AO NAVEGANTE

 

Desveste o coração

das plumas e dos pesos

da existência

 

Deste portal em diante

só existem paisagens:

os riscos esboçados

dos pórticos do olhar

 

Neles não cabe ciência,

sequer filosofia,

mas o simples gozo

de vagar

 

 

 

 

 

 

STARDUST

 

Seara em que amara:

eu deserta, ensolarada, naquele saara

e a tábua solta o passo a frouxo

(falling in love)

o olho verde cintilando na escuridão.

Do coração nenhum queixume

se o mar se fingisse de lago

e a lua parasse noutra estação.

Sussuravam-se os sweethearts

e a cidade dormia.

Acendiam mil e uma noites de cetim

à beira do fogo da paixão.

 

 

 

 

 

 

 

ANOITECEU

 

Os homens inauguram-se bruscos

como monumentos.

Toscas palavras de sal.

Dormem secas as cascas

lacrimais da madrugada

desvirginada por galos e cães

Em geometria abismal

bebem as torrentes

do sono aceso.

E o sangue foge

para um campo

vazio e sem lamas,

enquanto a Via Láctea

espreita

o leite latino

da transmutação

 

 

 

 

 

 

 

VERSOS AO ESPELHO

 

Tu me fazes pentear

os versos

ante o espelho

 

que te enlaça, anelo

ainda mais belo,

ao meu desejo de ter-te

 

lua sim, lua não

nos desvãos

dos meus cabelos

entre teus dedos das mãos.

 

Miragem... sonho vão....

Ilusão....

Bobagens, amor,

eu sei.

 

 

 

 

 

 

 

MULHERES

 

Neste início de tarde

fim de manhã do verão

 

o sol me divide

nas várias mulheres

 

que me antecederam

e nas que virão

 

grávidas de luas

na fase obscura

 

com um abismo

no peito

 

 

 

 

 

 

 

TRAVESSIA

 

Cidadã de um deserto tecnológico,

atravesso portas giratórias

escadas rolantes metrôs

estradas metálicas,

sobre pés e rodas.

 

Braços troncos rostos

roçam-se as auras

que o desconhecido devora.

 

São apenas nomes

de personagens e histórias.

 

Não mais que sonhos e miragens

de almas deserdadas,

 

e deus algum as incorpora

 

 

 

 

 

 

 

GRANADA NO PEITO

 

Estaria eu melhor

se estivesses aqui comigo

neste Café, onde Lorca

se sentava

ao sol morno de dezembro

entre os pássaros

e pombos da praça

 

com o peito em chamas

os olhos inflamados

o incerto destino dos sós

 

 

 

 

 

 

 

A FONTE DOS ANJOS CAÍDOS

 

A hora era imprecisa

Madrugada. Talvez alvorada.

Quem sabe meio-dia.

 

Quadrada e imensa era a praça

de prédios, arejada

mas pesada e densa.

 

Logo à frente

na calçada pêndula da praia

a fonte dos anjos caídos.

 

Magros, louros, jovens

como escandinavos

esculpidos

 

nus, a pele sépiadourada

cabelos e corpos molhados,

asas e olhares enlameados

 

vários, sentados nas muradas

de concreto armado

apinhados na abóboda

 

de acinzentada queda d’água,

olhavam com desdém

a andante solitária.

 

Passei sem descolar

os olhos da cena

daquela imagem

 

catedral desossada

miragem do paraíso

devastado.

 

Súbito, um deles desce

e me segue de perto

até a rua da praia

 

Era um mulato aquele

dono ouro-negro

de motocicleta roubada.

 

Hipnotizada, saltei na garupa

e com ele voei pelos ares.

O capacete só aura

 

aura encardida, mal-lavada,

mas aura,

sobre chãos e mares.

 

Voltamos.

Fui viver com eles na fonte

da Praça de Buenos Aires.

 

 

 

 

 

 

 

EM EXTINÇÃO

 

Saio pela porta do alpendre

com um romance nas mãos.

 

Atravesso a rua.

Há uma blusa um batom

um perfume colados em mim

 

embora a engenharia genética

a violência doméstica

as ogivas

 

a bala

certeira

e a perdida

 

anunciem para breve

o meu fim.

 

 

 

 

 

 

 

METÁLICA

 

Temperar o corpo, a alma,

a aura, a armadura

que o que se traz são dores

de guerras em dia

cada dia mais breve.

 

De resto, no peito,

a inflamação dos punhais,

os arrepios, a tenda

dos encontros errantes, os mares

de tesouros naufragados,

 

e ninguém chora

a tarde suicida!

 

 

 

 

 

 

 

SEMI ÓTICA

 

Desenho de giz:

o sol se apaga

e o reflexo mutante

cintila em nenhum

significante

 

De que serve o mundo, Sigmund,

se no tempo tudo é desmanche

constante?

 

 

 

 

 

 

 

E-CARTA PRÉ 8.8º

 

a proximidade com uma notícia aterradora,

não por ainda horripilante e sim por levar

terra e dor em sua pele de letras, me acordou

neste canto escuro do mundo, onde os edifícios

piscam de rojo voluminoso aos pássaros

de plumas e ferro que não vejo,

mas pressinto e aguardo.

 

aqui só o silêncio é úmido, e a língua

não conserva a palavra exata.

há t(r)emores nos ares e mares, e a terra é o solo

onde tudo jaz, ainda que voem os ideais

a quadrantes de margens estelares, sem pegadas

de homens e de meninas.

 

peço ao barman que me sirva um champagne, mas

ele dorme como um muchacho mulato, como

se a noite se fora para sempre com sua alma

dentro

 

 

 

 

 

 

 

BARCO LASSO

 

O sol brilha lá fora

mas meu corpo

deseja frouxidão

repouso de eras

    natural e exato

qual barco

de pesada carcaça

pousado na linha

do oceano

    longe da praia

onde os corpos ardem

    da cidade, onde os homens

se batem sem descanso 

 

 

 

 

 

 

 

[HAICAI]

 

Tomara que caia

um haicai

na tua saia.

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©laura zalenga]

 

 

 

 

Angélica Torres Lima nasceu em Ipameri, Goiás. Jornalista e editora, vive em Brasília. Publicou Sindicato dos Estudantes (edição de autor, 1986), Solares (Bric a Brac/Coleção de Bolso.Brasília, 2000), Koikwa, um Buraco no Céu (Editora UnB, 1999), Paleolírica (Brasília: Alô Comunicação, 1999), O Poema Quer Ser Útil (Editora LGE, 2006) e Luzidianas (Brasília: Athalaia Gráfica e Editora, 2010). Coleção Oi Poema, v. 5). Tem poemas em coletâneas, jornais, portais da internet, em revistas escritas e eletrônicas. Ellen Oléria, Renato Matos, Paula Zimbres e Anand Rao musicaram alguns de seus poemas.