nunca está pronta

 

1

 

fiz-me tantas perguntas, minha boca secou

 

a pergunta, vício que não abranda

como sucede aos drogados, chamo-me doente

 

fugir é verbo bem do meu vocabulário

de ações, estive possesso — um fútil qualquer

 

prefiro ter frio a ser frio?

não vou mais à praia, não passeio no Baixo

não viajo legal, não bombo no Face

 

acabo de sacrificar minha tinta

aqui

o do zine xerocrático

aqui

o fazedor de produtos culturais

 

calor sai de mim ao mesmo tempo me entra pelos poros

 

por vários motivos

a cada dia, mais bonito

por estar mais bonito, reparo bem

as pessoas me tratam melhor

 

faço as perguntas

não pensar, a pior morte

vulto a se esgueirar por entre túmulos

faço as perguntas

pra entrar com minha opinião

faço as perguntas

 

o enredo é secundário

o close vai na miséria humana

 

 

2

 

nem mesmo se gosto de olhar a chuva

 

choro — nada no mundo é uma resposta

 

chuva no verde escuro da mata

e o musgo em meus olhos

 

chuva sem parar sem parar

sem parar quando existem tantas outras palavras

com as quais se dizer adeus

 

vê, vão os carros, cardumes

e é só minha a culpa se me afoguei dentro de um peixe

 

às vezes ser bueiro pra vozes empoçadas

outrora esculturas de meu fôlego

 

se o frio é o meu país (direito, dever)

na primeira oportunidade

trairei a pátria

 

 

3

 

sob o sol

fazer com fúria

 

limparentrar no chão com o olho

mas só vejo o que se mostra

 

nada mais terrível quem morreu de quem

pobre criatura de Deus e

o sangue a pingar de seus afagos

 

fazer mais uma vez a alegria

com dinheiro, sucata ideológica

franja na testa do búfalo

feridas o seu esôfago

 

tudo vira sopa

dinheiro, animal roxo de espasmos

animal aberto de gritos

peito de cimento

 

ser feliz na fúria, diz o juiz

a me extrair as unhas dos pés

 

chacoalhar lugares insuportáveis

se acordamos pra voltar a fazer

cópias mal feitas de nós mesmos

 

em minha mente

esta completa mentira se agarrou

 

fazer a alegria e

preservado reformado limpo o tempo todo

nada é mais ruína

 

complexa criatura sem Deus de Deus

 

qual a minha opinião?

nem mesmo o que se mostra na

engenhosidade analítica

 

quais os meus desejos?

coisas de mentira

pra com violência colocar em você

 

a minha fé, qual?

de extremo, só a delicadeza

 

ah a alegria nunca está pronta

 

 

4

 

trata-se da plena luz do meio-dia

que teus passos ilumina e cega

ferindo os olhos como fosse

o shampoo que Deus

derrama sobre a Terra

 

assim segues pelo caminho

cascos de cavalo

a pisar o piano

das pedras escorregadias

 

 

5

 

confesso-me aos destroços da manhã

 

por paixão a gente se recolhe

não sei se é uma característica feminina

sinto-me... feminino

 

minha existência inteira ao pé do seu ouvido

um segundo diante do fogo existe

e só aqui a vida não é barata

 

também as áreas escuras da raiva

não houvesse nada mais que não pudesse sofrer além

 

vejo um abraço se jogar do décimo andar

começo a andar pra trás como eu andasse pra trás

 

frase a frase, quero ir aos vários lugares que houve

quem garante que ao final do

incessante e fadigoso jogo de máscaras

surgirá enfim o esplendor de um rosto?

 

por delicadeza a gente se recolhe

 

vai, busca no freezer um pacotinho conceitual

mete no microondas e almoça

 

 

                   6

 

minha mão, a que escreve (selvagem)

mas aí a artrite reumatoide a devagar com a louça

 

quero tanto o teatro, o teatro deforma

a atriz inteligente leu minha orelha

mas o eu mesmo está no estômago

 

a pergunta da menina ignorante da

plateia foi meu mestre onde você

sentiu tantas palavras para chegar no seu livro?

 

de impossibilidade em impossibilidade

fazemos caras de leve

mas a bolsa carregada de certezas teimosas pesa

e a alça a nos lanhar os ombros

 

vou sem chão, meu amor está desidratado

 

não espere de mim a metáfora do deserto

antes o clichê do mar

 

ah o mar

tenho uma bóia salva-vida

meus dedos são canivetes

 

 

 

 

pra fazer dança

 

1

 

este ano vou dar tudo de mim

já estou dando desde o primeiro dia

 

sou um trator com coração

sei sofrer e voltar pra curtir

fazer é minha fé

 

já disse antes e digo de novo

o domador

jamais saberá dançar

 

já disse antes e digo de novo

odores por baixo das roupas

odores por baixo do desodorante

por baixo dos sabonetes

os odores nos deixam lobos

 

já disse antes

sou cordeiro? destripa-me

 

disse

estou fazendo outro

corpo deste humilhado

 

já disse

estou indo aonde são gritadoras

as deidades da beleza

estou engendrando danças

que ainda nascerão

 

ah malfadadas as formas sem poesia

nem nunca se viu nenhum velório no poeta habitado

 

já disse antes

a alegria nunca está pronta

 

quem vive de quem? tudo de mim

 

 

2

 

toda fragilidade é na primeira pessoa

 

dança o meu esforço pra bicho de estimação, sou indomado

 

é sobre um coro de bêbados também

 

dar urgência não dá espaço pra escolhas

a beleza na minha frente intercala

sofreguidão e a mais mornamacia das ações

 

dançar senão o parabéns aos Hércules que fingem suportar

dançar senão o deixa a tristeza escorrer

 

que alternativas tenho?

reinventar o solo na poesia é erro

e os que sorvem catástrofes qual sorvetes sorvessem

 

e o corpo começo do meu texto meu nome completo

ruína

 

 

3

 

escutar coxas queimar a orelha nelas

agora vou para cima do abraço

e então só com os olhos com os olhos entro nos seus

 

lá embaixo os pés

meias atrapalham os pés se viram até nus

dançarem no ar

e nem é sobre você o que o ar é a partir

 

você respira

sai de mim respiração também que quer

deitar na fala quando você fala

medo que agora está em pé

 

pra diminuir seu medo

minha ideia era amputar-me

mas quem como abraçar?

 

para diminuir seu medo

minha ideia era dar os olhos de comer a terra

 

não sou bom de ideias, das ideias

já você, vai melhor

respira e a beleza construindo o espaço

você se mexe pouquinho e já quero assistir

(assistir no sentido de ajudar)

 

 

4

 

quero ter esta fé

de que vim ao mundo

para me despir

não para me vestir

 

todos os nossos pertences

no meio da rua

o que são os preços

para quererem tocar o ar?

 

invocações das dimensões

incógnitas da vida

venham para mim

 

eu sou louco

quero atravessar objetos

quero dançar com você

 

 

5

 

nesta cinza molhada gelada

horrível manhã curitibana

parece que tudo quer e vai morrer

(se é que já não está morto)

 

mas não eu

eu estou aceso

 

 

6

 

danço pra poder trabalhar descalço

qual a minha opinião?

pra cima do abraço, é o que digo

ou minha ideia era amputar-me

e ver como o corpo se vira

 

a gente faz o que faz

pra continuar vivendo

atração se tem pelo outro

e quem vive em algum momento quer morrer

 

o que sem escutar as coxas

queimar os cabelos nas faíscas do chão

e o olho

só com o olho (não com a visão) entrar na terra

 

faíscas poros do inferno

onde as tais portas da percepção?

mesmo estas só separação

e barulham com o vento burras quanto ninguém

 

ou a vida é um arquipélago de amor atormentado

 

entender é dominar? entender é dominar

e o domador jamais saberá dançar

 

danço

a meia atrapalha, agora não

danço a sala

danço

e nada é tão grande quanto o passeio

em que dentro do próprio organismo

danço

me faz suar ou coisas de mentir

também vem na primeira pessoa

 

medo a gente tem do outro

a cabeça é um bicho

e temo ser o monstro que sou

 

não porque estou em queda

vou me precipitar

 

ir pra baixo dos lugares insuportáveis

se minha ideia foi dar os olhos de comer a terra

se fico só na idéia não sou bom de ter idéias

 

na ação nem nada é sobre mim, mas a partir

respiração que quer deitar

horrores estão em pé

 

danço o que suar e nunca mais tinha me lembrado

da gravidade sobre a terra

 

bem pouco é organizar

mais é organismar

e a beleza vai me fazendo a beleza o espaço

construído pelo corpo como eu pudesse me assistir

(de ajudar)

 

nu toco melhor o ar

dança o tempo nos corpos ou ontem morrerei

 

 

 

 

 

 

apenas que não estou pronto

 

 

1

 

apenas que não estou pronto

é uma questão de retórica, diz um inteligente

 

como posso querer estudar se à mesa do bar

a filosofia passa de boca em boca

feito um copo de cachaça barata?

 

e os amigos, talvez um dia

sobre mim

morreu naquela espécie de verão

 

não estou pronto

o que aprendi veio das aulas de inutilidades

 

fumo meu charuto

baforo

pássaros de fumaça

 

a biblioteca tosse seus clássicos universais

a agônica papelada herdada de meu avô

 

penso em não estou pronto, amor

pra sob a chuva adentrar o bosque verde musgo

 

mas vou

jardineiro de livros, vou até a cozinha

as frutas amadurecendo

hoje não me apetecem

 

suas mensagens

chegam pelo celular

facadas de afagos

 

atente pro rastro do homem-gosma

e vai saber onde cheguei

(se é que cheguei)

 

gostava de ser suas coxas

pra fazer inveja às outras moças

 

as frutas

se soubessem que apodrecerão

bem antes implorariam socorro

come-me, por favor

 

não estou pronto

a cinza chuva me venera

e a neblina cria esconderijos no ar

 

 

2

 

sou seu como o osso é do cachorro

ou melhor, é confortável a parte azul da fogueira

e abelhas virão fazer mel em você

cavalos marinhos, respirá-la

e bem-te-vis lutarão contra morcegos pra protegê-la

 

sou seu como só mais uma é do viciado

ou o frio são pregos inquilinos de meus olhos

e você os toca com os dedos mornos, não da esperança

mas disso que um dia chamarei tecnologia do afeto

 

ah a nudez, o nariz, a língua, a canção popular

(sempre a canção popular)

e a irreverência que beira a promiscuidade

 

eu disse

às vezes queria ser um bueiro pra

engolir chuva quando chuva desaba

 

você gozou no meu coração

e eu achei que o mundo era bom

 

às vezes acontecem dias perfeitos

e agora

que tudo o que foi carícia virou casca

e agora

que tudo o que foi carícia

virou casca que tudo o que foi carícia

 

 

3

 

mais dengo que dentes

 

melhor se descreve o que se tem perto dos olhos

(façamos com sentimentos)

de longe, inventa-se mais

(bom pra literatura, não pra cotidianamente com saúde)

 

posso rir das gaiolas, me fiz numa delas

 

os dois somos falatório

os monólogos, coletivos

 

estou dançando com você a valsa das pegações

já fiz das tripas coração, agora aprendendo a pensar

 

e o amigo politizado

tudo culpa da besta capitalista

(ah o querido amigo, sua ração a ideologia)

 

se estou em guerra, vencendo pela via do afeto

(pega, esta frase o meu currículo plágio combinação)

 

nem sei se sou um homem ou se um corpo de neblina

chegou o inverno, não ouço canto de cigarras

 

amanhece... uma espécie de ressurreição

até para os vampiros

 

 

4

 

posso querer esquecer

mas se esquece por aí

mais facilmente

guarda-chuvas que amores

 

e se esquece infinitamente

mais canetas que guarda-chuvas

 

mas não eu

eu sou o melhor em encontrar canetas

pra gastar tinta sob a chuva

 

posso querer esquecer

só que escrever é lembrar do futuro.

 

                                                         

 
 
 
 
Luiz Felipe Leprevost (Curitiba/PR, 21/03/1979). É formado em artes cênicas pela CAL (Casa de Artes de Laranjeiras/RJ). Escritor, diretor teatral (Cia. Teatro de Geada) e músico. Produziu poemas, contos, novelas e dramaturgia. Autor do romance E se contorce igual um dragãozinho ferido (Arte e Letra, 2011). Também publicou os poemas de Ode mundana (Medusa, 2006). E os livros de contos Inverno dentro dos tímpanos (Kafka Edições, 2008), Barrasantipânico e barrinha de cereal (Medusa, 2009) e Manual de putz sem pesares (Medusa, 2011). Integra as antologias de poesia Roteiro da poesia brasileira, anos 2000 (Global Editora) e Peso Pena (Black Demon Press). Poemas de sua autoria foram publicados na revista Coyote, número 20. Tem contos publicados nas revistas Arte e Letra, Jandique e Lama 1 e 2. Entre peças teatrais encenadas: Hieronymus nas masmorras, O butô do Mick Jagger, Na verdade não era. No momento trabalha em sua nova novela, Dias nublados. Vive em Curitiba. Bloga em www.notasparaumlivrobonito.blogspot.com.br.
 
Mais Luiz Felipe Leprevost na Germina