©kurt schwitters
 
 
 
 
 
 
 
 

 

Adriana estudava Comunicação e era assídua frequentadora da Biblioteca Central da UnB. Adorava literatura e lia todas as obras que encontrava, especialmente de escritores brasileiros. Sempre pegava livros sob empréstimo, o que a levava quase diariamente ao prédio da Biblioteca. Com o passar do tempo, percebeu que outra pessoa sempre tirava os mesmos livros que ela e que era, invariavelmente, a mesma. A partir daí, começou a investigar quem seria. Sabia apenas que era do sexo masculino.

Começou a fantasiar sobre a sua alma gêmea, observando demoradamente os rostos dos colegas, na esperança de encontrar alguma pista. Pensou em deixar algum bilhete dentro dos livros, mas não teve coragem, pois vivia assombrada com as histórias sobre romances com desconhecidos, pela internet. Depois de alguns meses, descobriu que a pessoa de gostos tão parecidos com os seus fazia o mesmo curso, mas era um senhor muito mais velho, quase da idade de seu avô, pai de quatro filhos, dois deles estudantes da UnB. Chorou noites a fio, sentindo-se ridícula. Sobretudo, decepcionada com o desfecho da história que tinha imaginado. Felizmente, o colega não ficou sabendo de nada, o que, de alguma maneira, serviu-lhe de consolo.

Esta história não é verdadeira. Talvez até seja, o que não importa, pois é verossímil. Adriana é uma personagem de um conto escrito por uma ex-aluna minha. Gostei muito desse texto e desconfiei que o caso fosse real. Afinal, professores de oficinas de textos são dotados de certa esperteza, habituados ao treinamento da imaginação, especialmente se forem ficcionistas. Casualmente, descobri depois, com poucas probabilidades de erro, a identidade do leitor misterioso, também ele ex-aluno, descoberta que levarei para o túmulo.

Bibliotecas sempre evocam lembranças e excitam a imaginação. Ou seriam os livros? Por vezes, tornam-se, elas mesmas, personagens. Cenário de tantas histórias, o imponente prédio da Biblioteca da UnB, com seu concreto aparente e seu espelho d'água, tão perto do Lago Paranoá, sempre será um lugar sagrado para mim, cenário de lembranças tão nítidas, como costumam ser as recordações da juventude, que, em intensidade, só perdem para as da infância.

Nos anos setenta, ela ficava aberta a noite inteira, e muitos estudantes passavam lá várias noites, debruçados sobre os livros, namorando nos intervalos, embalados por copos de cafés horríveis, fortes como caldo de bruxa, de garrafa térmica. As estudantes tinham, quase que invariavelmente, cara de fantasma, mas isso não era um mal, pois a palidez estava na moda, inspirada nas magérrimas modelos internacionais Veruschka e Twiggy.

Como trabalhava e tinha pouco tempo para estudar, várias vezes saí de lá diretamente para as aulas, sem dormir. Aliás, já o fazia na época do vestibular, até antes, nos primeiros anos do ensino médio. Nesse tempo, uma amiga minha, que estava escrevendo uma monografia sobre a Guerra dos Farrapos, usou o tema como pretexto para se aproximar de um estudante de arquitetura gaúcho, de bigode e lenço vermelho no pescoço, que ela achava lindo. Embora ele a esnobasse um pouco, pois já era universitário e ela menor de idade, chegaram até a namorar. Não posso afirmar se o namoro durou, mesmo porque isso não tinha importância, pois a moda era repetir os versos de Vinicius de Moraes: "que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure".

Havia um bibliotecário extremamente paciente, chamado Aníbal, que foi chefe da Biblioteca durante anos. O acervo era menor e, encontrar os livros, muito mais simples. Mesmo assim, ele oferecia seus préstimos o tempo todo, a quem necessitasse. Quanto a Kira, bibliotecária de origem russa, se não me engano, era dona de belíssimas pernas, admiradas por todos os estudantes. Inquietos, torciam para que ela tivesse de pegar algum livro numa prateleira bem alta, e ficavam à espreita, observando-a, assim que ela subia no tamborete. Diligente, ela cumpria seu dever sem desconfiar de nada, inconsciente do seu poder. Aliás, Kira foi citada por ninguém menos que Clarice Lispector, na crônica "Brasília".

Clara e ensolarada, a Biblioteca da UnB tem uma enorme quantidade de histórias para contar. Fico pensando quantos volumes poderiam ser escritos com esse conjunto. Se os ex-alunos se dispusessem a pôr no papel as narrativas, certamente teríamos uma coleção extensa. Mas o importante mesmo é que, além de cumprir sua finalidade básica, ela continue a inspirar jovens e velhos escritores.

 

 

 

 

abril, 2013