Um ilhéu

fazendo a travessia.

Acima dele o céu.

Abaixo, a maresia.

Entre os fios de seu enleio

a vida fugidia.

(Epígrafe, Edson Cruz)

 

 

Abrindo clareiras entre instâncias de névoa e penumbra, Edson Cruz constrói, aos poucos, no balanço do vento, com a coloração mansa das pausas e a força primeva que habita o coração de cada sílaba, fulgurações que alimentam o vasto tecido poético de sua nova obra, Ilhéu (Ed. Patuá, 2013). A dicção minimalista herdada do pensamento zen estende-se por todos os cinquenta e três poemas do livro, que tem prefácios de E. M. de Melo e Castro e de Thiago de Mello e capa, ilustração e projeto gráfico de Leonardo Mathias. Nos poemas de Ilhéu, cada sílaba é pensada, medida, celebrada como elemento sonoro autônomo e, concomitantemente, como parte essencial de um expressivo mosaico de reflexões cintilantes e instantâneas. Cada frase se insere no delicado registro em que "os gestos se desdobram" e "profetas esboçam desígnios no deserto".

A topografia dos sentidos reanima a intenção de cada palavra. Revogando certezas, a voz poética redescobre o ritmo e as várias tonalidades de um universo híbrido, em que pássaros permitem o rascunho das asas. É no vácuo que a voz se manifesta mais intensa. Na vacuidade do tempo, instaura-se o movimento pendular em que o poeta, mestre e aprendiz de suas próprias angústias, pesca um milagre e percorre os vãos raros do tempo. Nesse interstício de cromatismos, o poeta sabe: "Um gesto move o universo / inteiro / elimina o tempo / reinventa o espaço".

Em seus anteriores volumes de poesia, Sortilégio (Demônio Negro, 2007) e Sambaqui (Crisálida, 2011), Edson Cruz já apontava brisas, índices de tempo, rastros, fibras de memória, pegadas redesfeitas, grãos de areia. Já vislumbrava a matéria que agora condensa e esculpe, em movimentos às vezes secretos, às vezes abertos, na circularidade da existência.

Em voo pelas esferas semiplenas da razão, conectam-se fios de ausência, cuja cadência questiona "a álgebra rápida do discurso". A palavra pensa e dança, começa e termina, celebra e cala. O intervalo entre as vozes esculpe um silêncio grávido de sons. "Um grito rouco" alerta o leitor de sua impotência e o convida a receber e inverter as águas para o deslize das carpas.

O instrumento afinado de Edson Cruz permite-lhe a beleza de reflexões que se adensam, compondo uma poética plena de magma, plâncton, argila, alargando a experiência da linguagem-pensamento. Em suas atividades de editor (do selo Musa Rara, do Portal Literário Musa Rara) e de criador e curador de interessantes projetos literários, Edson pensa e analisa a poesia. O poeta fotografa o avesso do universo, reconstrói o cotidiano, sente/pensa o texto poético e sua prática. Camadas de dores invisíveis erigem e exploram todos os nomes do infinito. E, entre os vários exemplos da expansão de cintilâncias, a musicalidade do poema "Arabesco":

 

As crianças equilibram borboletas

e planetas.

 

Os homens enxugam copos

com sua dor.

 

As mulheres geram bentos

e arrebentos.

                                        

Gafanhotos devoram os verdes

da paisagem.

                                       

Profetas esboçam desígnios

no deserto.

 

Os bêbados balbuciam coerências

borrachudas.

 

Os poetas cadenciam tudo

o que tocam.

 

A natureza desenha o mundo

em fractais.

 

("Arabesco", Ilhéu, p. 34)

 

 

 

 

Trafegando com desenvoltura por ondas que mesclam tradição e ruptura, Edson Cruz agrupa vários haicais e outros poemas breves numa seção destacada do livro, intitulada Bonsai, em que dialoga, com força de mestre, com a sabedoria do pensamento oriental e com as faces lúdicas da construção poética, estruturando um equilíbrio imagético em que instala e nutre suas próprias interrogações carregadas de lucidez:

 

A palavra dita é uma súmula

da palavra

pe(n)sada.

 

("Koan", Ilhéu, p. 81)

 

No relógio de areia em que investiga suas próprias pegadas, o poeta conhece "a criação de Homero, a eloquência ágrafa de Sócrates / os desenhos de Leonardo / as suítes sublimes de Bach / os píncaros de Beethoven / e seus quartetos de corda / o spleen dos visionários". Mas, sempre alerta às exigências ínsitas ao exercício de existir, grita e escuta um grito rouco — a lâmina do outro, o significado do rosto, a melancolia sensível das vésperas — e seus  "peixes centelham / em ardentia / de cardumes" ("Frêmito", p. 60).

Enquanto o tempo de areia escapa de todas as ampulhetas, uma constelação de sílabas nutre células fatigadas. Engenhos resgatam legiões de anjos, enquanto o poeta persiste, íntegro, intacto, em seu estado de luz:

 

"Um tigre de ternura

com o Sutra do Lótus

em riste".

 

("Buda", Ilhéu, p. 80)

 

 

 

 

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O livro: Edson Cruz. Ilhéu.

São Paulo: Patuá, 2013, 100 págs.

Para comprar, clique aqui ou pelo tel.: (11) 2911-8156

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dezembro, 2013
 
 

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta e ensaísta, autora de A Transmutação Metalinguística na Poética de Edgard Braga (Ateliê Editorial, 2013), Luas de Júpiter (Anome Livros, 2007), Alquimia dos Círculos (Escrituras, 2003), Planagem (Massao Ohno, 1998), Poema sine praevia lege (1993, finalista do Prêmio Jabuti). Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP, é formada em Direito (USP, 1983) e em Música (FASM, 1985). Coordenou projetos de arte e literatura entre 1994 e 1997, na Secretaria Municipal de Cultura. Recebeu em  2006 o Premio Internazionale Francesco di Michele de Poesia (Caserta, Itália). Foi Secretária-geral da UBE/SP e diretora da entidade entre 1996/2005). Participa de diversas antologias no Brasil e no exterior. Gravou com o músico Alberto Marsicano o CD Ressonâncias (poesia), lançado em 2010. Site: http://www.beatrizhramaral.com.br.
 
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