*

 

nome?
o meu
mas mudo sempre

idade?
já não tenho
nunca tive
ninguém tem

endereço?
agora não
agradecido

profissão?
catador de signo

profissão?
criador de silêncio

profissão?
michê falido de palavras
que dão pra qualquer um

alguma doença?
essa pequena, a de viver
mas nada que não passe
com o tempo

 

 

 

 

 

 

*

 

ser cruel
e humano
é natural

dente é presa
mão é pedra

matar e morrer
uma conversa
entre atores
da mesma peça

a plateia grita
(prazer ou dor?)
e no escuro brilha
a lâmina de iago

ou o olhar
de elpenor

 

 

 

 

 

 

*

 

o sentido do casulo
são as asas do depois
a fresta no meio do muro
e a entrada da luz

por isso o sentido da obra
do muro casulo parede
para que germine o poeta
o mar de sua sede

para que faça lá fora
nascer o que havia dentro
para que transforme em forma
o que era só silêncio

 

 

 

 

 

 

*

 

de cristais e silêncios essa falta
foi a fera na mesma estrada antiga
não me veio ninguém da esfera alta
luz nenhuma que em outro espaço brilha
não se fez menos dor no meu caminho
nenhuma pedra a mais no meu passado
só o dia perdeu muito do brilho
e a noite rompeu o breu contrato
não maldigo um tal dia tão maldito
por saber que a vida é fúria e calma
e descrer que o que digo sem juízo
tem mais fogo e força que essa alma
miserável faminta e arrebentada
no centro do vazio da antiga estrada

 

 

 

 

 

 

*

 

sou extremamente fiel
ao estraçalhamento
da minha própria carne

colaboro com os lobos:
eu mesmo devoro
algumas partes do meu corpo
enquanto as chamas ardem

se os abutres
recusam meu fígado
ofereço a língua viva
e vermelha como a tarde

às hienas e ratazanas
resta pouco: um osso
ou outro pra matar a fome
que as devora lá por dentro

mas em tudo
em cada naco
em cada mínimo
pedaço de mim
prometo

vai o melhor
do meu veneno

 

 

 

 

 

 

*

 

não se detém
um temporal

não se crava
o não
na garganta
da palavra

não se pede
ao sol
que desça
(à exceção
de maiakóvski
em seu verão
na datcha)

não se prega
a mãe
na cruz
(o filho sim
ele se entrega)

não se toca
a perfeição
impunemente
(vide bula
michelangelo)

não se corta
o cabelo
da medusa
nem se usa
a fantasia
pelo avesso

não se tropeça
no horizonte:
o horizonte
é o começo

 

 

 

 

 

 

*

 

era prostituta
e lia proust

sabia de cor
as cores
de monet

nem tudo é
homem e money
baby (dizia)

e abria as pernas
como se fosse
(e era)
poesia

 

 

 

 

 

 

*

 

o porco fuça fareja
esfrega o focinho
contra raiz e terra

o corpo todo do porco
emprega a si na tarefa
de encontrar a trufa perfeita

aquela que ele mesmo
jamais comerá
porque a entrega

o porco é um poeta

 

 

 

 

 

 

*

 

ainda há velas
abertas acesas
em minhas veias

de algum porto
um corpo que hoje
habita o meu
parte

(há medo
em sua carne)

aqui sentado
sei que traio e trago
um outro lado
do mapa

o elo perdido
do lado de lá

aqui pensando
sinto: algo em mim
quer navegar

 

 

 

 

 

 

*

 

por que tanto vento
dentro da casa? por que
um deserto assim tão dentro
da casca como se tudo fosse
e se partisse indo sumindo enquanto
deixasse de ser? então pra que
tanta força tanta pedra contra a corrente
se o rio nasceu para secar e ser rio
e sereia até o silêncio começar?
onde o corpo na sombra
a palavra na lembrança a prata
de uma tarde que nunca termina?

porque antes do começo
já havia o nada
e dentro do dia das horas dos seres das coisas
a secreta semente do nada
tecendo seu humilde trabalho

 

 

 

 

 

 

*

 

desculpe
farpas
e espinhos

é que nasci
sem pele

e vou me
cobrindo
com o que
encontro

pelo caminho

 

 

 

 

 

 

*

 

a noite explode
na boca
um tiro surdo
ninguém ouviu

ninguém estava
no corredor
ou na janela
ou na varanda

no quintal ninguém
contava nuvens
estendia roupas
criava um caminho

na estrada ninguém
caminhava ninguém
esperava sentado
calado na pedra

na cidade ninguém
escrevia a carta ninguém
preparava a mala
ninguém sequer existia

a noite explodiu
no meio do céu da boca
um tiro surdo e negro
e ninguém morreu

 

 

 

 

 

 

*

 

nada disso
faz sentido
e eu aqui

sentindo
 

 

 

 

 

[imagens © basquiat]    

 
 
 
 
Carlos Moreira. É pai de Sidarta, Vida, e da "poética do silêncio". Amor de Nayara. Parceiro de Gláucio Giordanni, Alberto Lins Caldas e Odisséia. Aikidoísta. Sushilólatra. Publicou sua Tetralogia do Nada pelo Clube dos Autores; o Evangelho Segundo Ninguém pela editora da Universidade Federal de Rondônia e Duas Palavras, em parceira com Nilza Menezes. Publicou Imagem de Cores e Sonhos, comemorando uma década de Festcineamazônia e recentemente teve poemas seus incluídos na revista Ciência e Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Autor de roteiros poéticos para filmes com Jurandir Costa e Fernanda Kopanakis, entre eles os premiados Nada é Longe e Quilombagem. Em 2012, lança o livro Cardume. Nasceu em 1974 e é abduzido com frequência.