Sítio Descanse em Paz Antes da Madama Chegar, 31 de maio de 2012

 

 

Genésio,

 

Adivinha quem me escreveu? Vou te dar uma pista: é romântica, super romântica. Vou te dar mais uma pista: é honesta, mega honesta. Vou te dar mais uma pista: ela acredita na cura através do Outro. Fácil, não? Falo da pobre coitada Daminha de Unha Francesinha. Mais pobre coitada do que nunca, embora agora cheia da bufunfa. Bom, bom, a cartinha chegou toda perfumada, letrinha de menina, coração também.

 

$ Oi amiga,

 

O Genésio me passou o endereço do seu sítio antes de sumir como todos os outros, ai amiga, por que as pessoas fingem tanto desinteresse? Por que as pessoas tem tanto medo de se entregar? Se apaixonar é a melhor coisa que pode acontecer, a vida fica tão mais bonita e com sentido, mas ninguém quer arriscar, preferem os dois pés fincados no chão do que tentar uma vida mais colorida, eu nunca vi tanto medo no mundo, as pessoas tem medo até de sentir medo, ai amiga, na verdade eu tô te escrevendo pra contar outras coisas, mas é foda, não consigo, o meu foco é o amor, o dia todo eu falo de amor e penso em amor, mesmo que seje a falta de amor eu continuo falando de amor, eu acho que no fundo no fundo todo mundo só quer amor, só que eu assumo, ai amiga é difícil ser assim sabe, eu tenho muita coragem, então acabo assustando todo mundo, principalmente os bofes, aí eu não entendo mais nada, se sou forte assusto os bofes mas se fico fraquinha parece que soltei um pum daqueles bem fedidos, todo mundo, mas todo mundo mesmo, desaparece em um piscar de olhos, imagina se eu soltasse um pum de verdade Gioconda, aí eu tava pra lá de ferrada, não ia mais arrumar nem um atendimento básico, já vi gente que perdeu um grande amor por causa de um punzinho bobo, imagina que tristeza, depois de tanta procura e batalha, estranho que com a vovó e o vovô era diferente, eles não tavam nem aí, soltavam pum na frente da família toda,  depois diziam só pra mim: pois é minha filha, o cansaço vence o decoro, ai amiga, vou te revelar um segredo meu, mas não conta pra ninguém, tá? Principalmente pro Genésio, vai que ele ainda responde a minha mensagem, eu mandei uma imagem linda linda pra ele, aliás preciso te perguntar uma coisa, vocês dois são irmãos, né? A luzinha me disse que vocês são, enfim amiga, vou te contar o meu segredo, sabe eu sofria muito desse tal de bulin no colégio, toda vez que eu chegava em uma roda as pessoas todas iam embora e eu ficava sozinha, sempre sozinha, aí me apelidaram de Mary Tifo, aí eu pesquisei na net e descobri que a Mary Tifo existiu mesmo, você conhece a história dela amiga? Ela foi considerada culpada por uma epidemia que matou quarenta mil pessoas, era cozinheira nas casas onde todo mundo morreu de tifo menos ela, então prenderam ela em uma cela durante três anos, depois soltaram com a condição dela nunca mais trabalhar como doméstica, mas mesmo assim ela trabalhou em um hospital e de uma hora pra outra mais um montão de gente morreu de tifo lá, então ela passou o resto dos seus dias em um confinamento solitário, estranho que é exatamente assim que eu me sinto, em um confinamento solitário, ai amiga, mas eu vou tentar te contar no meio de tudo isso as coisas que me aconteceram, se prepare que a carta vai ser comprida pencas, mas a tal luzinha me disse que você gosta de cartas, que você ama a palavra, então vou ficar relaxada e soltar a matraca, tá? Lembra que você disse que um dia eu ia ficar muito rica? Então você é adivinha é? Eu tô rica Gioconda, milionária, fui eleita pela revista financeira Quando Todos Abrem as Pernas Além do Sorrisãosãosãosão a mulher mais rica do mundo, você ficou passada, né? É verdade amiga, eu sou uma das poucas artistas que conseguiu ganhar dinheiro, inventei duas estampas de camisetas e pronto, eu vendo as camisetas em todos os lugares, até fora do país, eu vendo no mundo inteiro Gioconda, na revista disseram que nunca antes uma arte, uma arte mesmo, vendeu tanto, que além de eu ser um fenômeno no cenário cultural sou um fenômeno no cenário empresarial, disseram que vão até me estudar em laboratório, ve se pode, como se eu fosse um rato, não que eu me ache melhor do que um rato, na verdade eu acho que eu e o rato no fundo somos iguais, sabe amiga uma vez eu tive um ratinho, ele se chamava Isnovaldo, nunca alguém me olhou tão dentro como o Isnovaldo, o Isnovaldo me olhava tão dentro que eu conversava com ele coisas da vida e até da morte, uma vez olhei pra ele e pra mim e perguntei qual de nós dois morreria primeiro, o Isnovaldo não respondeu, aí eu perguntei assim ó: não é impressionante que a morte exista? Que um ser capaz de sentir tanto vire uma poeirinha rala? Aí o Isnovaldo respondeu, ele disse assim ó: impressionante é que exista o homem, logo depois o Isnovaldo morreu pisado por um homem, que jeito horrível de morrer! E morrer engasgado então, eu li na net que um cara morreu engasgado com uma tampa de garrafa, ele era super inteligente, escrevia novelas de teatro, é Tenesse alguma coisa o nome dele, e morreu assim, ve se pode! E a minha prima Hilária que já nasceu doente, passou a vida toda em filas de hospitais e morreu em uma delas, demoraram horas pra ver que ela tava morta e não dormindo na cadeira, quase não deu pra fazer o velório, de tão inchada e escura que a Hilária tava, depois me deram um papelzinho que encontraram no bolso do vestido dela, com uma coisa tristérrima escrita, a Hilária escreveu assim ó: chorando a minha humanidade, condição miserável da qual sentirei saudade. Pensando bem todos os jeitos de morrer são estúpidos, até os jeitos mais glamurosos, a morte é um despropósito só, mais despropositado do que a morte só essa falta de amor, enfim amiga, vou te falar mais sobre as camisetas, que lembrar do passado dói muito, dói tanto que eu faço de conta que esqueci para que não doa mais, e depois falar assim tão profundo dá até cadeia, aprovaram uma lei aí, enfim amiga, no início as camisetas são super simples, são só duas frases, a pessoa escolhe a frase que tem mais a ver com ela, em uma camiseta vem escrito TÔ ÓTIMO e na outra camiseta vem escrito TÔ ÓTIMA, você entendeu o sentido amiga? na verdade é mega profundo, tem que ser sensível antes de ser inteligente pra captar, pois inteligência não é a mesma coisa que sensibilidade, eu prefiro mil vezes um tapado sensível do que um inteligente tampado, enfim amiga, se o povo gostou tanto é porque rolou um alcance, pra você ver como a vida é uma caixinha de surpresas, nem eu imaginava que as pessoas iam se identificar tanto comigo, e você Gioconda é super perto e igual do meu pedaço mais bonito, algumas pessoas dá pra reconhecer mais fácil, ai amiga, cade a coragem dessa gente? esses dias eu tava na manicure pintando a minha unha de um vermelho bem vivo e uma moça que tava do meu lado disse assim, nossa como você é corajosa pintar as unhas de um vermelho tão vivo, aí eu pensei, coragem pra pintar as unhas de um vermelho tão vivo? Helooooo???? Por acaso precisa de coragem pra fazer uma coisa tão básica? Então eu devo ser muito da corajosa que todos os dias passo uma segunda mão de vermelho bem vivo no meu coração, mesmo com tanta gente passando pela minha vida e tentando apagar o vermelho dele, aí neste segundo uma luzinha acendeu na minha cabeça e me veio assim ó: "para aqueles que não sabem que estão mortos e levam a mesma morte aqueles que estão ao seu redor", eu demorei um pouquinho pra entender mas depois captei, e olha que maluquice pensei que daria uma boa dedicatória no meu livro, porque agora que tô famosa querem que eu escreva um livro sobre os meus fracassos amorosos,  me ligaram da editora Obra-Prima se Vende no Supermercado da Esquina, mas eu não sei amiga se devo escrever um livro sobre isso, afinal falar de coisa negativa só atrai coisa negativa, e dinheiro eu já tenho bastante, e não quero ficar expondo tanto os meus fracassos amorosos, capaz de atrair ainda mais fracassos,  A Mulher da Editora disse para eu deixar de ser boba, que quanto mais dinheiro eu tiver mais amores eu terei, vários amores, milhares de amores, zilhões de amores, eu disse pra ela não confundir bagos com chocalhos, que dinheiro é uma coisa e amor é completamente outra, que não tem nada a ver, mas nada a ver mesmo, comparar os dois, aí A Mulher da Editora começou a rir tanto no telefone que eu comecei a chorar compulsivamente, comecei a chorar tanto que fui diminuindo de tamanho, fui ficando pequenininha pequenininha, e A Mulher da Editora rindo cada vez mais, aí eu fiquei tão pequenininha que não consegui mais segurar o telefone e nem consegui mais me segurar nele, e a Mulher da Editora rindo e rindo cada vez mais e cada vez mais alto, aí eu deixei a parte do telefone onde a gente fala cair e ele ficou pendurado pelo fio, e eu cada vez mais pequenininha pequenininha, tão pequenininha que eu quase nem me enxergava mais, se não fosse tudo aquilo que tinha vivido eu teria desaparecido, eu me agarrei na minha memória para não desaparecer assim, eu me agarrei até nos piores momentos e foram as fomes e os xingamentos e os talhos que mais me seguraram, aí eu pensei que a maldade dos outros às vezes serve pra alguma coisa, e A Mulher da Editora rindo e rindo e rindo cada vez mais e cada vez mais alto e mais alto, tão alto que até os moradores do prédio acordaram, os moradores do prédio começaram a reclamar tanto, gritaram vai se foder e cala a boca que quero dormir que amanhã acordo cedo que preciso trabalhar tá pensando que a gente é rico como tu, e eu cada vez mais pequenininha pequenininha, tão pequenininha que a minha voz parecia um zunido e eu tentava dizer que eu era rica sim mas que eu queria mesmo era um amor que tava tão dolorida que meu coração tava tão desbotado que precisava muito do amor deles, mas eles não me entenderam e continuaram a gritar tudo aquilo mas eu pensei que se eles me escutassem eles iam me entender, e A Mulher da Editora rindo e rindo e rindo e rindo cada vez mais e cada vez mais e cada vez mais alto e mais e mais alto, tão alto que os moradores do prédio vieram até a porta do meu apartamento que um devia tá matando outro que era uma risada tão alta que só podia ser isso uma faca enfiada no meio do peito ou um tiro no meio da cara, e eu cada vez mais pequenininha pequenininha, aí eu reconheci a voz do Morador do Segundo Andar que eu sempre dava bom dia e que sempre dava bom dia pra mim e ele disse que puta morre assim mesmo no meio da lama e que caso eu não fosse a morta eu seria além de puta uma assassina e que isso já era de se esperar mas que de qualquer jeito era melhor chamar o pelotão de fuzilamento, e eu cada vez mais pequenininha pequenininha, aí Outro Morador arrombou a porta do meu apartamento e eles não acreditaram quando viram que a risada alta vinha do telefone pendurado e que na verdade não tinha nenhum cadáver estirado no chão e então eles foram embora com mais raiva ainda e sem perguntar se eu precisava de ajuda mas eu entendi o motivo eu tava tão pequenininha pequenininha que parecia mais uma pulga do que um rato e claro que eles não iam me enxergar que a culpa era minha e não deles, e a Mulher da Editora rindo e rindo e rindo e rindo cada vez mais e cada vez mais e cada vez mais alto e mais alto e mais alto, até que A Moradora do Décimo Quinto Andar que eu nunca dava bom dia e que nunca dava bom dia pra mim antes de sair do meu apartamento colocou o telefone de volta no gancho e disse ninguém merece isso.

 

E aí Gioconda aos pouquinhos eu fui voltando ao meu tamanho normal, e quando consegui me levantar pensei em escolher uma roupa bem bonita e ir no Boteco Quando Perde o Charme o Fim da Linha, mas não consegui, eu senti medo amiga, senti medo de encontrar Os Moradores do meu prédio e dos outros prédios da Cidade das Crianças Marmanjas, senti medo de não conseguir mais passar uma segunda mão de vermelho bem vivo no meu coração, aí eu entrei no guarda-roupa e fiquei um tempão lá dentro agarrada nos meus vestidos como se eles fossem um amor, e aí eu percebi que já tava conseguindo segurar as coisas de novo e me segurar nelas, e aí a luzinha me disse pra escrever pra você e foi isso que me fez não ter mais medo, então eu sai lá de dentro do guarda-roupa e escrevi tudo isso e depois desta carta acho que estou do tamanho que era antes, talvez um tantico menor, mas não faz mal, porque eu tenho você amiga, uma grande amiga, quem sabe mais do que uma grande amiga, no fundo a gente sempre tem uma ideia muito mínima ou muito espalhafatosa do que a gente é, né?

 

Obrigado viu? Também sou sua fã pra sempre.

 

Um beijo de borboleta e um abraço de urso

 

Daminha de Unha Francesinha $

 

Genésio, que Bananeira excêntrica! Ou a excêntrica sou eu? E dizem que no princípio Belezura Também viu que era bom. Claro, ver que era perfeito seria um baita exagero. Depois dos cachos de bananas dizem que até Ela se arrependeu, dizem que até Ela sentiu o coração pesado.

 

Um beijo da tua "ÓTIMA"

 

Gioconda Lívida de Existência,

 

 

 

 

 

A Cidade das Crianças Marmanjas, 25 de maio de 2012

 

 

intensidade e matriz, a palavra propaga, primeiro nas auréolas, depois nos miolos, mas no mesmíssimo instante, intensidade e matriz, confirma a palavra, o instante menos do que a chuva, fina, fina, apenas quietude de água translúcida, olhar de mil cavalos que escorre na janela do quarto, pradaria e descampado. bicho que se sabe extenso, alto, ainda assim os músculos suscetíveis, a crina selvagem, a ferradura antiga, corrompida, descascada. através dela o instante retorna, persiste, é noite, um sopro quente e delicado abre os olhos, intensidade e matriz, nunca antes o silêncio tão música inaudível, a madrugada tão clara, ainda assim a firmeza da voz, timbre vigilante, sabe da vertigem no outro lado da  gangorra, sabe da importância da solidez de um braço. entre todo o esquema do insondável, lâminas, partículas, coisas mínimas, papéis esmiuçados, tentativas de recortes. assobiando o fundo persiste mais do que o instante.

 

Engraçado, recebi esta mensagem da Estrela Escura no instante em que recebi a tua carta. Mais engraçado, abracei uma Bananeira, abracei e percebi que Belezura Também possui corpo. Com cascas ou pelos. Com ramificações ou veias. Engraçado, logo Ela, tão vastamente difundida como intocável. Ops. Alguém tocou a campainha. Já volto, Gioconda. 

 

Ufa. Era O Vizinho que Igualmente É Triste, queria que eu fosse o primeiro a saber que conseguiu um emprego. Não um emprego qualquer, o emprego da sua vida. O tipo esquálido de barba longuíssima está trabalhando como britador, o britador mais realizado da Cidade das Crianças Marmanjas.

 

Antes da britadeira as minhas auréolas repudiavam os meus miolos, os meus miolos desamparavam as minhas auréolas. Antes da britadeira eu era um banana, um banana que sabia que era um banana, um banana que no escuro suplicava: não desligue a televisão enquanto os meus olhos estiverem abertos. O som distante promete o esquecimento do meu buraco. Afirma que esquecê-lo é mais fácil e confortável. Mas finalmente eu encontrei um instrumento realmente eficaz, tenho uma britadeira, todinha minha. O Meu Patrão me permitiu levá-la para casa, disse que nunca teve um britador tão competente e dedicado, disse que sou o melhor britador que existiu na empresa, perguntou como cavo buracos tão fundos com tanta exatidão, respondi que estudei sobre os buracos na Universidade Mundial O Outro com as suas Inhanhas e as suas Façanhas, O Meu Patrão não entendeu, disse que estuda na mesma Universidade, mas que na sua classe aprende a tampar buracos, respondi que eu também aprendia, mas que sempre tive mais aptidão para cavar, que aqueles que têm aptidão cavarão mais cedo, que aqueles que não têm aptidão cavarão mais tarde, respondi que somos todos coveiros de nós mesmos, O Meu Patrão pediu desculpa, disse que chora com facilidade, respondi que eu também choro, que é muito assustador cavar o próprio buraco, mas que agora não me sinto tão só, respondi que agora tenho auréolas e miolos conjuntados e lhe serei eternamente grato, O Meu Patrão compreendeu, levantou as mãos e disse: Que Belezura Também esteja contigo, filho. O filho respondeu: Belzebu Te-Ama, irmão.

 

O Vizinho que Igualmente Não É Mais Tão Triste me deu até um abraço. Eu? Admirado. Demonstração de afeto ainda me surpreende. Já a tua, Giocondinha, não esperava nos miolos, mas pressentia nas auréolas. Sim, tu escreveste sobre o Amor, assim como escrevo: quando o meu quanto?

 

 

Beijos da tua sutileza e concretude,

 

Genésio do Peito Genuíno

 

 

Ah! O Maduco sorrindo! Sinto que A Criança que Avoa está viva,

 

 

 

 

 

 

[imagem ©jeremy olson]

 
 
 
 
 
 
 
Isadora Krieger (Balneário Camboriú/SC). Poeta e escritora. Idealizadora do Cabaret Revoltaire (São Paulo), espaço aberto a experimentações artísticas. Em 2014, publicou O Gosto da Cabeça na coleção "Poesia Menor", pela Publicações Iara e Caráter Anal, na antologia "Boca Santa", pelo selo Carniceria Livros. Em novembro de 2014, lançará o romance Memória da Bananeira, também pelo selo Carniceria Livros.