Encontra-se nos anais dos fóruns e dos parlamentos (desde a Roma Antiga, ou antes) esta lição: qualquer autoridade, tribuno ou pessoa do povo é capaz de incriminar (acusar de crime, delito, conduta amoral, etc.) outro cidadão, mesmo o mais fiel cumpridor das leis ou o mais probo indivíduo. Haverá sempre um deslize ou pequeno erro cometido, um defeito moral a se averiguar. Não se trata do mil vezes repetido "errare humanum est" (de frase atribuída a Sêneca). Ninguém pode se dizer livre de ter violado a lei penal, pois quase todo ato humano pode ser tipificado como crime. Vejamos o estupro. Basta a mulher (esposa, amante, namorada) denunciar o companheiro pela prática, não consentida, de coito, com ela, ou mesmo de ato libidinoso diverso da conjunção carnal. E, se não se quiser falar em infração, fale-se em pecado. Se não, em simples desvio de conduta, ato imoral, omissão, etc. Quem não furtou um naco de farinha na feira? Quem não cometeu calúnia, difamação, injúria? Fulano é um pervertido; sicrana é uma devassa. E hoje, quando tudo é proibido, quem não praticou racismo? ("Esse negro não difere em nada de um macaco"). Quem consegue se livrar da homofobia? ("Esse sujeito merece uma surra"). E o que dizer da tão combatida pedofilia? Quem não murmurou, a morder a língua: "Meu Deus, por que me deste olhos e desejo?"

Detesto hipocrisia.

Assim também ocorre no mundo das letras. Ninguém pode bater no peito e dizer: Eu nunca errei, nunca feri a gramática, nunca sujei minha língua, nunca maltratei a poesia ou a prosa. Quem não repetiu vocábulos no mesmo parágrafo ou texto? Quem não praticou a cacofonia (tão grave quanto a sodomia na Bíblia)? Em Machado de Assis foram detectados erros, defeitos, cochilos. Guimarães Rosa é, por muitos, comparado ao pichador de muros. José de Alencar, Lima Barreto, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e tantos outros, se não eram desleixados, escrevinhavam com a clara intenção de ferir a norma culta da língua (principalmente a lusitana). Os gramáticos têm horror a inovações.

Este preâmbulo eu o rabisquei para chegar aos que me chamam de exigente, auto-suficiente, metido a mestre (professor). Imaginem se tivesse feito afirmações malévolas desse teor: "a maioria dos poetas, contistas e romancistas com quem me correspondo é de poetastros e medíocres contadores de história". Nunca fiz isso. Se, às vezes, me excedo no azedume dos comentários, não o faço por maldade. Não quero manchar o brio de ninguém. Só quero dar conselho: leiam mais, estudem mais, pratiquem mais a escrita, antes de saírem por aí a editar livros.

Repito o anunciado em crônicas e resenhas: nunca recebi tantos impressos quanto nesta era da Internet. É certo: não leio nem um décimo do que me mandam. Primeiro, porque não sou leitor de ofício, nem crítico literário, nem resenhista de jornal. Segundo, porque sou, antes de tudo, escritor. Não para ganhar dinheiro, fama, prestígio, seja lá o que for. Se quisesse ter tido fama, teria ido morar em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Paris. Teria feito amizade com os cardeais da literatura brasileira e estrangeira. Teria bajulado jornalistas de cultura dos grandes jornais. Teria ido atrás de apresentadores da televisão. Teria viajado muito pela Europa. Teria escrito segundo o gosto do leitor médio. Teria aprendido inglês. Teria buscado grandes editoras (com ajuda daqueles "amigos" das frases anteriores a esta). Adquirir fama (mesmo pequenina) não é tão difícil assim. Difícil mesmo é redigir bem, com clareza, sem malabarismos, sem invencionices.

Escrevo por prazer e necessidade. Depois de me livrar dos vícios de fumar e beber, esse prazer e essa necessidade se multiplicaram em intensidade. Sou homem de letras full-time: acordo e corro para o computador, passo a manhã a forjar frases, almoço a correr, volto a garatujar letrinhas, paro para jantar, regresso à cadeira que me sustenta para a labuta de retocar palavras, caio na cama com mil ideias, sonho com poemas, contos, crônicas, capítulos de romance. Passo a noite a "escrever" (enquanto durmo). Sou um tarado, um maníaco, um fanático, um monstro, um fundamentalista da escrita. E tenho consciência também da inutilidade de meu comportamento, da efemeridade dos meus bosquejos. Mesmo assim, não paro de garatujar versos e prosas. Porque escrever tem a mesma importância de dormir, sonhar, alimentar-se, andar, respirar. E todo ser humano, se não for religioso, sabe: seus atos são apenas necessários para a vida, mas deles nada restará, após a morte. Apesar disso, vive.

Pois alguns poetas e prosadores aos quais me referi no início desta crônica (quase sempre jovens na idade ou principiantes nas letras) me veem na obrigação de ler as suas engenhosas criações. Uns mandam dez volumes e ainda dão um roteiro de leitura: "Comece pela obra tal, para poder entender a composição qual". Como se eu tivesse tempo (ou interesse) de ler toda a sua papelada. Ora, bolas! Se fosse apenas ler, seria ótimo. Exigem análise de suas joias, artigos ou resenhas longas, e, ainda mais, com louvores e comparações absurdas ("fulano se aproxima de Fernando Pessoa").

Se falam em ler meus contos, poemas e romances? Nem pensam nisso. Eu seria para eles como os escravos o foram para os escravocratas: apenas instrumentos para a sua glória, a sua riqueza, a sua empáfia. Desconhecem (e nem se interessam em conhecer) minha fortuna crítica: alguns prêmios literários e publicações analisadas por leitores especiais (escritores da importância de Aíla Sampaio, Artur Eduardo Benevides, Astrid Cabral, Batista de Lima, Caio Porfírio Carneiro, Carlos Augusto Viana, Celestino Sachet, Dimas Macedo, Eduardo Luz, Fernando Py, Foed Castro Chamma, Francisco Carvalho, F. S. Nascimento, João Carlos Taveira, Jorge Pieiro, Nelly Novaes Coelho, Ronaldo Cagiano, Salomão Sousa, Sânzio de Azevedo, Tanussi Cardoso e muitos outros, cujos nomes deixo de mencionar, para não enfadar o leitor).

Haja paciência (em mim)! Haja bom senso (neles)!

 

 

 

 

Fortaleza, 4 a 6 de fevereiro de 2013.

 

 
abril, 2013