Verbo absurdo

 

despedidas como se nada

como se nunca

 

qual verbo mais absurdo:

o do não saber

 

qual garra afiada

rangem meus dedos na porta

de uma noite escura qualquer

  

 

 

 

 

 

 

Natureza

 

não negues tua natureza

o ritmo de um rio não espera

o giro do mundo atropela

em sua aparente mansidão

 

amontoado de pedras ocas

cascas secas curtidas neste exato sol

janeiro: cronologia das carnes definhando

 

e as tais gotas no oceano

 

alguma dormência por apenas uma

fazer-se inscrita em seu nome?

  

 

 

 

 

 

 

Nada é meu

 

eu decido hoje que nada é meu

Carla Diacov

 

 

das sensações que nos sobram

um pé sendo engolido por um rio

 

uma dor aguda de verão

 

de resto nada demais

nem tuas doces promessas

 

não

nada é meu.

  

 

 

 

 

 

 

Costume

 

para Maurício Pinheiro

 

eu que me acostumei com todas as cores do mundo
todas vivas, intensas
e esta infinita confusão de rostos
milhares deles e o meu caminho o da margem

não me desgastava os pés — pensava eu —
esta trilha íngreme que escolhi
para ganhar invariavelmente
quem sabe mais espaço

o nó que desejei desatar no outro
não era esse o meu próprio?

e se estou no infinito da dor
de um poço jurado qualquer
não cuspo na cara da morte
compartilho (antes com ela)
esta minha febre (in)desejada de amor

  

 

 

 

 

 

 

Condição do mundo

 

o mundo continua líquido e incerto

                                            Célia Musilli

 

 

o mundo continua atravessando mãos

embaçando olhos

excluindo certezas das horas exatas

 

é condição do mundo

que não se entenda coisa alguma vez ou outra

que se derramem dores pelos poros abertos do corpo

 

que se desconheça

 

escolho abrir os cortes

enxergar por dentro porque cansaços

maledicências, medos

brotam do escondido nosso de cada dia

 

 

 

 

 

 

 

 

***

 

quase sem o ver, que quase sem o perceber, subitamente o sentem feito um sopro no meio da rua, sem nem mesmo saberem o que estão sentindo, sem nem mesmo saberem o porquê de estarem sentindo o que no momento, enquanto brisa, esbarra em suas peles, querendo saltar por dentro de seus poros, até, enquanto bala, até, enquanto saraivada de balas, de novo invadi-las.

                                                           (fragmento do texto "O Amor", de Alberto Pucheu)

 

 

 

(por um momento apenas)

 

 

com olhos imensos de realidade, ela presta atenção em detalhes para depois rememorá-los. O que se sente, ela sabe, é outra coisa que vai levar e guardar e experimentar mil vezes. O escuro da hora, do lugar, deixa as sombras em evidência, ela é toda confusão de espírito e corpo quente nas mãos frias. Ele é pressa e mansidão alternadamente. O jogo não é evidente, mas não é jogo, é a certeza de um abismo. O tempo juntos é a contradição da eternidade e do limitado, parece uma coisa, parece outra. É também algo à parte. Nunca quer ir embora, ela pensa. Ele ali tão menino, sutil e doce, e espelho dela na outra contradição do lícito versus ilícito da situação. Ela quer devorá-lo, aninhá-lo, quer a estrada marginal, os cantos, as beiradas, o sim disfarçado de não. Ele apenas parece não querer. Eles estão presos àquele momento, nada a mais que isso, nada demais, mas tudo grita numa voz interna, um pouco desesperada, até, em tempos inundados de paixão ainda quase recente. Não sabem bem o que fazer com isso, mas uma doce-imensa vontade impera insistente e sem explicações.

 

 

 

 

 

 

 

 

Confissão


Lugar sem comportamento é o coração
Ando em vias de ser compartilhado

(Manoel de Barros)

 

 

Sim,

visto que me encontro hoje em desalento

numa dor de não sei o quê,

num tom de impropriedades...

                    

São dias raros esses

Incomunicáveis

 

Não fosse o poema

não saberia nem por onde começar.

 

 

 

 

 

 

 

Grades

 

e que grades são estas

ao findar o dia

demora

ausência de medo

tão perto das coisas que não existem

lá se vai outro e outro, então,

descompassadamente.

  

 

 

 

 

 

 

Mistura

 

há esta intensa mistura

                                       —  por dentro — 

e tantos vazios

alguma ausência de coragem

daqui e dali

: nossa quase incompetência para riscos

 

mas esta água potável

o calor das palavras secretas e indeléveis,

tal doçura

: não me deixam escapar

  

 

 

 

 

 

 

Momentos

 

os momentos serão exíguos

quase suspensos

 

terão continuidade na marcha insistente da noite

na razão esclarecedora do dia

 

e serão importunados por uma quase-certeza,

por um misto de dor e cura

tudo isso confundido a vozes do além:

meus cavalos

das partes sagradas que estes são feitos

  

 

 

 

 

 

 

Dos outros dias

 

uma prece única cai como uma noite

a percepção do infinito imenso espaço

que há por dentro, incontrolável rio

 

nos restos, outros dias tantos

o cotidiano devora e desmente todas as falas

pequenas, repetidas, maléficas

escorre o veneno das bocas na saliva

 

a mesma mosca vagando nas refeições

a lembrar das meias verdades

mentiras consentidas

 

dos passos não dados e dos nós das mãos

  

 

 

 

 

 

 

Como tempestade

 

uma tempestade veio

tomou conta do que era azul inevitável

ventos que não sopravam há tempos

não se sentiam

 

A beleza chumbo camuflou a destruição

discórdia, dor, degredo

cotidiano invadido, caminhos invertidos

 

o tempo o tempo o tempo

sigo somente a contar os minutos

vigiar os segundos:

como giram todas as coisas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©leila lopes de andrade]

 
 
 
 
 
 
 

Leila Lopes de Andrade é graduada em Letras Vernáculas e Comunicação Social. Participou da Antologia Meditações sobre o fim — os últimos poemas (Editora Hariemuj/Portugal). Mantém o Blog Palavra e Destino e edita mensalmente a Revista Cultural Diversos Afins.