LINHA

 

 

É menos o que lembro que

o que esqueço Sobre

a linha febril onde o presente

desaparece imerso na luz frágil do sono

 

(de tanto interrogar esta hora que esgota

a ilusão da noite

movo os olhos abertos entre as

formas procurando a mudança)

 

confundo com a sombra, em que apareço

por momentos real,

o meu corpo Pareço-me

 

comigo noutro quarto A realidade

invade o céu A luz

desmoronou o cérebro, castelo

 

 

 

 

 

 

KENSINGTON GARDENS II

 

 

Não acredito mais nesse poder

das imagens abstractas A solidão do

parque é um vazio

também na relva gasta da linguagem

 

 

 

 

 

 

CAOS

 

 

Entre as ramagens de uma dor confusa

perpassa devagar a figura futura

do ser mutável que ao amor recusa

tempo nessa planície amarga onde fulgura,

 

árvore incandescente, a mudança Recusa

o tempo ao tempo duração pois dura

menos o que se vê no abismo da profusa

luz da mudança que a visão impura

 

de dias irreais, estes, imersos

na névoa tão cruel da realidade

Entre as imagens reais como tempos diversos

 

 

perpassam adejando em seus brilhos de jade

reconhecíveis aves, nos inversos

labirintos futuros nutrindo a sua carne

 

 

 

[Poemas do livro As leis do caos. Lisboa: Assírio e Alvim, 1990]

 

 

 

 

ARTE

 

 

Voltamos às margens do afluente

incerto As nossas horas

correm à sua imagem

 

nem a manhã nos salva

Pequeno rio ríspido insensato

nele parte descendo-o como se

 

a força da manhã a transportasse

a nossa arte da vida

inveterada

 

 

 

 

 

 

JEUNE HOMME NU ASSIS AU BORD DE LA MER (1836)

de Jean-Hyppolyte Flandrin (Museu do Louvre)

 

 

As coxas e o tronco formam quase

um círculo pois tem

a cabeça pousada nos joelhos

cingindo com os braços as flectidas

 

pernas Mármore deve ser

a matéria em que aguarda a prolongada

catástrofe de nada

já sentir

 

acto de pedra à espera

de ser interpretado corpo branco

pensando o seu destino

inverossímil

 

O abandono tornou-se

rígido a dor irreal e o mar

junto do qual está representado

é apenas a perda de não sabe de quê

 

 

 

 

 

 

O QUE FICA

 

 

O mar onde teu corpo

dormia

como se cada onda construísse

 

a gruta protectora

é um campo relido Eis o que fica

semelhante ao silêncio

 

Corredores

levam-me a outro tempo percorrendo

o oceano dos lugares

 

 

 

 

 

 

ESPECTROS

 

 

Restas Dentro da

luz nascido

erraste nas areias que

foram para ti o universo Estás

em tempos diversos onde a ave

 

que sobrevoa agosto até ao

extremo já não te vê e tu

não podes ver

as asas que te queimam

Mas a vida descobre-te sozinho

 

tropeçando na carne dos

espectros E tu

restas

Essa luz é

o nada A praia já entrou

 

no verão

infinito A aurora eterna

expulsa-te Mas

restas A memória

interpreta-te és a

 

vítima do dia que te recusa

e exibe Nessa

luz da origem

sobrevives

interrogando o corpo incorruptível

 

 

 

[Poemas do livro As pedras negras. Lisboa: Relógio d'Água, 1995]

 

 

 

 

DEPOIS DUM SONHO

 

 

Não deixaste o deserto mas

árvores na casa Em sonho és

o sedutor arbusto reflectindo

para sempre o meio-dia O sol

porém desfaz-se quando as pálpebras

num ardor se entreabrem e te ocultas

nos ângulos do quarto Ausente

és pois o centro

feroz da minha vida transitas

como serpente fria no ventre

contraído escondes-te na

floresta que sem cessar se expande

onde dormíamos E erras

nos limites duma casa

destruída por raízes

 

 

 

 

 

 

E-MAIL

 

Um ramo na mão tinhas

 

 

Está sob o vidro a pele

é um suor de sílabas

de músculos pulsando

na primavera física

 

Quereria fazê-la

sair do vidro e simples

atravessar as nuvens

com um calor longínquo

 

subitamente perto

com mãos e lábios vindo

encostar-se ao meu corpo

com o ramo do símbolo

 

 

 

 

 

 

UM NOME

 

 

Habita a minha noite

um nome agudo

nome próprio dum corpo

O corpo

desse nome é tudo o que

na paz edificada

sobre o ruído permanente

da noite faz

baixar

até à inexistência

o coração que se recusa

à perda e dissimula

batendo nos rochedos as golfadas

do mar

 

 

 

 

 

 

LUZ DO LEBLON

 

 

No inverno tão

quente semelhante

a um verão amamos a

incerteza

 

Com voz igual

o mar retrata o ávido

cheiro do corpo o aroma a

sangue

impossível de manter escorrendo

sobre a pele molhada

de outro mar

 

O verão do Leblon nega o seu

nome

escondemo-nos

na luz reconhecendo-o

 

 

 

[Poemas do livro Rua de Portugal. Lisboa: Assírio e Alvim, 2002]

 

 

 

 

À PORTA DA INSÓNIA

 

 

Já o real absorve a irrealidade,

porém que realidade é a da noite

só vivida em palavras? Em vão tento

criar uma sequência de momentos, de

tudo esvaziados, e se falho não sei

se é por obras palavras ou imagens

 

Paro à porta da insónia, e no magro intervalo,

que se alarga depois, reaparece a casa: dentro

dela estou afinal, o estrago que me envolve

é igual ao que também não sei que mal

mortal fez no tecto do sono,

por onde agora entra a realidade

 

 

 

 

 

 

DENTRO DA VIDA

 

 

Não estamos preparados para nada:

certamente que não para viver

Dentro da vida vamos escolher

o erro certo ou a certeza errada

 

Que nos redime dessa magoada

agitação do amor em que prazer

nem sempre é o que fica de querer

ser o amador e ser a coisa amada?

 

Porque ninguém nos salva de não ser

também de ser já nada nos resgata

Não estamos preparados para o nada:

certamente que não para morrer

 

 

 

 

 

 

RAMO

 

 

Talvez eu não consiga quanto amo

ou amei teu ser dizer, talvez

como num mar que tu não vês

o meu corpo submerso seja o ramo

final que estendo já não sei a quem

 

 

 

[Poemas do livro A moeda do tempo. Lisboa: Assírio e Alvim, 2006]

 

 

 

 

ESCARPAS

 

 

Tantos vieram para quem estar vivo

foi ouro em que seu ferro converteram;

pelo dia chamados tantos eram

que como lençol negro a luz cobriam,

 

obscura multidão tal o vazio

lugar universal que biliões

de anos-luz levaria a percorrer,

nuvens de aves morrendo em sucessivo

 

quebrar do tempo nas escarpas gastas

da passagem; mas como atravessar

o vazio sem tempo, aquele que há-de

 

ser o tempo de todos? Tantos vieram

mudar seu ferro em erro, é de viver

e morrer que se trata, ferro em ferro

 

 

 

 

 

 

SOB O SOL

 

 

Voltas e o sol de novo é uma luz no corpo,

talvez o amor não fosse a razão deste jogo

que o sol do meio-dia faz entre sombra e corpo,

talvez seja reconhecer-te o jogo

 

 

 

 

 

 

CHEGADA

 

 

Parece-me irreal que tenhas vindo,

quase irreconhecível: onde estava

o impossível

eco de vida, íngreme, o passado

tornado mais passado?

 

Parece-me real que tenhas ido

ser outro ser, distante desta praia

Reconheci-te?

A lua minguante

de agosto iluminou tua chegada

 

 

 

 

 

 

MARGEM DO MAR

 

 

Volto-me para ti ou antes para

o teu lugar se é que tal abstracção

é possível, noite sem

som onde tu és o eco múltiplo

procuro

 

ver novamente os teus vários retratos

animados pelo sol o amor ou a respiração

o sangue torna

a passar-te nos braços fotográficos

devo continuar

 

a narrar o percurso irregular

da tua multiplicidade

eras o ar a árvore voltar-me

para ti é como procurar

no mar os afogados

 

 

 

 

 

 

QUARTO

 

 

Abre a porta

sobre a palha queimada onde deitaste

sua cabeça na breve eternidade

 

 

 

 

 

 

OXÍMOROS PARA UMA AUSÊNCIA

 

 

Como é possível que o silêncio pare

e o som não regresse?

 

 

 

[Poemas do livro Escarpas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2010]

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©rodin] 

 

 

Gastão Cruz nasceu em Faro, em 1941. É poeta, crítico de literatura e tradutor. Participou de Poesia 61, ao lado de outros quatro poetas: Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta. Em 1985, com o livro O pianista, recebeu o prêmio PEN Clube de Poesia. Em 2001, com Crateras, ganhou o prêmio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus. Rua de Portugal foi distinguido, em 2002, com o Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Já A moeda do tempo recebeu o prêmio literário Correntes d'Escritas, em 2009.