[ julia filardi | irromper | rio de janeiro | 2013 ]

 

 

 

 

 

 

Um engenho brilhante, mas que despista

 

Pablo Picasso disse certa vez que a fotografia provava tudo o que a pintura não era, ao responder à pergunta tola ― mas na época muito insistente ― de se havia futuro para a pintura após a fotografia. Era uma questão para as vanguardas, repetida por todo lado, do modo como as coisas mal compreendidas, mas aparentemente importantes, costumam ser.

Conquanto eu seja um dos inúmeros admiradores de Picasso, o pressuposto de sua frase engenhosa está errado, porque o pressuposto é o de que a fotografia seja uma cópia da natureza1, quando na verdade partilha aspectos fundamentais com qualquer arte visual, isto é: exige olhos férteis, se faz do recorte de aspectos interpretativos, do equilíbrio formal & geométrico dos elementos de cena, & da concisão da apresentação, que fornece em um clique mais do que os fatos frios nos dão; ou, como Robert Doisneau disse certa vez: "não há nada mais subjetivo do que as lentes, não mostramos o mundo como ele é".

É uma arte, como todas, da percepção de sentido na forma. E assim, também, aqueles que decretaram o fim da pintura como cópia da natureza nunca entenderam nada de pintura, porque o propósito NUNCA foi a cópia da natureza (como se percebe no que Picasso astutamente diz), mas sim a percepção de correlações de significado nas formas do mundo, no arranjo de formas dentro de um espaço específico, delimitado pelo artista, traduzindo sentido. 

A idéia de cópia da natureza na pintura vem de coisas que se tornaram proverbiais, quase, como, na História Natural do velho Plínio, a anedota de Zêuxis (pintor sobretudo mítico da antigüidade, como também aquele notório Apeles) pintando uvas tão reais que pássaros vinham tentar abocanhá-las: anedota antiga, não descrevia o sentido profundo de uma hipótese da pintura, mas assinalava de modo hiperbólico a habilidade incomum exigida de um artista. Lendas ou aplicações de retórica tendencialmente foram adquirindo uma pátina de monumento histórico, como correspondendo a alguma verdade, factual ou essencial, como um conceito. Coisas que ganharam aquela definição de uma fala de filme de John Ford, a de, entre a lenda & o fato, print the legend.

Mas hoje já podemos confortavelmente ter o privilégio retrospectivo de anotar uma pilha de nomes de mestres naquilo que chamamos também confortavelmente arte da fotografia2, tais como Nadar, Julia Margaret Cameron, Gustave Le Gray, Lewis Carroll, E. J. Bellocq, Karl Blossfeldt, Edward S. Curtis, Imogen Cunningham, Wilhelm von Gloeden, Aleksandr Rodchenko, László Moholy-Nagy, Alvin Langdon Coburn, Man Ray, Edward Weston, Brassaï, Henri Cartier-Bresson, George Hoyningen-Huene, Weegee, Robert Doisneau, Tazio Secchiaroli, Pierre Fatumbi Verger, Richard Avedon, Diane Arbus, George Rodger, Alberto Korda, Masahisa Fukase, Robert Mapplethorpe, Joel-Peter Witkin, Nobuyoshi Araki, Sebastião Salgado, Helmut Newton, Ellen von Unwerth, Terry Richardson, & vários etc que não são mera retórica. Ou mesmo o monte de notáveis fotógrafos jornalísticos (lembrar das fotos de Saigon, ou da garota vietnamita queimada com napalm, entre outras delicadezas da vida humana), e mesmo fotógrafos mais comerciais, sobre o que bastaria lembrar que mesmo Doisneau foi empregado da propaganda da Renault; ou Richardson, da Sisley; ou Newton, de uma porção de casas de moda, etc. E ainda acrescentaria o papel desempenhado pelas fotomontagens de vanguarda, & nesse caso tem lugar de destaque, por exemplo, o poeta Jorge de Lima3.

A mera relação desse punhado de nomes faz ao mesmo tempo a lista dos diversos gêneros praticados na fotografia, isto é: o retrato, o fotojornalismo, as cenas quotidianas, o erotismo, o surrealismo, a fotografia de moda, a de propaganda, a fotografia abstrata, a fotomontagem, entre muitos outros. A fotografia não é, assim, apenas um registro documental da realidade, mas uma arte praticada por artistas, de variado modo de apresentação, correspondendo a variadas percepções, a diferentes estímulos visuais, intelectuais, materiais.

 

 

Artes com máquinas

 

No Brasil se dá pouca atenção à arte fotográfica, e é mesmo difícil ter fotógrafos que reúnam uma obra desvinculada de marcas comerciais, ou fotojornalismo. É de uma redundância imbecil dizê-lo, porque bastaria que eu assinalasse "no Brasil se dá pouca atenção à arte",  seja lá qual for4. Mas ensaístas estrangeiros famosos, como Susan Sontag & Roland Barthes, escreveram textos repetidos em toda parte (mesmo aqui neste país) sobre essa arte que surgiu no século XIX com o daguerreótipo & se tornou uma das artes maquinais do século XX ― como também o cinema & a música gravada ―, sobre o que Walter Benjamin escreveu de modo determinante no ensaio lidíssimo, "A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica".

Benjamin avalia o efeito da perda da "aura" da unicidade de uma obra de arte, que empobreceria a experiência, espalhando-a em cópias que jamais poderiam substituir o original. Não era da mesma espécie então histórica de esnobismo quadrúpede que degradava a gravura em séculos anteriores e ainda hoje, ao menos residualmente5; mas reconhece que mesmo a categoria já bastante evanescente de original se esfumaça, para não dizer desaparece, em artes como o cinema, a fotografia, a música gravada. É óbvio que se dá sempre um jeito de se venerar comercial ou academicamente uma matriz, assim como se veneram os cada vez mais raros manuscritos autorais (que se tornaram datiloscritos &, agora, como vocês vêem, digitoscritos).

Aquilo que críticos de arte marxistas, como Giulio Carlo Argan, repugnam ― isto é, o fim do feitio artesanal da arte, supondo no esquema industrial o fim da própria possibilidade de uma arte que funcione socialmente, porque destituída de seu significado simbólico & artesanal para adquirir a fatuidade da demanda repetitiva & maquinal ― é um aspecto constituinte daquelas artes do século XX, da máquina & da indústria.

Estavam certos os criticos marxistas que partiam do presuposto de que o modo de produção sobredetermina o resultado? ou Benjamin, também marxista (mas um politeísta raro dessa religião), que aponta a perda da aura como o fim da possibilidade da arte ser efetiva experiência, mas que acena com o fato da facilidade de se espalhar a arte everywhere? A persistência disso que perece?

 

 

Ética da percepção: lado A

 

Várias questões se acumulam: a modificação das nossas idéias de tempo de recepção, nosso convívio com determinada forma como representando aspectos da vida, nosso uso repetitivo de fontes de algum modo gravado, a experiência da intensidade de uma emoção, a ética mesma do cultivo de uma emoção cara sem o recurso de repeti-la até a exaustão de seus poderes fixadores da experiência, ou disparadores de sentido da mesma experiência.

Filósofos, de que orientação fossem, não eram (ao menos não sempre) uns chorões chantagistas ao nos cutucar com essas questões éticas de fundo; estavam pesando o efeito talvez pouco proporcional (e pouco discutido para uma ética da experiência, até hoje) das invenções de duvidosas facilidades maquinais.

Um excelente crítico de arte como Edgar Wind (de orientação muito diversa dos anteriores, & infelizmente pouco ou nada conhecido6 no Brasil) especulava sobre a concepção platônica do "terror sagrado" que a arte provocava, sobretudo porque platonicamente a arte possuía um sentido profundo do perigo da imaginação a distorcer o mundo, que essa imaginação duplicava o mundo alterando suas leis para o efeito concentrado da experiência. Assim, a arte precisava ser considerada com cuidado e moderação, como uma bebida forte, digamos: uso moderado para não desfigurar a mente & não desfigurar as operações da mente no mundo.

Não temos mais terror sagrado por nada, porque "sagrado" é um adjetivo consideravelmente fora de moda, quase sem sentido em nossos dias. E "terror" se tornou um clichê político para privar gente hipoteticamente indesejada de seus hipotéticos direitos civis. Nossos bancos ocupam prédios históricos, parecem templos, mostrando que a economia ― especialmente significando nossa capacidade de ter dinheiro para pagar por todo tipo de proteção (segurança policial, médicos, boas casas, provisões suficientes e luxo, possibilidades de deslocamento, etc) ―, assim como a ficção iluminista a que chamamos supersticiosamente ciência, ocupam um lugar próximo do antigo sentido de sagrado na nossa mente: é a mesma reverência arcana contida no medo ao trovão.

Não é de espantar que não tenhamos recuado diante do registro das máquinas, e de sua possibilidade de repetição à vontade do experimento. Ser apocalíptico sobre isso, no entanto, é para fatalistas, essa espécie de fanáticos: ao mesmo tempo em que são verdadeiros todos esses aspectos descrevendo nossa grossa ignorância filosófica da própria ética da percepção, devemos também ser capazes de compreender o outro lado da história.

 

 

Lado B

 

A acessibilidade à arte se tornou muito maior com sua reprodutibilidade, & permitiu entender seus mecanismos com um exame mais intensivo de seus exemplares; essa mesma acessibilidade permite que a arte espalhe mais seu princípio, por assim dizer, "civilizador", no sentido de algo que possa refinar nossos sentidos & inteligência; a comunicabilidade entre usos muito diversos do que se possa chamar "arte" permitiu também uma interpenetração desses tipos diversos, formando novos padrões, compondo diferenças em novos arranjos perceptivos; permitiu que boa parte da arte opere de fora ― e como crítica ― de centros de poder, uma vez que sua expulsão do jogo social faz dela algo alternativo7, inúmeras vezes sem compromisso algum com as representações enfatizadas pelos grupos participantes do projeto hegemônico; &, por fim, estando a arte morta para o mecanismo social, seu cadáver é conservado em museus, bibliotecas, salas de concerto & centros de cultura, onde é possível, para os atentos, perceber que não se trata de um cadáver, mas que sua vida é permanente, operando forças grandes & permanentes.

É nesse sentido que a fotografia é poderosa: revendo antigas fotografias do século XIX, ou mesmo o momento fundamental desse arte ― dos anos 10 a 60 do século passado ― o que se nota é que aquele alegado fundo repetitivo & sem aura não é mais verdadeiro, ou ao menos não tem poder sobre essa arte, desempenhada como arte. Tendo a maior parte daqueles modos de vida desaparecido, as fotos convertem-se também num repositório incrivelmente fecundo de memória visual8, não importa se você olha uma ampliação original com o carimbo museológico que a autentifica, ou se olha a foto em um livro, ou numa reprodução razoável na internet. Há uma verdade que transcende a idéia de artesanato, é mais abstrata, estava (e permanece) no encontro do olho com a coisa & retorna quando pomos nossos olhos sobre aquilo que um fotógrafo de talento ímpar guardou do que é a sucessão sem sentido & sem foco do mundo.

Indagamos quem são aquelas pessoas, que sonhos aqueles jovens realizaram, agora que são, surpreendentemente, nada mais do que mero pó. Toda foto, de grande artista da foto, é assustadora & comanda respeito pelo registro espantoso de um olhar frontal, de uma grande atrocidade presenciada, de um prazer passageiro que se tornou eterno, de uma quase reunião de fantasmas, subitamente vivíssimos. Não apenas fantasmas de pessoas, mas fantasmas de cidades, de construções, de ideais de organização, de mecanismos de percepção: são fantasmas presentes pela mágica técnica (aceitem o truque, de resto mui honesto, dessa licença poética) da reprodutibilidade, & questionam nossos motivos, exigem que estejamos mais atentos à própria experiência, & nos diriam, como diz o verso antigo de Gil Vicente, "tomame por teu espelho,/olhame e olhate bem".

O clichê do índio que evita o espelho ― e evita as câmeras ― por causa do folclórico "roubo da alma" é repetido por todos não importa se por ser ou não uma verdade antropológica, mas porque sentimos como uma verdade psicológica: gravamos nossas vozes, nossos corpos se movimentando, a vida de uma cidade, congelamos momentos presenciados, fixamos algo & recriamos essa presença a cada vez que nos detemos sobre cada um desses registros: se podíamos nos comover com o registro, em verso, de uma experiência em primeira-mão, como um poeta do século XIII registra em seu verso o efeito do calor fazendo tremer a paisagem, ou um poeta do século XV registra faíscas que os cascos de cavalos extraem das pedras do calçamento de uma rua, o que nos impede ― bons observadores ― de ter essa mesma comoção ao notar, numa foto como a de André Kertész, o efeito líquido no corpo de um nadador sob a água, com seus brilhos e distorções tornando-o parte tão fluida daquele ambiente? E notar que era um homem, na Hungria, em 1917, experimentando essa deliciosa sensação específica que a foto recria em um registro, com muita perícia perceptiva, de seus efeitos?

Teríamos de ser rigorosamente uns blocos de pedra para não sentir um estremecimento diante dessa & de outras imagens, que flagram nossa força & nossa fragilidade, nosso efeito sobre o mundo.

 

 

Uma imagem vale por mil palavras

 

Esse outro clichê também é importante. Repete o que os antigos (até o século XVII) pensavam platonicamente, isto é, a divindade teria um modo imediato (sem mediação) de propor aquilo que nós humanos fazemos de modo mediado, através da linguagem, da comunicação, do desdobramento sintático. Foi assim que o Renascimento leu os misteriosos hieróglifos egípcios que redescobria: pensava que aquela linguagem sagrada & arcana estava por isso mais próxima da mente divina, figurando por meio de imagens misteriosas uma linguagem sintética, elíptica, que significava de modo direto. Era a imagem que valia por mil palavras.

Também o modo como Leonardo da Vinci defendia seu metiê de pintor contra as artes da poesia & da música supunha na pintura uma simultaneidade de apreensão que as outras artes não possuíam: a música é propagada no tempo, e a poesia exige a leitura de uma linha por vez, enquanto que a apreensão de uma imagem é simultânea & imediata, por isso, melhor. Na opinião de maestro Lionardo, quero dizer, & é óbvio que não pretendo discutir seus argumentos retóricos aqui, mas assinalar o precedente.

Quando se diz que vivemos em uma época de imagens, aquela linguagem dos segredos deveria de certa forma se fazer ouvir novamente; deveríamos talvez retomar aqueles conceitos de imediatez, de concisão, de síntese. Diferente do mero documento, que registra sem ser capaz de escolher com a sabedoria sintética da representação, do foco daquele olho fértil, as artes visuais deveriam ― por pressuposto de sua própria raison d’être ― ser mecanismos muitíssimo efetivos de seleção visual, investindo no poder de sua concisão que, ao mostrar uma coisa em mil, engloba as mil em uma. Não é o que acontece, naturalmente, e a maior parte das imagens da fotografia, da tv e do cinema são nada mais do que efeitos de inércia da existência de uma máquina que registra. Nesse sentido, duplicam insensivelmente o mundo, são mero acúmulo & nesse ponto Benjamin está certo (mas o mesmo poderíamos dizer de qualquer arte, seja música, pintura, poesia, prosa ficcional, escultura, etc).

No entanto, como em toda parte, uma minoria atua de modo significativo dentro da linguagem, e a arte está justificada, desse modo. Quando uma imagem de fato vale mil palavras, ela está no mesmo campo de qualquer arte, ela existe por um propósito aristotelicamente poético, de um fazer aglutinante que lança luz sobre a própria experiência da vida, ao dar dela uma versão condensada, espessa, explosiva, que aponta em várias direções simultaneamente. Como?

 

 

De perto & de longe

 

Embora Sontag ou Barthes tenham escrito longos textos razoavelmente filosóficos sobre a arte fotográfica, como disse acima (& que sejam textos de fato apreciáveis), prefiro textos mais localizados, mais dirigidos ao fazer específico de determinado fotógrafo, ou de determinada maneira de se fazer fotografia: tudo o que se pode tirar de ilações filosóficas do ato fotográfico é muito interessante & nos faz talvez sentir que há mais importância na vida do que um mero deambular animal fadado à morte. Tudo ótimo.

Mas só me satisfaz a tentativa de compreensão da coisa como pode ser vista em particular detalhe em práticas particulares, porque não importa o quanto se possa generalizar uma evidente ligação entre todos os que praticam uma dada arte: só entendemos alguma coisa útil de fato quando nos detemos sobre um fazer específico.  

Pode ser algo definido como uma leitura intelectual, quase acadêmica, como leio na introdução ao livro de André Kertész, da coleção Photophile, em que a escritora Danièle Sallenave propõe de modo muito sagaz que há dois modos de ver a arte, e que são concomitantes mesmo dentro das vanguardas, ou da arte moderna: um, que é o modo inquieto, movimentado, que empurra a linguagem quase para além de si, e outro quieto, aturado, que atua desenvolvendo a linguagem com maestria dentro de seus limites, e que a esse último pertence a arte fotográfica de Kertész. Ela poderia ter escrito apenas esse parágrafo de abertura (mesmo a despeito de seu texto bastante informativo na seqüência), porque nele se condensa tudo o que precisamos saber para perceber em Kertész seu cuidado medido, sua atenção para as cenas do dia e da noite, sua geometria silenciosa, sua linguagem afetuosa.

Proporcionalmente oposto é o prefácio de Karl Lagerfeld para a edição Photo Poche da obra de Helmut Newton: Lagerfeld, estilista de moda, fala de modo também refinado, mas simples, de seu companheiro de editoriais de moda e de fotos de griffes; se por um lado evita falar em arte ― mesmo porque ambos sentem a repelência de parte do meio artístico9 por suas atividades explicitamente comerciais e antiintelectuais ―, por outro lado é palpável como o texto não consegue evitar o fato de que o que move a fotografia de Newton são princípios artísticos, quando Lagerfeld enfatiza sua aversão à cor, sua aversão às fotos de estúdio, & assinala a permanência de boa parte de sua obra fotográfica, mesmo (ou sobretudo por ser) dedicada ao mundo da moda, a matérias na Vogue, ou feitas para marcas como Yves Saint Laurent e Chanel. E para Newton estava claro o aspecto da provocação, mesmo que provocação em geral dentro dos limites aceitáveis para esta sociedade cínica, materialista, movida a dinheiro e hipócrita (no que Newton é diferente de Terry Richardson, que muitas vezes cruza, voluntaria & espertamente, a linha do bom-gostismo com imagens no limite da pornografia).

São dois textos diferentes, abordam autores diferentes, mas têm da mesma forma a aproximação ideal que traz às obras o foco daquilo que realizam.

 

 

Duas obras em construção

 

A primeira parte deste texto, acima, tem como objetivo situar os leitores na minha visão diletante sobre a fotografia, um ou outro aspecto histórico, um ou outro aspecto estilístico, um ou outro aspecto filosófico. Agora, para completar comme il faut a tarefa de propor a arte fotográfica, gostaria de apresentar duas fotógrafas brasileiras jovens, com obras representativas já em andamento: Julia Filardi & Valéria Garcia.

Ambas têm uma obra variada, que cobre vários gêneros de modo claramente autoral, & que são hábeis, seja em PB, seja em cores. São obras muito distintas & são duas das melhores obras fotográficas, no sentido autoral, em curso no Brasil. A única coisa realmente civilizada que se poderia fazer seria disponibilizar uma amostragem significativa dessas obras em dois volumes portáteis, dois graciosos & práticos livrinhos.

Não sendo uma casa editora, mas um poeta diletantemente (no sentido etimológico, daquele que fala do que lhe é dileto) interessado em fotografia, escrevi aquele longo entrecho introdutório, ziguezagueando em história, crítica & filosofia, para agora abordar em particular as duas obras. Vamos começar por Julia Filardi.

 

 

Julia Filardi (1978)

 

Sua fotografia quase não cabe no singular: feita de diversos tipos de registro, é uma obra múltipla, com conexões perceptíveis com as artes plásticas. A ousadia da total liberdade que tem na arte de ver é notável sobretudo quando se percebe que sempre se adequa ao necessário para apreender o que tem diante dos olhos: por vezes, permite que seus modelos desenvolvam ações e se põe em posição de recebê-las; por vezes, dirige; por vezes, flagra um momento específico em que as formas se ajustam diante dos olhos; por vezes, recorta um fragmento daquilo que vulgarmente se chama realidade, de modo que se torne irreconhecível, & para que ganhe, assim, uma nova vida visual; por vezes, fotografa o que quase não está lá, o movimento, ou a passagem fantasmal entre duas coisas.

Na pequena antologia de 17 fotos (que acompanha este artigo e a entrevista com Filardi) o objetivo foi precisamente dar, nesse número exíguo para uma obra tão diversificada, a extensão de suas habilidades fotográficas. Sua sensibilidade muito particular para cores se destaca, e em muitos casos as cores bastam para compor uma foto: um exemplo possível é "Interferência amarela" (fascinante jogo de cor, luz & geometria), mas há outras em sua obra nas quais esse aspecto é ainda mais puro, onde o bidimensional se enfatiza pelo arranjo de cores em um pedaço de parede, ou no encontro de pintura, pichações & grafismos urbanos. A ausência de um programa prévio & a presença de uma curiosidade onívora permitem que a experiência se diversifique em sua habilidade múltipla.

E assim vemos uma foto que é feita exclusivamente do jogo ótico do primeiro plano em foco & do fundo inteiramente desfocado, em "irromper": nesse primeiro plano se destaca um tronco rugoso, cuja textura é captada em sua riqueza fascinante também pela exploração experta do contraste; vemos também a foto em que uma estrutura amarela ― composta de várias diagonais cruzadas, formando triângulos ― abriga um pequenino pássaro azulado, opondo estrutura & organismo, amarelo & azul, pequeno & grande, para um efeito estético mesmerizante.

Se essas fotos incorporam diretamente o aspecto contingente & incidental da vida, para seu interesse como registro de um vislumbre talentoso da fugacidade, em outros casos Filardi desenvolve séries temáticas que repetem modelos & lugares em diferentes combinações: embora a natureza antológica da recolha não me permita estender o conhecimento desse aspecto, há três fotos (entre as selecionadas para esta amostra) realizadas de modo seriado, com os mesmos modelos: a série da "persistência da pele". Também nesse esquema, o acaso e as eventualidades são incorporadas, porque as fotos dependem da interação artística dos modelos com a fotógrafa (sobre o que se pode ler um pouco na entrevista). Sustentar esse processo numa sessão é um desafio não apenas interessante para uma artista como também enriquecedor para a arte, porque propõe uma imersão continuada, que por vezes será uma progressão, por vezes uma colagem estimulando no público a sobreposição das camadas de imagens.

E também nessa sessão se observa a inventiva variedade de enfoques: utilizará o registro em preto e branco, marcando com rigorosa intenção o contorno do modelo sinuoso, hábil em compor uma pose que, diante de um desenho, imita perfilado a bidimensionalidade do mesmo desenho, acentuada pela austera & elegante gama de cinzas, branco & preto; em outra foto, a modelo de filigranada tatuagem de folhas exibe um torso sólido & enérgico diante do chão verde & do biombo marrom, compondo uma sensualidade sólida, arcana, quase religiosa; a mesma modelo desfila em "o corredor azul", com um efeito que desfigura e sobrepõe as imagens, sugerindo uma atmosfera indecisa, sutilmente irreal, de sonho, ou reiterando a fantasia do desenho, que percorre a série.

A natureza do corpo humano não aparece apenas aí, mas em "a grade", na qual para melhor sentirmos a maciez da pele espreme-se a nudez contra uma grade de metal que a segmenta: mas, igualmente, o corpo surge em atitude desafiadora, quase feroz, marcando o preciso limite de sua solidez, expondo sua sexualidade no proposto enfrentamento material; com a mesma inteligência, o espaço dividido em "cabaças" tem a virtude inteiramente fotográfica de sugerir uma ilusão pelo recorte, em que parecemos ver duas fotos conjugadas: os tons de cinza, os tamanhos e a linha divisória estimulam essa ilusão que convida o olhar a se demorar sobre as relações das figuras no quadro.

Filardi é da mesma forma sagaz para captar uma oportunidade irônica: em "congresso em chamas", o clima das manifestações recentes que tomaram inclusive a capital federal (onde mora a fotógrafa) ganha uma prefiguração espantosa (a foto é datada de 2012), não diferente, em sua natureza, da fotografia em que lemos "sem deus" diante de uma avenida cheia de carros. Não são os dois únicos exemplos críticos que podemos colher em sua fotografia: em uma outra, que não aparece nesta breve compilação, vemos um carro já quase desmanchado em que se grafou habilmente com tintas coloridas: "caos". Há uma grande força de provocação nessas fotos, como em outras, & certo aspecto de ponta afiada em seu trabalho.

Sua obra é recente, e já muito ampla de engenhos visuais para o deleite de quem sabe ver. Filardi, como Valéria Garcia, está na vanguarda de uma fotrografia brasileira que explora sem medo as hipóteses do visual, de fora da cosmetização que torna as imagens insignificantes: sua experiência tem ligação direta com a vida & suas formas cambiantes, para a qual tem dois bons olhos sempre despertos.

 

 

Valéria Garcia (1975)

 

Na fotografia de Valéria Garcia se vê a delicada composição das cenas. O conceito de um equilíbrio visual é claro mesmo em seu primeiro trabalho assinado, o "auto-retalho", de 1995: a fragmentação desproporcional das imagens ― que correspondem engenhosamente a um corpo assim composto pela incongruência ― é proporcional no sentido de que figura a hipótese de uma identidade duvidosa, ou em questão, isto é: trata-se um modo proporcional de figurar uma desproporção.

Em outras fotos nota-se a cuidadosa construção da cena, seja em "caveira de boi", na qual vemos uma caveira convertida a um tom super-saturado de azul sobre um arranjo de panejamento que a monumentaliza como em uma antiga pintura do gênero memento mori, "lembra-te da morte", seja em um retrato que capta no rosto & no denso contraste o significado de uma personalidade. Como se pode ler na entrevista, Garcia se beneficiou de um aturado trabalho laboratorial no começo de sua carreira, & de uma longa experiência didática no Museu Lasar Segall: se nas fotografias de Julia Filardi observamos o cruzamento ideal de sua fotografia com sua sensibilidade & sua experiência muito particular como artista plástica & professora de pintura, aqui também é notável como o trabalho formou em parte a visão fotográfica de Valéria Garcia.

E, daí, o preciso isolamento do "mínimo ciclista" que parece seguir o rumo interno do trecho luminoso da foto, isloado pela moldura de pedra, cujo orifício também produz o efeito diminutivo; ou a cuidadosa inserção do "nu dinâmico", marmóreo & ao mesmo tempo em movimento, em um fundo escuro que realça o deleite da pele em contraste; no mesmo sentido, o nu para a revista Gargântua é produzido de forma a articular delicadamente uma escala de cinzas e a doce luz láctea que banha e se liqüefaz no corpo, nas paredes, no panejamento, no sapato solitário: o que em uma foto era a rigidez da luz fazendo algo estatuário, em outra se converte numa liquidez melancólica, leitosa.

Garcia também escolhe estilizando: em "terror sagrado" temos um fragmento de escultura que, composto já de suas linhas rígidas, ganha ainda nova angulação com a geometrização de luz & sombras, que se tornam delgadas & dramáticas apenas no rosto da figura de pedra, sublinhando-o. São coisas da inteligência própria da fotografia, como no reflexo da "torre eiffel" numa poça: o recorte dado pelo contraste intenso desenha com nitidez parte da estrutura da torre no outro recorte, quadrado, do chão todo cinzento, com um brilho ideal de luz no alto.

O colorido é algo à parte em sua obra: curiosamente, Garcia tende a uma paleta reduzida, a controlar seus efeitos. Se Filardi combina magica & elegantemente toda & qualquer cor (porque seria fácil se tornar banal, ou perder o equilíbrio da composição), como Matisse era capaz de fazer na pintura, Garcia tem uma cautela hitchcockiana de estabelecer o número de itens em jogo, planejar como funcionam. Assim, a paleta que observamos em "luz da tarde" (a sombra quente que desenha a perna) é basicamente a mesma da surrealista "marulho" & que sofre pouca alteração no etéreo "quimigrama", parte de seus experimentos com processos técnicos; "cold fish" tem cor apenas num tom cinzento-azulado, e num discreto matiz de rosa a animar sua estranha figura, duplamente congelada, no bloco de gelo & na foto, & que é o mesmo rosado que explode contra o azul na foto do Jardin des Plantes, de Paris.

Por fim, fotos como o "garoto" clicado em Ouro Preto, ou "manequim", de 2002, ou "o caminho para o farol", são aquelas em que se nota o estilo antigo do foco em um motivo que organiza todo o resto em torno: como os fotógrafos do período formativo faziam. Não há, no entanto, nada de nostálgico nessas fotos, pois elas reafirmam uma verdade perene, que antes das fotos nossos olhos já nos diziam, extamente como quando Richard de St. Victor escreveu, no século XII (mas provavelmente ecoando alguém ainda mais distante): ubi amor, ibi oculus est, ou, "onde está o amor, estão os olhos". Há coisas que irradiam uma vida muito intensa, ou parecem codificar um sentido profundo, & é o que a fotografia de Julia Filardi & a de Valéria Garcia nos relembram.

Assim, sem mais demora, os leitores são convidados a visitar as duas galerias de fotos compiladas para esta edição da Germina.

Gaudete.

 

 

Notas

 

1Mais um indício desse modo de Picasso entender fotografia está no livro Conversas com Picasso (Cosac & Naify, tradução de Paulo Neves, 2000), fotos e entrevistas com o espanhol da parte do fotógrafo húngaro (a grande fotografia tem uma quantidade incomum de húngaros), Brassaï: e Brassaï em dado momento move as pantufas de Picasso para diante de uma cadeira onde, no assento, jaz uma pilha de jornais, e cujo espaldar fora pintado pelo gênio da vanguarda com um rosto. O resultado, obviamente, é análogo ao da pintura cubista de Picasso, constituída de materiais heterogêneos, por vezes compondo um retrato de adições fragmentárias. O comentário de Picasso ao ver as pantufas diante da cadeira é o seguinte, no entanto: "Essa foto não será um 'documento', você deslocou minhas pantufas. Jamais as disponho desse modo" (p.170). O objetivo desta e de outras fotos de Brassaï ― um dos maiores fotógrafos do século XX ― não era nem de longe documental: era recriar com humor as técnicas de Picasso, para efeito análogo, e em foto.

 

2Não se pode esquecer o papel desempenhado pela fotografia de Alfred Stieglitz, nem também sua revista influente & promotora da fotografia como uma arte, Camera Work, publicada pela primeira vez em 1902.

 

3É possível encontrar boas reproduções dessas fotomontagens excelentes na edição dedicada a Jorge de Lima dentro da coleção Texto & Arte, da Edusp.

 

4É um fato deprimente, mas um fato. A despeito dele, em anos recentes de melhoria econômica vemos algumas coisas acontecendo: há edições boas de fotógrafos. Há parte da obra de Wesley Duke Lee encontrável em edições, por exemplo, a de Maureen Bisilliat, igualmente.Lembraria também de alguns retratos marcantes feitos por Bob Wolfenson (Caetano Veloso, João Cabral de Melo Neto, umas belas fotos de Gisele Bündchen, etc). Há a atenção dada à fotografia pelo Instituto Moreira Salles, mas é uma atenção que atende sobretudo a brasiliana, coisas mais ou menos etnográficas & em geral dentro de um princípio de "bom gosto".

 

5Ahora bien, já me desloquei para Florença duas vezes, & nas duas vezes em que peregrinei a essa Terra Santa a Nascita di Venere de Botticelli me prostrou com lágrimas nos olhos, ou com um estupor basbaque pelo complexo de beleza (no sentido forte do termo, cheio de coisas neoplatônicas infusas nele, e não no sentido de um enfeite idiota pendurado numa parede). E isso não aconteceu, obviamente, quando folheava uma reprodução apreciável da mesma coisa em livro. Há uma mística indiscutível na obra ― em qqer obra que mereça o nome ―, mas isso não deve nos anestesiar para outras experiências. Benjamin quer demonstrar especificamente que a multiplicação que junta mercado + máquina pode ter o resultado de uma espécie de pacto com as trevas, quando da estetização, por exemplo, da política (ele pensava imediatamente no nazismo).

 

6José Guilherme Merquior, ávido leitor de tudo, conhecia suas obras & o citava. Mas Merquior foi obliterado por representar uma pavorosa aberração: um tipo intelectual de direita. E assim sumiram as poucas remissões que Wind recebeu no Brasil.

 

7Não obstante o aspecto francamente liberador, a expulsão do jogo social por outro lado torna muitas vezes os verdadeiros artistas em um bando de párias pscologicamente instáveis. Uma sociedade doente gera doença, é inevitável.

 

8Lembrar do uso extraordinário que Ridley Scott faz, ao filmar Blade Runner (1982), das fotografias: os replicantes de Philip K. Dick são mais do que meros andróides, foram criados para ser quase indistintos de um ser humano, ou, em geral, versões aperfeiçoadas do homo sapiens. Mas como mecanismo de segurança, duram apenas quatro anos & vivem de implantes de memória que lhes dão algum sustento emocional. Nesse caso, as fotos desempenham um papel de confirmação das memórias, do que se viu & viveu, a ponto de Roy Batty, um dos replicantes, dizer a outro replicante, Leon, que havia retornado de casa tendo ido buscar um pacote de fotos: "Did you get your precious photos?" (Achou suas preciosas fotos?). Da mesma forma, o caçador de andróides, Deckard, utiliza um refinadíssimo computador para analisar detalhes em fotos, como parte do processo de investigação. Ou Rachel, a replicante que não sabe que é replicante, quando apresenta uma foto de si mesma com a mãe, como prova de que é humana.

 

9Esnobismo inútil e ideológico, que supõe em primeiro lugar que arte só pode existir em determinados espaços; &, em segundo lugar, que arte só pode ser coisa oposta ao capitalismo. Nenhuma das duas coisas é verdade, ambas são uma mescla particularmente perniciosa de ciúme & ignorância, vestida de decoro intelectual para fazer parecer que tem alguma dignidade.

 

 

 

 

 

 

Dirceu Villa (São Paulo, 1975). Poeta, tradutor e ensaísta, é autor de MCMXCVIII (Badaró, 1998), Descort (Hedra, 2003, vencedor do prêmio Nascente) e Icterofagia (Hedra, 2008, contemplado com o PAC, atual ProAc). Mestrou-se em 2004 com uma tradução anotada dos poemas de Lustra, de Ezra Pound (Demônio Negro/Annablume, 2011) e foi publicado em revistas brasileiras como Ácaro, Cult, Ciência e Cultura, Modo de Usar & Co., Celuzlose, IHU, Metáfora, além de estrangeiras, como a nova-iorquina Rattapallax, Poetry Wales, do País de Gales, Alforja, do México e Alba, da Inglaterra. Ensinou poesia por três anos na extensão universitária da USP, e foi curador da exposição de livros de Ezra Pound da biblioteca de Haroldo de Campos, na Casa das Rosas (2008). Na revista digital Germina Literatura escreveu ensaios sobre poesia contemporânea, revisões do cânone da poesia de língua portuguesa, e traduziu Ovídio, Matteo Maria Boiardo, Peire Vidal, Voltaire e e.e.cummings, entre outros. Organizou antologia de doze poetas brasileiros contemporâneos para a revista La Otra, do México. Traduziu também contos de Joseph Conrad e prefaciou obras de Stéphane Mallarmé, Charles Baudelaire, Christopher Marlowe, Alfredo Fressia e Érico Nogueira. Participou, com o poeta Ulf Stolterfoht, do VERSschmuggel (Contrabando de versos), oficina de tradução no PoesieFestival de Berlim, em 2012, e publicada em livro por Wunderhorn (Alemanha) e 7Letras (Brasil). Doutorou-se na USP, no mesmo ano, com tese sobre a poesia dos séculos XV-XVI na Itália e na Inglaterra, com estágio de pesquisa na biblioteca do Warburg Institute e na British Library, de Londres (2010-2011). Escreve o blogue Demônio Amarelo  [odemonioamarelo.blogspot.com.br].

 

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[ valéria garcia | torre eiffel | paris | 2009 ]