R. E. M.

 

 

Fiz uma anotação em algum lugar sobre o menino de camiseta amarela e agora eu não sei onde está. Em que sala do museu eu poderia tê-la deixado? Ele virou a esquina do corredor que dava para o Matisse enquanto eu fazia a anotação e, depois de feita, não sei onde ela está, nem onde o menino está.// Ele entrou no museu para ver a exposição de sabe-se lá quem, um amigo dele, eu estava lá só de passagem. Estava eu de passagem pelo museu enquanto toda a minha vida estava de passagem por mim. Um ciclo, alguns diriam.// Eu não tinha ido à faculdade, peguei meu caderno surrado de primeiro período e fui pro parque escrever sobre o universo. Tentei fazer com que fosse sobre a realidade nacional, mas o universo pareceu mais importante, ainda que fosse o meu universo.// Fiz uma anotação, espera, fiz uma outra, ele não estava mais lá, ele virara a esquina do corredor que dava para o Matisse, ele e a camiseta amarela e aquela inconstância fajuta dele. A fala macia e os pelos só no cantinho do bigode dele. Isso era pra estar na anotação.// O caderno surrado do primeiro período era amarelo também, à sua maneira, era sépia e gasto, olhar para ele me lembrava demais de mim. A anotação estava lá dentro, perdida no meio de pensamentos e memórias desorganizadas, esperando o dia de virarem alguma coisa de verdade. É, o caderno me lembrava de-mais de mim.// Ele tinha ido para a sala onde estavam exibindo arte impressionista e tudo o que eu via era um borrão amarelo, a anotação dizia que era para olhar nos olhos dele e dizer alguma coisa que tivesse significado. Estávamos num museu, como eu iria arranjar algo que tivesse mais significado que aquelas telas de 150 anos?// Na minha imaginação, ele era um quadro de Klimt, nu e coberto de ouro metafórico. Na minha imaginação, a gente fazia amor enquanto Rodin tentava divisar nossos contornos e esculpi-los. Na minha imaginação, ele não tinha ido embora enquanto eu imaginava tudo isso.// Eu tinha ido ao museu já que não tinha dado para escrever sobre o universo no parque. A realidade nacional se impôs sobre mim na forma de marginais rondando as entradas do parque, do calor desgraçado das três da tarde e do aparelho repressor estatal me mandando não sentar na grama. A minha ideia sendo forçada por uma ideia mais tangivel: chame isso de estupro ideológico.// O menino de camiseta amarela tinha sido visto por um dos guardas, mas ele riu depois que eu virei as costas. Eu tirei a anotação do caderno, mas não tinha nenhum indício de página rasgada. O guarda riu de mim, do garoto, da vida ou de nada? Meus pés me levaram para fora antes de perguntar.// Me vi correndo pelos corredores atrás do menino. Capaz de que ele seja um quadro ou uma escultura. Não, eu o teria achado. Preciso tê-lo aqui comigo, agora. O jeito é tê-lo no papel. Vou começar a anotar em algum lugar.//

 

 

 

 

 

 

POST SCRIPTUM

 

 

Sejam bem-vindos à Convenção dos Babacas Neorricos, disse o anfitrião, na minha cabeça. Não estava exatamente ouvindo-o, a única coisa que eu sabia era que o champanhe era bom. Era mais um daqueles eventos em que a gente só vai pra poder encher a cara de terno. Todos ali se achavam comparáveis à elite de Nova York, e eu achava que esse complexo de inferioridade só rolava em cidade pequena, como a que eu cresci. Se tivesse um senhor de óculos garrafais e cabelo ralo falando freneticamente perdido na multidão, estaríamos num filme do Woody Allen.

 

Troquei um papo totalmente desinteressante com um casal de yuppies que parecia ter saído diretamente daquelas reprises de Ghost na TV, o casal neorrico por excelência, que ainda achava que ações eram papo de mesa. Que coisa mais anos 90. Encontrei um cliente e ele prontamente se propôs a perguntar sobre o seu caso, quando seria a próxima audiência, blablablá. Conversando com ele e tentando não me distrair pela fala dele, nem pelo anfitrião que conversava alto numa mesa próxima, percebi a grande lacuna na literatura que me impediu de saber de antemão que, uma hora, a vida simplesmente deixa de ser interessante. Quero dizer, considerando todos os avanços da medicina, eu ainda era muito, muito jovem, mas eu já estava no ritmo de ir a festas para encher a cara de terno, como eu já disse. No ritmo que estava, a vida simplesmente "continuava" e isso estava longe de ser algo bom.

 

Num determinado momento da festa, eu o vi descendo a escada. Aqueles olhos que eu conhecia tão bem, olhos que eu nem cheguei a ver muito mas cuja forma eu conseguiria desenhar precisamente, me olharam sem querer. Eu não desviei, eu sabia muito bem o que viria a seguir e não queria dar a deixa para parecer um acidente. Ele iria me ignorar, claro, como ele fazia há anos, mas iria fazer isso sem a possibilidade de dizer que não me viu. Olhei, sem emoção, como o próprio Anjo da Morte a olhar meu passado caminhar entre os convidados. Eu não me importava, claro, e eu iria até o fim da minha vida com essa opinião.

 

As horas passaram, a festa não dava sinal de que estava perto do fim e eu tinha parado de beber mesmo antes de ficar bêbado, não sei porque. De vez em quando o via rindo com uns doutores numa mesa, parava de rir quando alguém falava algo ou quando todos olhavam desaprovadoramente para alguém que passava. Algumas damas e seus cachorros-bolsa se juntavam a socialites para cheirar coca nos sofás do mezanino. Encontrei uma colega de trabalho e, no meio da minha tentativa de começar uma conversa, tive que lidar com ela dando em cima de mim, provavelmente motivado pelo estupor etílico em que estava. Me perguntei até quando eu teria que conviver com essas pessoas.

 

Um pouco depois da hora do jantar, perto do balcão onde estavam os doces, nos encontramos. Nos esbarramos, na verdade. Ele encontrou meu olhar e pedimos desculpas e tivemos aquele momento realmente terrível em que nos recusávamos a conversar, mas também nos recusávamos a ir embora dali. Eu, mais orgulhoso que Dragão da Independência, quedei-me impassivo. Ele cedeu, e as primeiras palavras que eu ouvia daquela boca depois de todos aqueles anos foram: "o cirurgião-chefe do hospital onde trabalho disse que o brigadeiro deles é de chocolate belga, quer pegar alguns?". Seria anticlimático, mas acho que essa palavra implica em algum tipo de espera que não é recompensada, e dele, eu não esperava nada.

 

Peguei uns dois ou três brigadeiros de chocolate belga e fui para a sacada. Minha colega de trabalho bêbada estava devidamente acompanhada de um cara com pinta de assassino profissional chique, mas que parecia beijar muito bem, considerando o ânimo com que faziam isso.

 

"E então, como está a sua vida?", ele perguntou, na minha cabeça. Não, ele realmente perguntou isso. Ele estava atrás de mim. Ele estava comigo desde que deixei o balcão de doces. Eu não entendi aquilo, mas resolvi ir conforme me apetecia, não tinha mesmo nada melhor pra fazer. A vida dele tinha sido bem ordinária, sim, como ele mesmo decidiu que seria, quando éramos adolescentes, quando não sabíamos de nada. Ele não sabia de nada e isso me irritava. Me irritou mais ainda quando a única coisa que ele soube é que eu não me encaixava no plano dele de uma vida normal e tranquila mas bem, paciência. Acabou me ensinando tanto que um idiota poderia até dizer que ele me fez um favor. Não guardo rancor. Ele se formou em medicina, conseguiu um bom emprego no HC, não tinha relacionamentos estáveis e estava tentando sair das asas dos pais agora que a grana estava começando a entrar.

 

Quanto a mim, estava vivendo de advocacia mas meu espírito livre e ó-tão-não-condizente com ele já estava buscando uma mudança de ares. Disse a ele que nunca tinha deixado de escrever. Ele perguntou se eu já tinha escrito sobre ele alguma vez. Não tinha ponto em mentir já que ele fizera a pergunta sabendo a resposta. Não era algo digno de vergonha e eu não via como ele poderia tirar satisfação disso, considerando o tom em que a conversa estava. Me pareceu seguro, então disse que sim.

 

Tirando isso, ele não tentou tirar satisfação sobre nada como, por exemplo, o fato de que eu estava vivendo na mesma cidade que ele há uns bons anos e ele não saber. Ele sabia que não cabia, que seria hipocrisia. Ele se respeitou e, residualmente, me respeitou nesse aspecto. Eu sabia o número da casa dele de cor ainda, e bastava um clique no computador para mandar uma mensagem para ele, mas não havia nada a ser dito.

 

Começou a ventar forte, talvez chovesse, e já estava bastante frio lá fora sem isso, ao passo que ele sugeriu que entrássemos. Eu fui pegar conhaque pra mim enquanto ele deu uns dois toques no ombro de um senhor, trocou um cumprimento estranho e informal com ele e foi até mim, me guiando por um corredor até um tipo de escritório.

 

Chegando lá, ele tirou o blazer e dobrou as mangas da camisa, mostrando a pele morena sem pelos do braço dele. Ele serviu um copo de whisky para si e perguntou se eu queria, recusei pois ainda não tinha terminado o conhaque. Nos olhamos, e nessa hora, eu pude ver os seus anos, os anos que estavam escondidos na sua ausência de rugas, na sua pele limpa e sem marcas, nos cílios altivos e escuros. Ele estava exausto, obviamente, e eu não fazia ideia de que (senti, na hora, que os médicos que o acompanhavam também não).

 

Não sabia que emoção era aquela, mas ele sempre foi uma esfinge para mim, de todo jeito. "O que aconteceu?", perguntou, a voz falhando. "Nada, não aconteceu nada. Esse foi o problema, na verdade", respondi. Ele se ergueu e me abraçou, o peso dele totalmente contra mim, eu pensando que talvez devesse aceitar o copo de whisky, a cara dele totalmente se enfiando por dentro do meu blazer e amassando meu colarinho. Esse tipo de gesto teria valido tudo o que eu possuía, só estava atrasado uma década.

 

"Sério, o que está acontecendo?", indaguei, um pouco transtornado, um pouco bêbado. Admito que, até para os padrões dele, eu já estava achando toda a cena bem patética. Pedi que me servisse o whisky. "Os anos se passaram e eu não entendi aquilo", explicou. Foi aí que a minha paciência deixou o recinto. Olhei naqueles olhos que eu adorava tanto e disse "Não me venha com essa, você sabe bem o que você fez. Por favor, não ofenda a minha inteligência. Agora, eu realmente acho que eu deveria ir embora".

 

"Tinha um cara, ele morreu na mesa. Semana passada", ele disse. "Sinto muito", respondi secamente. Instaurou-se um silêncio profundo, quebrado às vezes pelo tilintar do gelo dentro do meu copo de whisky. "Como a família dele reagiu?", indaguei. "Eles estão considerando a possibilidade de erro médico. Talvez me investiguem, talvez me processem", respondeu, tentando um tom de indiferença (e falhando nisso).

 

"Bom, no caso de te processarem, você pode me procurar", disse, despreocupado. Minha área de atuação sempre era um assunto que me deixava confortável em conversas. "Eu deveria confiar em você?", atirou. "Nunca fiz nada para merecer sua desconfiança. Nem todo mundo pode dizer isso", respondi na ofensiva. Ele pausou e se resignou: "Você faria isso mesmo?" Revirei os olhos e olhei para ele como se fosse uma criança. Para mim, ele tinha acabado de perguntar se colocar o dedo na tomada dava choque. "Claro, eu sou um profissional". Deixei no bolso do blazer dele um cartão com meu nome, meu registro e meu telefone. "A propósito, esse telefone é o do escritório, só funciona em horário comercial. No caso de você não ligar, vou simplesmente entender que deixaram você em paz. Obrigado pelo whisky. Eu nunca cheguei a beber com você na nossa época", concluí. Ajeitei minha gravata no espelho perto da porta e saí.

 

 

 

 

 

TODOS OS TEMPOS

 

 

Acho curioso como as pessoas falam do "seu tempo". O "meu tempo" era o do Zico, do rádio, do Tamagochi… No "meu tempo", os filhos não desrespeitavam os pais desse jeito, nem colocavam esses penduricários nos lábios ou nas sobrancelhas. No "meu tempo", como não tinha internet, pesquisa só em biblioteca, iPod pra distrair, então, nem se fala… Não sei, acho que não pode ser só isso. Acho… acho que, de alguma forma, todos nós estamos conectados através das eras… de alguma forma, ainda brincamos com os passos que demos um dia e nem sabemos. Isso abre novas e imprevisíveis possibilidades de ser. Ser vários e ser um. Sou um menino com a cara pintada estilo Ziggy Stardust, cheia de raios rosas, do lado de fora de algum clube de Manchester, na fila de um show do David Bowie. Estou passeando por uma rua de Los Angeles e vejo carros de polícia à minha frente, Marilyn Monroe acaba de morrer. Acabo de assistir a estreia de Guerra nas Estrelas, e mudou minha vida. Sou 1989 e o Muro caiu. Estou vendo os manifestantes e uma garota franzina chamada Ellen Allien está me falando sobre essa música que ela estava criando sobre a nova vida de Berlim. O Verão do Amor parece não terminar, estou em Woodstock, Jimi Hendrix está no palco e eu beijo meu parceiro lindo, o Rob, e depois, beijo a Jane, por quem também sou apaixonado. Sou 1977, a Studio 54 está lotada e essa música do Bee Gees me anima muito. Sou 1993, gastei todo o meu salário mas eu não ligo, porque estou com ingresso comprado para a Zoo TV e é amanhã! Sou 1971, um amigo meu põe no som um vinil do T. Rex. A gente fica sem se falar por um tempo, só ouvindo o som, eu achava que estava apaixonado por ele até ele me beijar e eu ter a certeza. Sou 1945 e eu volto para os braços da minha mulher, parcialmente surdo por causa de uma bomba. Sou 1961, fui ver Bonequinha de Luxo e só consigo dormir depois de me masturbar pensando na Audrey Hepburn. Sou 2000 e tenho medo de que os computadores nunca mais funcionem. Sou 1964 e os militares estão nas ruas, ficou mais difícil me reunir com meus amigos para fumar maconha depois da aula. Sou 2008 e Obama é eleito presidente. Sou agora. Sou depois. Sou todos os tempos. O "meu tempo" é o tempo do universo.

  

 

 

[imagem  ©richard söderberg]

 

 

 

 

 

 

Lucas Jardim é manauara, diplomado em ciências jurídicas, contemporâneo do Chemical Brothers e entusiasta de assuntos ligados à filosofia, à arquitetura, à música e ao cinema. Gosta de café, de frio, de bandas pop que tocam em baladas modernas, de filmes na língua original e de cidades — muitíssimo populosas, de preferência. Soma o que gosta com o que conhece e transforma em rascunho. Não pensa nem fala o que deve, então escreve. E escreve na busca por um je ne sais quoi, um Graal que faça limite entre o que vê e o que sente.