Eu te rio
 

eu te rio
eu te rio o tempo inteiro
eu te mato
eu te lago
largo
imenso
você me concha
você me pérola
inteiriça.
dura feito pedra.
 
 
 
 
 

A palavra amor está oca
 

a palavra amor está oca
a palavra oca está cheia
a palavra cheia não cabe
na palavra palavra
que não sabe de si
e se fragmenta
trago, faço tormenta
a palavra não sabe o que diz
a palavra está cheia de amor,
essa palavra vazia.
 
 
 
 
 

Ele foi desfolhando, desapressadamente
 

Ele foi desfolhando, desapressadamente,
e de repente eu já não tinha aquela cadência
das folhas balançando ao vento.
porque eu sou toda assim:
imitação de árvore
até a raiz!
eu danço
conforme a água.
danço na secura
e no alagamento.
estou inundada
chacoalho
chacoalho
chhhhhhhhhhh…
silêncio
 
 
 
 
 

A mim, sua boca nunca chegou a tragar
 

A mim,
sua boca
nunca chegou a tragar.
e nada ficou da minha presença nos seus pulmões.
E eu achava que era sua.
Eu achava que era um vício.
Sua boca não me serve
nem nunca serviu.
Subsisto em pólvora
que, por teimosia,
vou deixando queimar.
Não se aproxime
que eu incinero.
 
 
 
 
 

Escrevia do fundo do alçapão
 

Escrevia do fundo do alçapão
as cores da minha liberdade.
E ninguém nunca soube
da limpidez do meu choro,
da rouquidão da minha voz,
da falsidade do verso.
 

 

 
 
 
Eu poderia ser Keith Jarret
 

Eu poderia ser Keith Jarrett
tocando em cada vértebra
da sua coluna
ouvindo as notas
do seu sussurro
implorando por



eu responderia
sem dó
sem sol
sem ré
em falsete
que foi de lá
que compus
nosso instante.
 
 
 
 
 

Palavra desgraçada
 

Palavra desgraçada
me rasgou a boca
me lascou o verso
e foi-se embora.
Palavra, quando voltar,
te prego na cruz
de todos os meus demônios.
Me vingo, palavra fugidia,
te fazendo ficar
nos versos mais tristes
que eu souber produzir.
 
 
 
 
 

Catherina
 

Não entendo como pode haver tanta beleza nesses olhos armadilha.
Olhos acesos,
como se adivinhassem um tufão
que não existe.
Olhos d’água
que conhecem toda a dor do mundo
e espocam em desassossego e mansidão.
Olhos cor de aurora em seu começo.
Submersos despretensiosamente em pretensão.
Olhos alfa
Olhos ninfa
Olhos alma
Apoio, amparo, apelo
Olhos cegos,
muito além da alma.
Os olhos doídos
como quem lamenta conservar-se menina
sem se dar conta de que já se fez mulher.
 
 
 
 
 

Quero ganhar
 

Quero ganhar
palavras
ficar velha delas
renovar
quero engolir
o sêmen
das palavras.
romper
o hímen.
cair de quatro
sair da moita
virar
anu
biguá —
vestida
de
silêncio
 
 
 
 
 

A chuva anda se esquivando
 

A chuva anda se esquivando da minha vidraça.
Só poeira enche as janelas:
tudo acontece a distância
míope
tetraplégico
esquizofrênico
O vento sopra, mas a partir de 45 centímetros
de distância
de desprezo
de vingança?
a vida parece que esquece
de mim.
 
 
 
 
 

Você dormindo é reticências
 

Você dormindo é reticência,
e eu não sei
onde cabem mais palavras:
se no seu sono
ou no meu pensamento
quando te vejo dormir.
Não sei se cabem mais versos:
nas reticências
ou nas suas pálpebras
quando cedem
ao cansaço.
Não sei onde deixei
meu escaninho de memórias
quando observo você
encorpado
de Três Marias.
 
 
 
 
 

Eu também
 

eu também já fui
iniciação
de pássaro.
 
também cantei
solenidades.
tantas, tantas!
 
hoje sou de terra,
meu verso ainda
resiste.
 
mas meu canto
é um lamento
triste.

 

 

[imagens ©jx]

 

 

 

 

 

Anna Carolina Vicentini Zacharias (Botucatu/SP, 1988). Escritora e redatora publicitária, é graduanda em Letras na UNESP Araraquara.