Ensaio para o jardim dos versos que se bifurcam

 

a Jorge Luis Borges

 

que singular mistério terá sido este

cujo sonho é poço e pêndulo

laminas afiadas, tigres, labirintos

que estranha linhagem de chamas

são estes mapas, bússolas, rios

neste findar-se em lágrima e cristal

que rigorosa complexidade

terá traçado a linguagem, que

dela o acaso não pode prescindir

que infinito terá na areia e no livro

na catequese do espírito e da treva

neste duplo ausentar-se em sonho

que pródigo terá a sua Ítaca revisitada

os fios de Penélope a lhe dourarem

o semblante na confluência do ocaso

 

 

 

 

 

 

Ensaio de remissão ao silêncio da estrela

 

assisto ao trânsito tardio dos girassóis

agora eles se curvam ao ocaso

num rito de alvíssaras sem mesura

breve será hora de recolher os olhos

e entregar-me sem destino à tua noite

nesta estranha prece que teces com a

infinitude de sílabas que desce do orbe

 

 

 

 

 

 

Último estudo sobre a leveza das estrelas

 

o amor lambe os olhos

faz cantoria aos ouvidos

brinca de lilás na língua

saltita de sol nas retinas

o amor mordisca orelha

faz cafuné no girassol

irrompe de sobressalto

a alegoria dos sentidos

o amor instiga as brisas

faz vereda nos cabelos

é pueril riso em desatino

afaga silêncio, desalinho

 

 

 

 

 

 

Oração para artefatos da língua

 

a moça comeu o poema

e todo o silêncio

que ali dentro havia

a moça comeu rima

aliteração, prosódia

métrica, sinestesia

a moça comeu o poema

em todo sentido absoluto

eufemismo, anacoluto

 

 

 

 

 

 

Sonata elegante para o alvorecer

 

eu não sei como nascem os segredos

nem a distância que o voo pode alcançar

sequer a maciez do livro sobre o seio

só sei da ausência, do vazio, da exiguidade

da imprecisão do verbo para (te) nomear

 

 

 

 

 

 

Suíte burlesca para um diálogo com a ausência

 

foste tu nesta distância de muitos quilômetros

a ilha, a quimera, o oásis, pasárgada dos dias

a cotovia desavisada que insinuou a primavera

foste tu que me impuseste silencio e ausência

nesta seara de corpo que se move em frêmitos

no olho arredio que já se despediu das estrelas

foste tu, este eterno assovio em minhas retinas

a mão que agitou o delicado trovão da espera

 

 

 

 

 

 

Suíte agreste para ventanias d'além mar

 

Uma noite quando lia atento

Une Saison en Enfer

Exultavam em mim arrepios

E uma cotovia desavisada

Pousando nos umbrais

Cantou never more, never more

E eu nunca mais fui o mesmo

Nunca mais.

 

 

 

 

 

 

Balada triste para ruas quando chove

 

ela me flertava coraçãozinho

eu tão ensimesmado de amor

um dia nos debruçamos sobre o mar

eu tinha beethoven nos ouvidos

ela tão escarlate em seus lábios

rugia o vento dos olhos

não havia sílabas

apenas o raso da pele

o rasgo do peito em tumulto

eu não tinha vontade de lhe

entregar a minha solidão

 

 

 

 

 

 

Canção para corpos em amplidão de extravio

 

abraço, jardim, claraboia

língua, saliva, água de cheiro

lábio, lóbulo, espádua

jasmim, florada, abóbada

céu, estrado, cópula

 

 

 

 

 

 

Poeminha de cão danado

 

a minha saudade é um girassol amargo

a saliva de sol poente

este agosto aziago no dente

 

 

 

 

 

 

Poeminha de padecimento

 

sofro de uma inutilidade sem fim

nenhuma palavra me salva

 

 

 

 

 

 

Adejar o infinito em miragem cigana

 

este rio que me corre

dos pés à margem

 

não habita o peixe

com o seu delgado

 

antes corrói a asa

estes corcéis alados

 

 

[Do livro Poemas de urgência para súbitos desalinhos. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013]

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©van gogh]

 

 

 

 

José de ASSIS FREITAS Filho é poeta, escritor, sociólogo e mestre em Letras (UFBA), nasceu e mora na cidade de Feira de Santana/BA. Tem poemas e narrativas publicadas em diversos jornais de circulação estadual e municipal. Em 1998, publicou o livro de contos O Mapa da Cidade, pela Coleção Flor de Mandacaru do MAC, de Feira de Santana. Participou, também, da Antologia do concurso nacional de contos Newton Sampaio (2005), editada pela Secretaria de Cultura do Estado do Paraná. Em 2009, publicou o livro de contos O Ulisses no supermercado como premio do concurso CDL de Literatura de Feira de Santana. Em 2012, publicou O ano que Fidel foi excomungado, pela Editora Penalux. Como poeta, participou de diversos números da Revista Hera (1972-2005) que possui edição fac-similar, publicada pela Editora UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana) em parceria com fundação Pedro Calmon (Salvador/BA).  Possui poemas na agenda Livro da Tribo. Lançou, em janeiro de 2013, o livro Poemas de urgência para súbitos desalinhos, pela Editora Multifoco.