veleiros,

o nome dos pescadores sepultos pelas ondas.

Vivo onde somente vicejam os oceanos,

onde o destino dos homens sempre se fez maresia,

pranto, arquipélago.

Nasci das estrelas marinhas,

vesti minha nudez

com o fogo dos corais,

com o nascimento das marés.

O mar derramou meus olhos

em toda iluminação onde não vivi.

Por todo o sempre abracei

as sete chagas dos oceanos.

 

 

 

 

 

 

VII

 

 

Sou sempre às vésperas do naufrágio.

 

 

 

 

 

 

XIII

 

 

Os oceanos são muito pouco para a tua face.

As âncoras, o velame branco do vento,

as ondas, iluminura de ardentes escamas

não podem conter teus braços,

os sonhos todos a vergar os teus ombros.

Afagas a sombra das quilhas,

adormeces no silêncio dos búzios,

na chaga viva dos corais,

para ressuscitares, inteiro, além de todo limite.

Os oceanos não bastam para a palavra.

Por isso o impossível também se faz água,

abre-se em ardente sal, em correnteza.

Os oceanos não podem abraçar o desassossego.

Sôfrego, navegas sempre além da página,

do resíduo, do silêncio amordaçado.

Inscreves além dos mares mais longínquos,

a plenitude dos desertos, a sede dos areais em febre.

Mar nenhum poderá abrigar a tua dor,

a tua nudez, o nome das ilhas.

O eterno é sempre muito breve para a tua errância.

 

 

 

 

 

 

XVII

 

 

Imprescindível era guardar

no cerne do corpo

o secreto nome do mar.

 

O coração tornou-se a chaga viva

de uma palavra que jamais cicatriza.

 

 

 

 

 

 

Quando adormecemos na delicadeza

 

 

IV

 

 

Se tentares adivinhar em qual folha,

em qual árvore ou poema

o infinito soletra teu nome,

terás de adormecer na quietude

dos pássaros recém-nascidos.

Só um voo sem itinerários

pode abraçar a febre

de sentimentos sem nome,

sem data.

 

 

 

 

 

 

Rugas

 

 

 

Toda a minha vida

súbita

concentrou-se

em meu rosto.

 

Rugas e estiletes

vincaram-me

o pensamento.

 

Um menino

a sorrir

libertou-se

de meus ossos.

 

A morte é uma vertigem

sob o sol do meio-dia.

 

 

 

 

 

 

Genealogia

 

 

As cinzas do sol posto

ressuscitaram os mortos

enterrados no pó

do meu nome.

 

 

 

 

 

 

O amigo e o girassol

 

 

Nos braços do amigo,

os girassóis formam

um guirlanda de fogo,

filigrana de incêndios.

Carrego as queimaduras

do seu peito contra o meu.

 

 

 

 

 

 

Flancos contra o sol

 

 

VII

 

 

À beira do meu corpo

está o touro.

A alegria é o seu coração

de um pássaro

recém-nascido.

 

 

[Poemas de O secreto nome do sol. São Paulo: Patuá, 2013]

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©marina molares]

 

 

 

 

Alexandre Bonafim nasceu em Belo Horizonte. Aos oito anos de idade, mudou-se para a cidade de seus pais, Franca, no interior de SP. Aos 32 anos, fixou residência em São Paulo, a fim de concretizar seu curso de doutorado. Atualmente mora em Goiânia e é professor de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Estadual de Goiás, unidade de Morrinhos. Publicou poemas e contos em importantes antologias em Portugal. É mestre em estudos literários pela Unesp de Araraquara e doutor em literatura portuguesa pela USP. Publicou oito livros de poemas.