[ ©alfredo villa ]

 

 

 

 

 

 

Dirceu Villa –  Você trabalhou em laboratório fotográfico e deu aulas de fotografia no Museu Lasar Segall por um bom tempo. Como foi a experiência? Ensinar ajudou a desenvolver sua fotografia?

 

Valéria Garcia – Essas experiências foram fundamentais em minha formação e desenvolvimento, tanto pessoal quanto artístico: quando trabalhava num laboratório fotográfico fazia um tipo de serviço denominado internegativo, que consistia em reproduzir em película negativa P&B slides provenientes da divulgação de filmes cinematográficos, em mídia impressa. Depois de cerca de um mês fazendo isso ― em que era sempre necessário observar a cor original, confrontando o resultado de cinzas obtido, mentalmente ― passei a associar de forma espontânea e natural as cores ao meu redor a como deveriam ficar na escala de cinzas. Nem preciso dizer o quanto isso me ajudou a aprimorar minhas ampliações P&B, rumo a resultados esteticamente adequados aos meus propósitos.

 

Aprendi muito dando aulas de fotografia no Museu Lasar Segall. O fato de conviver e de encontrar pessoas com formação em diferentes áreas e de diferentes faixas etárias me abriu um leque amplo de possibilidades profissionais e artísticas. O Ateliê de Fotografia do Museu trouxe para mim muitas alegrias. Foi no Museu que também desenvolvi meu gosto pela conservação de fotografia (área na qual trabalho até hoje): aprendi a identificar processos antigos de impressão fotográfica e isso contribuiu muito para aprimorar meu senso estético de forma, em geral. Me possibilitou também reunir minha formação em História e Fotografia.



DV – Poderia falar um pouco dos fotógrafos e fotógrafas que mais aprecia, tendo ou não influenciado sua fotografia?

 

VG – O primeiro fotógrafo por cuja obra acabei criando um profundo interesse foi o Man Ray. Lembro-me de ter ido ver uma exposição de fotos e filmes do Man Ray no Museu da Imagem e do Som (MIS) em São Paulo, por volta de 1995 (quando comecei a fazer fotografia), e fiquei fascinada pelo caráter experimental de seu trabalho, pela liberdade de criação, pelas formas humanas, sobretudo, e pelo registro inusitado de nus femininos. Foi como se uma cortina se abrisse à minha frente e uma luz intensa me inundasse. Não vou citar aqui todos os fotógrafos que me fizeram pensar e viver melhor a experiência da arte; de Henri Cartier-Bresson a Cindy Sherman, são realmente muitos e fabulosos. Mas gostaria de citar ao menos o Edward Weston, cujo trabalho me chama a atenção para a sensualidade das formas (onde quer que elas estejam). E André Kertész, tudo dele me parece perfeito: dos grafismos aos encontros repentinos em olhares curiosos que sua lente pode registrar — para mim, aquela série "Distorções" (década de 1930) é simplesmente maravilhosa.

 

 

DV –  Observando sua obra me ocorrem frequentemente relações compositivas com obras de fotógrafos do período em que a fotografia se firmou como uma arte: Kertész, Cartier-Bresson, Hoppé. O espaço compositivo é bem dividido e delimitado, equilibrado, os tons são dosados, a granulação, o foco. O quotidiano e os lugares ganham uma presença icônica que resgata uma dignidade antiga. Fez também rayografia. Faz sentido para você esse entendimento de sua fotografia?

     
VG – Só posso dizer que fico comovida com essas aproximações. Realmente, esses fotógrafos me fizeram perceber que não há limites para arte. Os retratos de Emil Otto Hoppé me fazem sentir parte daquela época e estado de espírito, da história captada no olhar de seus retratados. Acho que ele, como poucos, foi capaz de eternizar toda a intensidade e efervescência que transbordou das primeiras décadas do século XX. De fato, todos esses fotógrafos provavelmente me influenciam, mas de forma intuitiva; mais ou menos como algo que faz parte de sua cultura ou conhecimento e vem à tona sem muito critério, mas que permanece na raiz de seus sentidos e do gosto estético. 

 

 

DV – Sua obra já tem creio quase vinte anos. Como é olhar para essa obra em perspectiva? Você nota um percurso?

 

VG – Revendo fotos antigas, de trabalhos já concluídos, e material deixado pelo caminho, acho que ainda há muito o que fazer. Como disse antes, sou pura intuição. Por isso, as possibilidades de novos trabalhos, muitas vezes a partir de antigos, estão sempre presentes. Atualmente, estou tentando arrumar a casa: rever minhas motivações e resultados, pois a reflexão sempre me vem depois do clique. Na verdade, foi no laboratório que criei boa parte de minha obra. Era ali que as coisas aconteciam com uma intensidade milagrosa. Lembro da primeira imagem a se formar na bandeja do revelador (um retrato de minha sobrinha Thaís; criança alegre, que saiu correndo pelo quintal de casa, vestindo apenas meu chapéu coco na cabeça!) Sorri para aquilo e disse: "Eu nasci agora!" como fotógrafa. Sempre é assim; a cada novo trabalho, sinto-me envolvida pelas circunstâncias.

 

 

DV – Tanto sua fotografia como a de Julia Filardi abordam, em parte, o erotismo, mas em nenhum momento resvalam em clichês visuais ou em estilemas já prontos, mas justamente os desafiam, com resultados notáveis. Como você concebe a parte erótica da sua obra?

 

VG – Aprecio muito a arte erótica. Talvez não seja fã incondicional de todas as vertentes do erotismo (o pornográfico me provoca, mas confesso não saber lidar; digo, produzir esteticamente com isso). Mas, de forma geral, considero um meio no qual me expresso com naturalidade. Gosto muito de tudo aquilo que se aproxima da sensualidade e do inusitado. Nem tanto numa oposição belo ou grotesco; mas perfeito em sua existência, seja qual for. Para mim, o gênero serviu como um segundo nascimento, talvez o mais verdadeiro que pude experimentar. Os corpos se expressam e o que busco é registrar essa expressão.

 

 

DV – Você tem um trabalho com processos históricos da fotografia. Poderia dar exemplos de como funcionam, das diferenças entre eles & de quais as vantagens estéticas que se podem obter por se optar por um ou outro? 

 

VG – Vou salientar os aspectos principais das técnicas antigas de impressão fotográfica (sobretudo aqueles com que tive contato e efetivamente realizei), sem discorrer exaustivamente sobre cada uma delas, naturalmente. De forma geral, essas técnicas utilizam papéis variados e de boa qualidade, como os papéis para gravura, papel japonês e papéis artesanais (tecidos e outros materiais porosos também podem ser usados e testados). Dependendo da técnica, são preparadas soluções fotossensíveis à base de sais de prata (Van Dyke Brown, albúmen, papel salgado); pigmentos (goma bicromatada); ferricianeto de potássio (cianótipo); ou, até mesmo, segue-se o expediente da gravura em metal (fotogravura, solar plate). A lista é bem grande.

 

Em todos esses processos, há a necessidade de se preparar uma matriz que pode ser uma imagem em negativo e do tamanho final de impressão; objetos variados (como na confecção de fotogramas); ou placas de metal preparadas também com substâncias sensíveis à luz (como nas fotogravuras). A maioria desses processos é feita com luz negra (montada numa caixa com vidro e tecido escuro para evitar vazamento de luz), onde a matriz fica em contato direto com o papel fotossensível, sendo assim impressa a imagem. O cianótipo pode e deve ser feito sob a luz do sol.

 

Cada um deles tem resultados bem específicos: a goma bicromatada possibilita a impressão de diferentes cores, uma alternativa às imagens monocromáticas. O Van Dyke Brown, o papel salgado e o albúmen (a partir da clara do ovo) resultam em cópias de um nostálgico tom café (mais vibrante e brilhante neste último, e o que mais gosto de fazer; apesar da dificuldade em se produzir cópias sem falhas ou manchas). O cianótipo produz um azul vivo muito bonito e peculiar. A botânica e fotógrafa inglesa do século XIX, Anna Atkins, usou esse método para fazer lindas impressões diretas de folhas e flores. Na solar plate e na fotogravura tradicional, o nome já diz tudo: foto + gravura. A junção desses dois meios de impressão, diversos, porém com aproximações essenciais, torna tudo uma diversão à parte.

 

Para mim, além de uma certa melancolia das cores e do brilho (e isso no caso do albúmen), outra  motivação estética para realizar trabalhos nesses processos é aproveitar a textura dos suportes utilizados (papéis, tecidos, etc.). Isso tudo é trabalho de laboratório.

 

 

DV – O que tem feito no momento, & que rumo sua fotografia está tomando? 

 

VG – Como disse, estou colocando a casa no lugar, repensando e revendo o passado. Tenho agora mais domínio sobre meu processo artístico e técnico, com melhor discernimento sobre o que é bom e o que efetivamente pode funcionar. Novos projetos? Sempre. Estou pensando em personagens. Quero pôr para fora todos eles.

 

 

 

 

 

 

Valéria Garcia é fotógrafa e historiadora, nascida em São Paulo em 1975. Estudou História na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP, onde se mestrou em História Social em 2011. Publicou em 2002 o ensaio "A Música, o DEOPS e o Ideal Revolucionário (1924-1950)" no livro Cultura Amordaçada: Intelectuais e Músicos sob a Vigilância do Deops, organizado por Maria Luiza Tucci Carneiro. No Museu Lasar Segall atuou como orientadora de oficinas de fotografia e pesquisadora/conservadora do acervo do museu. Expôs sua obra fotográfica na Universidade de São Paulo, no Museu Lasar Segall, na Casa da Fotografia Fuji, entre outros. Tem ensaio fotográfico publicado na revista de arte Gargântua, de 1998, em parceria com a também fotógrafa Rita Kawamata. Atualmente trabalha como Técnica em Conservação de Fotografia do Setor de Editoria de Fotografia da FAAP – SP. Mais: clique aqui