Gabriela Rangel | Flor de cedro | Grafite e vinílica sobre tela | 85x76 cm

Coleção particular | Belo Horizonte | MG | Brasil | 2001

 


 

 
 
 

 

 

Gabriela Rangel segue os passos do pai, o grande artista plástico Nello Nuno (1939-1975), porém noutra direção, na qual forma e conteúdo são rearranjos de um arriscado ritual não geométrico, não esgotado num primeiro olhar. A densidade dos signos contaminados informa à lucidez a necessidade estética, testemunha de um conjunto de ideias narrativas, construindo o espaço com aquilo que falta. E aquilo que falta é a pergunta fundamental sobre a dimensão fértil da relação da figuração redistribuída embaralhando as referências. Um balanço raspando a tela procede, corajosamente, sobre a escolha da expressão e técnica, antípoda de qualquer modelo, componentes essenciais e constituídos na complexa investigação. Trata-se de abrir e fechar os olhos incessantemente, com piscadas distintas por um álbum de aproximações das mãos e pés na fronteira movediça do gesto, juntando pedaços de um inventário de aparições encobertas pelos cortes, sobressaindo-se o lirismo da flor branca no fundo telúrico, em contraponto à outra preta na vertical. Os recortes na tela são traços que remetem à reflexão de Maurice Blanchot: "Além de cada momento da linguagem poder se tornar ambíguo e dizer coisa diversa do que diz, o sentido geral da linguagem é incerto, não sabemos se ela expressa ou se representa, se é uma coisa ou se significa; se ela está ali para ser vista: se é transparente por causa do pouco sentido do que diz ou clara pela exatidão com o que diz, obscura porque diz demais, opaca por que nada diz". Todavia, a questão da figuração na obra de Gabriela Rangel não se fecha simplesmente na forma, conteúdo, falta, exatidão ou sinais camuflados, representação ou a mera procura de sentidos. Abre-se no caminho da linguagem consistente aquilo que acena aos espectadores, a transfiguração de uma passagem que leva a construção do imaginário...

 

 

Deuses e mitos | Inimá de Paula | Xilogravura | Tiragem especial 13/16 | 29x21 cm

Coleção particular | Belo Horizonte | MG | Brasil | 1983

 

 

Inimá de Paula (1918-1999) não ficou somente naquilo que alguns críticos observam como uma revisita aos mestres fauvistas e suas vibrações de cores, que destravam as paisagens e os motivos dos lugares. Podemos observar na pintura de Inimá de Paula a vitalidade da pincelada não retorcendo e lambuzando em demasia as formas, nem inflamando a contragosto os efeitos das tonalidades. O trabalho meticuloso determina o rigor da consciência, transpassa o abstracionismo lírico, não abandona a estrutura, e sustenta o movimento fluente mesmo na xilogravura. Não rebusca, revaloriza a figuração num desenho vigoroso, intenso e significativo. Prefere, como em seus quadros, os primeiros planos na frontalidade que despe as sutilezas gráficas com linhas aparentemente simplificadas. Transborda o céu com uma flecha afiada a percepção visual do homem na condição que acentua "o traço, qualquer traço inscrito numa folha, denega o corpo importante, o corpo carnudo, o corpo humoral; o traço não dá acesso nem à pele nem às mucosas, o que ele diz, é o corpo na medida em que ele arranha, aflora (pode-se mesmo dizer: faz cócegas); pelo traço, a arte desloca-se; a sua sede já não é o objeto do desejo, mas o sujeito desse objeto: o traço, por mais fino, ligeiro ou incerto que seja, remete sempre para uma força, para uma direção; é um energón, um trabalho que dá a ler o traço da sua pulsão e do seu gasto. O traço é uma ação visível", na percepção sutil de Roland Barthes, ao destrinchar a visibilidade. Deuses e mitos são incisões na madeira com uma proposta que perpassa o pensamento soprando pela terra, que olha, para, e repara com ânimo à ressonância de uma possibilidade cortante, transformadora, com luz na transcendência...

 

 

Hélio Oiticica | Penetrável quadrado mágico: invenção da cor | Escultura

Coleção Inhotim, Instituto de Arte Contemporânea e Jardim Botânico | Brumadinho | MG | Brasil | 1977

 

 

Qual breve comentário pra lá de pertinente sobre Hélio Oiticica (1937-1980), Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, dentre outros, devemos escrever? Não somente sobre o Neoconcretismo e seus desdobramentos, bem como os possíveis diálogos com o Cubismo Sintético dos últimos anos (+-1918/1919, os tableaux objects), até Dadá entra na história, também o Suprematismo, o Tropicalismo, a Land Art, o movimento Fluxus, John Cage, Joseph Beuys, Jasper Johns, Rauschenberg, etc. No meio de tantos nomes e movimentos de vanguardas prevalece, sem soma de dúvidas, o artista fundamental. Duchamp foi importante, porém tem outro expoente seminal. Hélio Oiticica realiza a atitude revolucionária que colocou o Brasil no mapa contemporâneo das artes plásticas (vide exposição no MOMA, Nova Iorque, EUA, 1970; também na Whitechapel, Londres, Inglaterra, 1969; os Parangolés, o penetrável Tropicália, etc.). Eis o principal, até então nada visto: agora o importante é tocar, sentir, vestir, performar e vivenciar, não mais somente admirar os objetos de arte. Um convite à invenção do espectador. O que está por fazer com participantes e não atores? Uma performance espontânea deslocando as possíveis articulações das imagens. Uma fusão e momento/movimento criativo desagregando/agregando os sentidos e as cores; operação e expansão, apontando e sinalizando o artista como o criador/mentor inicial da obra, na qual a temporalidade no espaço se dá pelo encontro e participação do observador/espectador com o objeto, formas, cores, estrutura, redimensionando os sensos estéticos. Pluridimensional, reinventando a cor projetada na espacialidade. Um choque repleto de possibilidades no rastro da imaginação coletiva naquilo que está por vir, por realizar, algo inacabado e verdadeiro, em processo, na intimidade da obra de arte como uma espécie de re-traço/re-montar/re-arranjo/re-sentido/re-significado/per-curso/trans-curso. Vale relembrar Hélio Oiticica: "Primeiríssima tentativa consciente de impor uma imagem 'brasileira' no contexto de vanguarda. (...) É importante que os conceitos de ambiente, participação, experiências sensoriais, etc., não se restrinjam a soluções objetais: deverão propor o desenvolvimento de atos vitais e não mais uma representação (a ideia de arte)"...

 

 

Edward Hopper | Chair Car | OST | 127x101,6 cm |

Coleção particular | New York | NY | USA | 1965

 

 

Falar sobre Edward Hopper (1882-1967) nos leva a citação de Degas: "É muito bom pintar tudo o que se vê, mas pintar o que ficou na memória é muito melhor". As transposições de Hopper podem ser descritas (observação do próprio pintor) como a "morte total", que faz lembrar o simulacro total, tão bem descrito, estudado, analisado e refletido no livro América de Jean Baudrillard, na década de 1980. Aguça a matiz da memória aquilo que a solidão impera de maneira explícita: a morte da ideia original. O realismo do artista americano, seus contextos fechados na autonomia do quadro, estimula e reelabora as percepções dos observadores em torno da questão da morte total, pois, observa-se a partir da geometria, na imagem da tela acima, uma aparente calma preenchida de isolamento, nos quais se destacam artifícios e personagens "abonecados", cujos rostos desbotam nas sombras. O trato com a luz, diálogos com a fotografia e o cinema, congelam as figuras, dando uma sensação de retraimento, uma presença ausente, oximoro e simulação encharcadas de verde: um branco encardido bate à porta sem a fechadura, trazendo na bagagem as janelas e o estrondo do Modernismo. Mesmo assim, qualquer observador poderá perguntar que isolamento é este? Um tipo de (in)sensibilidade/(in)diferença que contrasta o motivo em relação às cores; o não intercâmbio do claro-escuro previamente definidos; a intervenção assinalada num palco mudo de um mundo já totalmente sem esperança, asfixiado, e padecendo da falta de comunicação; a morte da ideia original de uma civilização atormentada na sua contraditória tranquilidade. Hopper é o pintor das ilusões perdidas. Além de meras representações com status diferenciados, muito além, seus quadros sempre atuais revelam o entorpecimento e a carência do homem moderno e contemporâneo. Reelabora o real pela força da sua imaginação e memória, atravessando o tempo/espaço com uma visão pictórica tensionada pelas ideias da sociedade de consumo e uma crítica sensível sobre as cenas do cotidiano. Não tem como não concordar com Clemente Greenberg: "Hopper é, muito simplesmente, mau, mas se fosse melhor pintor, não seria provavelmente um artista tão bom"...

 

 

 

 

 

abril, 2013