Para ver o poema no Youtube, clique aqui.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O NOVO HOMEM DE AZIMOV


 

um pierrot-robô, logra,
remontado (do parafuso
à porca) à força,
tantas peças separadas
a um só bloco sólido,
na hora da acoplagem;

o que derrama dos olhos
seria óleo de máquina?
(não é lágrima?),
o que derrama do peito
além da graxa ingrata?
(não é desgaste?);

o conjunto justo, amarrado
e pronto, apenas aguarda
que recomece a sessão, na qual
como o torturassem, crianças
o desmancharão, de novo,
frankenstein de parque...

 

 

 

 


|||| são oito ||||

 

 

1. que haja, em potência, o erro
(é mais fácil zelar pela cabeça)
ou algum tropeço preso a cada perna;

dois joelhos +/

2. há que se usar os braços
para protegê-la da queda,
no caso de qualquer fraqueza;

dois cotovelos +/ são quatro

3. ainda que, oculto e súbito, um
obstáculo se interponha às pernas,
(é mais frágil na cabeça o cocuruto);

dois tornozelos +/ são seis

4. convém usar mãos como escudos, quando
do inequívoco óbice, cobrir (no rosto)
sempre que se possa, dos olhos, os óculos;

dois pulsos/ na soma, são oito

 

 

 

 


RETROGRESSÃO


 

3.
( para aplacar a vontade ( inútil ? ) de habitar um corpo /
( desde o útero ) todo esforço é doloroso / experimentá-lo
aos poucos ( lançá-lo ao mar e ao mundo / primeiro no raso /
na praia ) como o operário aprenderia um novo trabalho /
em treinos práticos ( quanto mais tarde ( à maré alta )
mais para o fundo )  alcançar gradualmente o diâmetro de todos
os gânglios ( reordenar do hormônio o átomo de carbono
ou destilar a linfa ) requer uns apetrechos bastante necessários
/ um espelho / agulhas / frutas ( algumas pelo cheiro /
o apelo do perfume / outras ( desde a língua ) pelo estímulo
à papila gustativa ) entretanto há inúmeras outras ferramentas
( todas guardadas num labirinto de gavetas ) é estranho esse
gabinete mecânico dos cinco sentidos ( uma oficina onde
se suporia o laborar pacífico / mesmo entre ruídos ( desbravando
a si mesmo ) do taxidermista da própria sensorialidade /
o artista talentoso da sua fenomenologia íntima )


2.
( primeiro livrar dos órgãos internos a caixa externa / que essa
só pesa ) drenar-lhe um tanto de sangue ( como na cebola /
em camadas ásperas / descarnar-lhe das tantas membranas )
pelas lentes dos olhos gelatinosos ( encarar finalmente
o núcleo oculto / e acendê-lo / esse coração na sombra )
de todas as lições / primeiro as da epiderme / depois
as mais internas ( terceiro as da ossatura / dos membros à medula
( obtidos os cálculos frios / do cálcio / na densitometria )
por último as do cérebro ( esbranquiçado / sua esponja suja )
mas antes arrancar-lhe ( porque tidas como reprimidas )
as supostas lembranças ( pelos traumas da infância )


1.
( agora / o ritual diante do espelho / iniciar a pormenorizada
análise ) seguir a trilha lenta das rugas sulcadas
sob o nervo do sereno ( que onde a faca do frio feriu /
o calor curou expulsando o sal dos poros ) mas deixou espalhado
o vestígio / às vistas / e sem disfarce / num corpo de espantalho
( o cabelo desgrenhado que o tempo recolheu / colheita /
deixando aberta a clareira no topo da cabeça ( coroa ou redemoinho )
diz-se dessa calvície da qual é impossível desistir ) porque o vazio
esculpiu o caminho ( ou um abismo ) pensamento adentro
( ao despir-se diante de si mesmo ao espelho / descobrir ali /
na própria ruína desvestida ( um arremedo ) / no entanto
o monumento ao período vivido / esconde ainda ( sob o escombro
dos ombros ) a batalha travada e perdida no talo da coluna
( as décadas da hérnia / tendo invertido as vértebras )
o eixo dorsal destituído dos pontos cardeais / ou do centro
de gravidade ) onde fracassa o espetáculo da locomoção humana
/ ainda que ressoem os sonhos desde a idade placentária
( agora à base de insônia / uísque / remédio / do sexo
mediocremente recíproco ) nem toda falência há de vencer uma
carência maior ( às vezes sobra a sanha mais que o sonho )


0.
( assim vem se abrindo ( precário ) o sustentáculo de um velho
( gasto como uma antiga cópia em sépia ) cujo elástico já lasso
escapa da sua própria ação / em gradual e irreversível descompasso
( os músculos acumulando só o cansaço / e infla como um balão /
crescendo desde dentro ) até tomar de assalto e por completo
um corpo outrora jovem ( que anteviu o fóssil do próprio
obituário na rocha ) do trajeto obrigatório que submete o tempo
ao envelhecimento ( que isento / sem que importe cada vítima
ter vivido sob excesso ou privação ( nunca escolhe a quem
oferecer seu grilhão ) o esforço da forca apenas reforça a corda
contra o pescoço de todos ( sejam bem-vindos / senhoras /
senhores / precoces / tardios / que agora está próximo o alívio /
sejam bem-vindos sempre / ladrões / cidadãos de bem /
esta é a hora da vossa própria estragulação )

 

 

 

 

 

 

 

Alexandre Guarnieri (Rio de Janeiro/RJ, 1974). Poeta. É arte-educador habilitado em História da Arte pelo Instituto de Artes da UERJ, e Mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ (ECO). Integrou, a partir de 1993, o movimento carioca da poesia falada. Fez parte da primeira formação do grupo performático "V de Verso", coordenado pelo poeta Chacal, na UERJ. Junto com o poeta Flávio Corrêa de Mello, coordenou o NCP (Núcleo de Criação Poética) no Sobrado Cultural, centro cultural na zona norte do Rio, onde mantinham o recital mensal "Poesia no Sobrado". Publicou poemas em jornais, revistas e blogues, dentre eles o Panorama da Palavra (do qual foi colaborador), Revista Urbana, Revista O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, Revista Eutomia, Zunái, Musa Rara e Desenredos. Atualmente, pertence ao corpo editorial da Revista Mallarmargens, é colunista de Revista Desmandamentos e integra, com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos] (mais, clique aqui e aqui) criado inicialmente como estratégia de divulgação de seus livros-primos, Casa das Máquinas e [tecnopoética]. Casa das Máquinas (Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia. Em 2014, lança Corpo de Festim.