*
 
carecia bosque
correto
que divagava na cela
 
(e sente)
heresia infante
sem
 
vasos refúgio
centenas de virgens,
cem coisas
 
quedando ter poucas:
absinto, grapa
deglutindo-se em porquês
cem cores
hedra
pão?
aparece o tempo
somos
vida no crítico vitral
 
 
 
 
 

*
 
cão sem dentes
vaga
onda estéril
em babas amarelas
 
dom sem entes
caga
gôndola fértil
em casas singelas
 
rio sementes
placa
trêmula erétil
em plagas vielas
 
por parentes
fuga
coma têxtil
em lúgubres panelas
 
 
 
 
 

*
 
gomos de tangerina úmidos
atravessam
céleres, suaves, céleres
céus chumbo imbuídos
de dor
 
enquanto as torneiras secas
insistem
prestes, côncavas, prestes
mel plúmbeo ressequidas
de cor
 
passeiam juntos soltos
separadamente
cansam, cantam, cansam
cruéis glúteos entretidos
de amor
 
 
 
 
 

Água sobre Niterói
 
Desde o batismo, água.
Água para lavar.
Água para cozinhar.
Água para sarar.
Água para marcar.
Água para apagar.
 
Desde o seco tempo:
a espera da água.
Água para plantar.
Água para crescer.
Água para comer.
 
Muita, mas, água.
Água sobre o lodo.
Água sobre o lixo.
Água sobre barracos pendurados no ar.
 
Água que enterra.
Água que soterra.
Água que não limpa.
Água que afoga.
 
Água para lavar a
culpa dos que permitem
lixo,
lodo,
barracos pingentes no ar.
 
 
 
 
 

*
 
imploro flora que cubra
abra fibra rubra
cloro, deixo
claro
 
e paro
 
sonhando com antever
de sua existência dor
calor, queixo
gozo
 
e leio
 
sem controle
risca ou freio
sem parâmetros
de corredor
 
 
 
 
 

Desejo
 
Oscilar entre o desejo e o pensado
tarefa de todo dia, enfrentamento pesado.
Dizer não para a fome, gritar sim para o trabalho,
correr do sono gostoso, fugir do vinho, baralho.
 
Amar uma pessoa só, fechando os olhos para as outras,
estancar beijos ferventes, amparar-se em pernas frouxas.
Perseguir contratos e regras, assentir a mandamento.
Divertir com o que não tem graça, manter o contentamento.
 
Incomodar-se com o voo alto das ideias soltas,
sem deixar que alcem, incômodas e revoltas.
Fincar o pé no chão, cada vez mais firme e duro,
parecendo sereno, feliz, como esperam do maduro.
 
Dia não, faço as malas desse universo da razão,
apanho a mulher primeira, tasco-lhe um beijo de paixão.
Escrevo só para deleite, da ideia não corto as asas,
saio saltando em poças, voando alto sobre as casas.
 
Viver só de desejo, sem distinguir o pensado.
Pensar só o querer.
Querer só o desejado.
Num lugar leve e sagrado.
Meu coração cansado.
 
 
 
 
 

entre ver
 
à distância
de perto
de dentro
de ver
o
de entre
ver
entre
o
ente
do
ente
dentre
o
ventre
vem
entre
 
 
 
 
 

*
 
As bicicletas surgiam velozes, sem pilotos, montadas por poemas
fugidios, que se espichavam até a lua.
Serena, impávida, branca e perene.
Derramava-se nos selins, escorrendo e pingando
favos de mel e parrudos bagos de poncã.
 
Ao distante do caminho escuro, ouvia-se o
tom pífio e quase sumido de uma flauta longa.
Prata fria envolta no calor do assopro,
que balançava os cabelos ruivos
por trás das nucas, nunca vistas nuas.
 
Endireitando-se com o pé firme nos pedais
melodiosos, um dos poemas voltou a cabeça para frente,
fincado e dolorido.
Gemeu?
Dele, não sei, pingaram ao menos quatro gotas de saliva
amarga e uma redonda de melado marrom.
 
Entre os dedos, platônicos, três corações
unidos por uma só veia cava.
O descompasso das batidas
combinava com a velocidade da corrente
dos pedais das bicicletas,
desaparecidas entre as nuvens plúmbeas
encharcadas.
 
 
 
 
 

*
 
não fosse esse espesso
silêncio que me afoga
diria palavras melhores
faria dias maiores
sonharia felicidades brancas.
 
não há tempo entre
palavras suas,
ainda que breve.
as pedras das letras caem
pelo chão com estrondos
surdos e me emudecem.
seu eco cessa rápido,
como seca a terra quente
que recebe chuva leve.
 
só, mas só,
não há comos,
nem tempos, ou nada,
senão um mergulho fundo
sem volta, nesse
espesso silêncio em que
me afogo.
 

[imagens ©erik johansson]

 

 

Marcos Fava. (Osvaldo Cruz–SP). Graduado em Letras e em Direito, é Mestre e Doutor em Direito do Trabalho. Juiz e professor em São Paulo–SP, tem vasta produção bibliográfica nas áreas jurídica e literária.