Passei
hoje em frente ao prédio, localizado na Av. L2 Norte do Plano Piloto, na
altura da 606, por aí. Aparentemente, não está em uso. O terreno em
volta está cercado ou coisa parecida, para mais uma dessas construções
imensas, tão comuns em Brasília, de escolas ou instituições públicas.
Quadrado, baixo, agora de um branco encardido, cheio de janelinhas
retangulares, o que não é novidade na cidade. Lembra um bolo todo
recortado, talvez.
Nos
últimos anos, não sei se estaria enganada, utilizaram-no como posto de
saúde. Pelo menos foi o que me disseram, quando perguntei. Estive lá uma
vez, mas faz tanto tempo que não me lembro mais por que
razão.
Como
moro na Asa Norte, passo por ele sempre que venho da Asa Sul, sem nem
sequer me dar conta. Mas hoje foi diferente, por algum motivo misterioso
que não consegui identificar.
Dificilmente
o leitor mais jovem saberá de que edifício estou falando. Mas, quem já
morava em Brasília nos anos sessenta, quando a metrópole era uma cidade
pequena, quase uma roça grande, extraordinariamente interessante
(continua interessante, mas de um jeito diferente), certamente vai se
lembrar do colégio mais inovador que já surgiu por essas bandas.
Refiro-me, é claro, ao CIEM - Centro Integrado do Ensino Médio — onde
estudei, na companhia de muitos colegas que depois fizeram história na
cidade e até no país. Alguns, com trajetórias ricas e criativas, como os
escritores Ana Miranda, Milton Hatoum e dezenas de outros ex-alunos, que
têm dado importantes contribuições em suas áreas de atuação.
Lamentavelmente, houve exceções, e algumas bem vistosas. Sobre estas,
não quero comentar.
Experiência
da Universidade de Brasília, o CIEM foi um divisor de águas na vida de
muitas pessoas. Na minha, certamente. Vim do interior de Minas, de uma
cidade muito pequena, sem biblioteca pública e sem livrarias, e
deparei-me com um laboratório efervescente, onde ficávamos o dia
inteiro. Além das aulas, ministradas por professores que utilizavam
métodos de ensino modernos, considerados revolucionários na época,
participávamos de peças teatrais, ouvíamos música renascentista, e
tínhamos matérias optativas, outra grande inovação no ensino médio dos
anos sessenta.
No
início, como o leitor deve imaginar, assustei-me com tanta liberdade e
tantas informações. Música renascentista, para quem só tinha ouvido os
cantores da jovem guarda e frequentado bailes ao som da voz de Jerry
Adriani, era algo espantoso mesmo. Mas depois fui me habituando. E
gostando, é bom que se diga. Por literatura, sou apaixonada desde
menina, mas não conhecia a obra de Fernando Pessoa, que me foi
apresentada em sala de aula por um professor de português, no primeiro
ano. Só esse fato já justificaria a existência daquele colégio, pois
nunca mais consegui desgrudar-me dos versos do
poeta.
Tinha
muita dificuldade em física, embora, surpreendentemente, gostasse de
química, que até pensei em cursar, na UnB. Para alunos como eu, foi
criada uma disciplina especial, chamada "física para a vida", ministrada
pelo Professor Felippe Serpa, notável e excêntrico educador, torcedor
fervoroso do Bahia, que nos anos noventa viria a ser Reitor da
Universidade Federal da Bahia. Até hoje acho graça, quando me lembro da
turma espichando uma enorme mola pelos corredores, para estudar o
movimento retilíneo uniforme. Era delicioso, muito engraçado mesmo, ver
o Felippe, sempre meio gordinho, suado, correndo para puxar a ponta da
mola, que mais parecia uma gigantesca cobra caninana enrolada.
Infelizmente, como tantos professores daquela época, ele não está mais
entre nós, mas deixou um originalíssimo legado
pedagógico.
Não
dá para esquecer as famosas reuniões que a direção promovia com todos os
alunos, para discutir a "filosofia do CIEM", segundo a qual o principal
objetivo do colégio era formar o cidadão comum. Nas reuniões menores,
mais fechadas, o debate era sobre os rumos da política no país. Nessas
últimas, eu literalmente boiava, pois não entendia bem o quê se dizia e
tinha vergonha de perguntar. Sentia-me uma matuta, ao mesmo tempo fora e
dentro daquele ambiente.
Era
um colégio público, que na época abrigava filhos de parlamentares,
profissionais liberais e altos funcionários, além de uma pequena ala de
alunos mais pobres, à qual eu pertencia. Um retrato perfeito da pequena
população de Brasília na década de sessenta, onde a diferença entre as
classes sociais passava meio despercebida.
Havia
os tipos folclóricos, é claro, existentes em todos os lugares. Era o
caso de um colega que usava um chapéu pontiagudo, de feltro verde, que
algumas meninas achavam lindo e outras horrível. Difícil o meio-termo,
para jovens de quinze anos. E outros tipos exóticos, muitos outros,
todos em busca, vejo hoje, da construção de suas identidades e das
imagens que posteriormente mostrariam ao mundo.
Esse
prédio, agora tão acanhado, quase invisível, se comparado aos
monumentais edifícios da capital, era lindo à noite. As luzes ficavam
acesas e faziam muita vista no céu escuro da cidade ainda por fazer.
Sua
beleza não ocultava, contudo, a feiura e a dureza daqueles anos.
Adolescentes, vivíamos um paradoxo, entre o oásis que o CIEM
representava e o lado de fora, terrível. Tempos de poemas de Cecília
Meireles e de música renascentista, volta e meia interrompida pela
ameaça de tiros e de cassetetes.
Eu
sofria, em meio a constantes sobressaltos. No aconchego das paredes
brancas, lia Graciliano Ramos e José Lins do Rego, e me apaixonava e me
desapaixonava platonicamente, se é que isso é possível, duas ou três
vezes por mês. Como convencer uma menina de quinze anos de que se
passava algo perigoso, mas muito perigoso mesmo, na política de seu
país, perigoso a ponto de pôr sua vida em risco? Minha irmã e meu
cunhado, com quem eu morava, até que tentavam, mas, como sentiam muito
medo, embora na época eu não soubesse disso, não falavam claramente
sobre o assunto, de certa maneira um tabu. Descuidada, vivendo uma fase
pouco afeita a esse tipo de metáforas, eu não me importava com as
observações veladas e nem sequer as compreendia.
Até
que, em agosto de 1968 — será que agosto é mesmo o mês do desgosto? — eu
estava conversando com alguns colegas, na porta do colégio, entre uma
aula e outra, quando passaram por nós, devagar, três ou quatro carros
oficiais pretos, com homens gritando, rostos e cassetetes na janela,
distribuindo golpes ao léu. Fardados, pareciam muito zangados, ou
melhor, furiosos, e diziam palavrões para nós. Conseguiram acertar a
perna de uma colega, que sangrava, debaixo da calça Lee. E desceram para
o auditório Dois Candangos, da UnB, apressadamente, fazendo
estardalhaço.
Vocês
devem me achar uma tola, mas mesmo assim a ficha não caiu, como deveria.
Fiquei surpresa, nem diria assustada. Prevaleceu a sensação de que tudo
não passava de um filme, ora, bater em adolescentes, por quê? Eu não
entendia o que ocorria. Examinando os fatos em retrospectiva, parece
que, além de não entender, não acreditava no que os meus
próprios olhos viam. Ingênua, aferrava-me à decantada sabedoria do
ditado popular "quem não deve, não teme", embora eu não soubesse direito
o que significava, na época, "dever" e "temer".
Naquele
dia, minha única preocupação era ver Luís, um colega de turma, e
entregar-lhe um poema que tinha feito para ele. Nem sei se ele sabia que
eu era aspirante a namorada, mas isso não me interessava tanto. Voltada
para o próprio umbigo, só queria que ele soubesse dos meus sentimentos.
Para isso, comecei a perguntar por ele e disseram-me que estava em uma
assembleia, no auditório Dois Candangos, bem perto do CIEM. Como não
sabia direito que evento era aquele, fui correndo para o local, sem nem
sequer me lembrar que os carros pretos se dirigiram para o mesmo
endereço.
Completamente
lotado, foi difícil locomover-me no auditório. Procurei Luís por toda
parte, empurrei pessoas, andei de gatinhas. Nada de Luís, evaporara-se
completamente. Não vi o pessoal do CIEM, só estudantes mais velhos,
desconhecidos. O clima era pesado, os gritos de palavras de ordem
elevavam-se cada vez mais. Lembro-me quando um rapaz louro subiu ao
palco e, interrompendo a discussão, declamou um poema de Brecht e foi
vaiado.
Logo
depois, começou a correria. Todos queriam sair do auditório ao mesmo
tempo, as portas eram estreitas, não havia espaço suficiente. Ouvi
quando alguém gritou "os homens chegaram". Corri também, e corri mais
ainda quando, na porta, vi um estudante sendo arrastado por dois homens
fardados.
A
correria durou até chegar em casa. Percorri as quatro quadras quase
voando, sem fôlego, o coração disparado. Quando cheguei, minha irmã e
meu cunhado estavam muito bravos, verdadeiras feras. Disseram-me que
tinham ido ao colégio procurar-me, quando souberam da invasão da
universidade. Como não me encontraram, dirigiram-se ao auditório mas nem
saíram do carro, quando viram os policiais
chegando.
A
recepção me fez ficar mais nervosa ainda. Afinal, o quê de tão grave
estava acontecendo? Eu não tinha ido atrás de assembleia nenhuma, não
queria saber de nada a não ser ver Luís e entregar-lhe o meu poema
escrito à mão. Por que tanta confusão diante de algo tão
simples?
Durante
toda a tarde, minha irmã mal olhou para mim. Disse que não queria mais
que eu morasse com eles, que iriam levar-me de volta para o interior,
devolver-me a meus pais. Fiquei bastante magoada, sentindo-me
injustiçada. Alienação, palavra muito usada na época, adequava-se
perfeitamente à minha situação. Os próprios colegas deviam achar-me
completamente por fora, sem nenhuma inserção naquele contexto.
A
ameaça não era coisa séria, felizmente. No dia seguinte, ninguém tocou
mais no assunto. Fiquei quietinha em casa, discreta como uma sombra,
quase sem conversar. Com o colégio fechado, não havia mesmo o que fazer.
Nunca
mais vi Luís, nem soube o que foi feito dele. Desapareceu no éter, para
sempre. Anos mais tarde encontrei o poema em meio a documentos antigos.
A letra insegura, da menina de quinze anos, estava meio desbotada. Se
era bonito? Não, não era.