OUTONO

 

devagarinho as pessoas vão

deixando a gente

 

e como árvores

a cada doído adeus

entorta-se mais um galho

 

 

 

 

 

 

QUERO DIZER, DE AMOR

 

 

suporto bem a dor

não qualquer dor

física, então, nenhuma

suporto bem só as que eu escolho

com a alma

para eu ir sofrendo conforme desejo dela

 

há dias em que parece que ela esquece

que existe diferença entre suportar e morrer

de amor

 

quero dizer, de dor

 

 

 

 

 

 

MEDO

 

 

preso à saída da porta

com sintomas de síndrome

encosto as mãos trêmulas

no portal

 

sinto o calor acumulado

da tarde no aço fundido

 

quase abstraio

quem sabe mais um pouco

de calor e a dor era alívio

 

vejo a rua turva

escorre do azul profundo

o preço

da paga

do meu sobrestamento

em viver plenamente

 

 

 

 

 

 

*

 

a noite como uma implosão

deixou lembranças

em ruínas

 

tentei dar as costas

e ir embora

 

amanheci o dia

no mesmo lugar

 

com as mãos cheias

de todos os pedaços

que eu deixei sobreviver

 

 

 

 

 

 

SOLIDÃO

 

 

deixem quietas minhas ilusões

algo em mim

não se regenerou

 

é uma ferida crua

e crônica

 

vigio a esquina que dobrei às pressas

— não há ninguém...

 

espalmo a mão nos tijolos maciços

e úmidos

procuro o fôlego

sinto o gosto de barro na boca

a vida grita realidade

a saliva, a ânsia,

a espreita

 

não há ninguém,

desventurado que sou,

importunando meus devaneios

 

 

 

 

 

 

DEVANEIOS

 

espio por detrás das venezianas

— as vistas acostumam-se tão fácil à luz artificial —

que o simples espreitar desprevenido

do que é reflexo da claridade

pela menina dos olhos

num dia de fuga

dos raios de sol

já é uma aventura

 

há um jardim que observo

— é tão meu!

qualquer dia insurjo-me

e vou

usucapir

suas flores

 

 

 

 

 

 

BEM-ME-QUER

 

 

em minhas evoluções passionais

sufoco tanto o dia comum

que ele cobra

um preço que não posso pagar

endivido-me

em cicatrizes

e sentimentos sentenciados

em exageros e uma dor

que nem sei se é mais dor

em uma ausência

que nem me lembro bem

do que é

 

ah! não há tristezas

nem lamentos

no que digo...

 

apesar do corpo cobrado

minha alma transborda fábulas

estão bordadas em meu coração

tantas lembranças

tantos sentimentos

que nem sei do tempo

 

são provisões que deixei

em mim para quando

eu for surpreendido

por um bem-me-quer

que nem sei se terei coragem

de despetalar

 

 

 

 

 

 

SAUDADES

 

com retratos espalhados

sobre a cama

e mãos confusas (são só duas)

sem defesa ou escudo

sobrevivo de saudades

 

aponto as fotos com mordidas de lábios

com toques de dedos perdidos

com o que despejo dos olhos

aprendo que minhas saudades não sabem datas

e vivem em mim de propósito

desorganizadas

 

os quadros de minhas lembranças

misturam-se com as fotos

as cores desbotam-se

revejo momentos

 

aqui cabia um sentimento a ser confessado

ali um silêncio a ser escolhido

ter falado dos sorrisos

dos vestidos

dos abraços

do turbilhão de amor que deixou em mim

 

vivo esse exagero de passionalidades

a que fui condenado

 

devíamos ter descoberto logo

que brincávamos de abismo

 

 

 

 

 

 

 
 
 

POETA

 

 

há certos delitos que hei de viver

e morrer cometendo

se é pra ser marginal

que seja pelos crimes mais doces

se é pra ser julgado

que todos invejem

as minhas contravenções

 

delas

há de sobrar em mim

um coração e uma alma

com provisões de lembranças

que me façam o condenado

mais feliz do cárcere

 

 

 

 

 

 

CONVITE

 

 

ponto por ponto

num ato difuso

queria tanto adivinhar

o dia de amanhã

não as páginas policiais

nem as loterias

bastava saber se tu ririas

para mim

 

como me basta agora respirar

e saber escura a noite

e que tu dormes

 

imaginar o desalinho dos teus cabelos

vais acordar e pensar em mim

que eu sei

vais sorrir

que eu sei

vais procurar na parte oposta do leito

um cheiro meu

 

queria adivinhar se em outros amanhãs vou completar

a parte em que és tão minha hoje

 

 

 

 

 

 

PRENÚNCIO

 

meu silêncio agudo

e profundo

antes querido

agora...

 

hoje a primeira visão

: um abismo

com os pés no chão

uma cobrança que não estou

pronto para pagar

entreguei tanto meus

tantos pedaços

sobrou tão pouca coragem

que até para escrevê-la aqui

: espreito

trouxe meu alforje

com os objetos que me causam alento e resguardo

um punhado de lápis apontados

folhas em branco

poemas que fiz para dar às moças

que lhes provocam

risos ou espantos

pétalas de flores que ganhei

outras que ofereci em vão

deixam perto de mim um cheiro bom!

um vento sopra as minhas asas

tenho extensão suficiente para um rasante

 

 

 

 

 

 

SINTOMÁTICO

 

 

minha ausência da janela

com o ranger das dobradiças

ando fugindo dela

 

hoje seu barulho

foi um acaso

: as tramelas descuidadas

 

vi o sol deixando o dia

tudo virou um borrão amarelo

 

dei as costas

ando mentindo até para

os encantamentos mais simples

 

 

 

 

 

 

DA TUA HISTÓRIA

 

 

ah! tu sabes bem

que sinto falta

do teu sorriso

tua birra

tuas manias

tua dança

teu cheiro

tua festa

tua sina

tuas cismas

tua rua

tua lua

tua ironia

tuas promessas

tua nudez

tua timidez

teu bocejo

teu medo

teu luto

tua luta

tua rima

 

na poesia que faço

visto as vestes que me destes

e roubastes depois

com tua trama

em tua cama

tua folia

tua alegria

tua raça

tua pirraça

tua arruaça

tua taça

teu brinde

tua fuga

 

tu não voltas

e eu fico em volta dessas

relíquias

 

se eu rir

é da saudade mais bonita

 

 

 

 

 

 

SUSTO

 

fecho os olhos

pretendo o silêncio

mas não demora muito

 

atiram uma pedra

no meu telhado

tão bruta!

deve ser o Pedrinho

ele ainda não está

em idade de entender

o silêncio

 

interrompeu-me nascer

mais uma alma

 

 

 

 

 

 

PARTIDOS

 

 

No afago de ontem, a profecia. Era o último afeto que ela lhe daria. Na face dele, as linhas duras do rancor. A dor e o orgulho de quem não moveria um só músculo para conceder clemência.

 

Ele, o vazio. O suor entregava-lhe a aflição que ela tanto conhecia. A camiseta colada ao corpo e a sensação de evisceração. Ela, a mágoa. Suas mãos pequenas agarravam-se firmes nas alças da bolsa, como se buscasse equilíbrio e postura.

 

Ele a olhou caminhando na direção oposta. Tão miúda! Não conseguia conciliar na memória o motivo de sua partida.

 

Olhou para o sol até não suportar mais. Voltou a olhar para ela. Era só um vulto disforme enfeitado de vários tons de sol.

 

 

[imagens ©istvan sandorfi]

 

 

 
Luciano Lopes (Brasília/DF). Poeta e servidor público. Tem poemas publicados em alguns blogues e edita o Quando você me olha, eu existo tanto!. Publicou  Trabalho de Carpintaria, com o pseudônimo de Lupi Lobo (produção independente).