"passa

  o tempo fica

  o rio"

  [Ronaldo Werneck]

 

 

É no fluxo incessante de um rio (que sabe ser todos os rios), nas dobras de um tecido policromático, onde despontam matizes e matrizes, curvas e precipícios, que Ronaldo Werneck colhe o tempo e a dança de sua palavra poética. A coreografia das metáforas, os cartazes-quase-cataguases e o olho em câmara lenta, depurando memórias, desliza pelas camadas que compõem um universo de paisagens reais e intertextuais: a cidade, o estado de Minas Gerais e o mundo inteiro fluem, entreçados, na voz do poeta.

Cataminas Pombas & outros rios (Dobra Editorial, 2012) tem história e memória: parte dele, concebida pelo autor inicialmente em 1977, à época do centenário do município de Cataguases, ensejou um mergulho no espelho da cidade-cenário e, graças à vocação cosmopolita do poeta, retratou e esculpiu, nos passos e pegadas da gente-geografia, as margens-miragens de minas-mundo.

Como afirma o próprio Ronaldo Werneck, em "Filme Infindável", texto introdutório à obra, trinta e cinco anos depois da publicação original e da retomada do "Pomba-Poema" em outro de seus livros, "Minas em mim e o mar esse trem azul" (1999), acrescentam-se à nova edição novos poemas e fotografias, por trás dos quais se desenham "nuvens de palavras, manchas esparsas que flutuam sobre o branco, contrastando em caudal com a lenta cadência do rio, seu mágico mover imóvel" (p. 15). Para completar as experimentações formais, apresenta expressiva variação tipográfica, que decompõe e fertiliza a atmosfera onírica em que habita a poesia.

 

 

 

 

Com o requinte estético de um cineasta/cronista/protagonista que trafega na simultaneidade de infinitos planos, Werneck não fragmenta a palavra, não descolore a força intrínseca de cada sílaba, mas a toma na inteireza e organicidade, enfrentando e explorando sua carga semântica e sígnica:

 

"que é função de rio

passar passar passar

vagar   veloz-vadio

e como um trem o rio

corre ao seu destino..." (p. 56)

 

Sempre afinado, transbordante ou contido, assimila e erige seus próprios paradoxos, ajustando o foco de acordo com a intensidade da presença e da memória. O longe-perto se expressa como uma vitrine. O rio de Heráclito — em suas mesmas e sempre outras curvas — propõe o diálogo com as margens do deslimite.

Suas rotas d'água engendram instâncias melismáticas. O ritmo se marca, às vezes com firmes acentos, na precisão das cadências eleitas. Noutras vezes, o eixo de estruturas polifônicas permite que de cada ideia-palavra se desprendam cachos, entre "caos de fios na paisagem  /  retorcida  /  por peixes de ocasião  /  do plano rio". São lances ágeis que se trançam num mosaico. São faíscas "na linha do sol / o braço firme / pronto o braço isca do acaso / pronta a esperança à espera / do tremeluzir da água" (p. 100-101).

Os rios de Minas trazem aos olhos a abundância das águas — se um retrato se esvai, outro nasce. E Ronaldo Werneck dialoga com o Manuel Bandeira e seu "Rio Capibaribe". Também dialoga com João Cabral de Melo Neto dos "Rios sem discurso" (A educação pela pedra). Itaipu-Cataguases-Cabrália o conduz por pontes e mares vicinais, transportando perfis e afinidades eletivas, compondo um tecido de rica intertextualidade. E relembra Alberto Caieiro, Augusto dos Anjos, Sophia de Melo Breyner, Guillaume Apollinaire.

Nesse diapasão de estranhezas e imprevistas frestas, emerge o poema "quase-quases" (p. 41) em saboroso minimalismo recoberto pelo manto hipermelódico das anáforas e pela valorização de bem construídos jogos fônicos. Rimas internas, aliteração, elementos de predominância melopaica conjugam-se na estratégia poética de Werneck e forjam a singularidade de seu canto:

 

quase-quases

 

quase-quases

quase meia-água

quase meia pata

quase meia cata

quase meia pataca

quase meia pacata

quase-quases

pataca

pacata

pataca

pacata

pataca

quase-quases

pacataguases

 

Alargam-se os avessos, os fios de tempo, entre ruídos e falares em ritornelo. Extensas fermatas contornam o caudaloso rio, este imenso filme em que resíduos anafóricos de concreção e espessura pós-moderna acordam "nos desvãos largos voleios".

Outros rios fluem a partir dos primeiros, sinalizando culturas/amores/temores — Tejo, Tevere (Tibre), Tâmisa, Manzanares, Sena/Seine — nos quais corre(m)/escorre(m) o tempo dos prismas e a força das margens/miragens, pois sempre "vem e vai / um vento / sopra e sai / um som / do sena" (poema "Villas & Minas: Paris", dedicado a Alberto Villas — p. 209-212).

Nesse poema, inscreve minas-mundo no cenário parisiense e entre suas águas constrói polifônica teia poética, entreabrindo sua autogeografia, em que se insere, leitor-crítico:

 

"minas não

minas nos acena 

pequena

que pena

minas nos acena

entre orduras

& culturas

exportáveis

 

mendes drummonds mouras rosas

sant'annas cabrais

nunes lopes clavers

brancos barrosos

prados araújos

ávilas villas & wernecks"

                                                                        

Entre olhos e âncoras, Ronaldo Werneck desfia o fio de água que o transpassa, revisita camadas e curvas de memória, enquanto o desafio do rio contorna suas canções (lied), árias e peças camerísticas. O poeta  fotografa, livre, em movimentos mallarmaicos, pontos de luz e som, num tempo de faróis e epifanias. Jograis e menestréis entoam, entre duas ou três margens, a singularidade de uma voz central, no amplo mosaico contrapontístico da estética contemporânea: um e outro rio — pré-aquático / escultura / de sedimentos / tempo antes do tempo" (p. 49).

 

 

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O livro: Ronaldo Werneck. Cataminas Pombas & outros rios.

São Paulo: Dobra Editorial, 2012, 268 págs.

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junho, 2013
 
 

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta e ensaísta, autora de A Transmutação Metalinguística na Poética de Edgard Braga (Ateliê Editorial, 2013), Luas de Júpiter (Anome Livros, 2007), Alquimia dos Círculos (Escrituras, 2003), Planagem (Massao Ohno, 1998), Poema sine praevia lege (1993, finalista do Prêmio Jabuti). Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP, é formada em Direito (USP, 1983) e em Música (FASM, 1985). Coordenou projetos de arte e literatura entre 1994 e 1997, na Secretaria Municipal de Cultura. Recebeu em  2006 o Premio Internazionale Francesco di Michele de Poesia (Caserta, Itália). Foi Secretária-geral da UBE/SP e diretora da entidade entre 1996/2005). Participa de diversas antologias no Brasil e no exterior. Gravou com o músico Alberto Marsicano o CD Ressonâncias (poesia), lançado em 2010. Site: http://www.beatrizhramaral.com.br.
 
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