[ guinevere van seenus em foto de sølve sundsbø ]
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

O HOMEM DOS SETE INSTRUMENTOS

 

 

Lá vai o homem dos sete instrumentos

Tirando o melhor dos seus talentos

Ninguém sabe quem foi seu mestre

Mas todos reconhecem o seu poder.

São sete instrumentos geniais:

Um para guiar cegos ladeira abaixo

Outro para ter olhos e não ver nada

Um para lutar por uma causa justa

Outro para vender a alma por ela

Um para ler a sentença dos otários

Outro para testar a fé dos missionários

Um para derramar o sangue do inimigo:

Chuva ácida sobre o pomar antigo.

 

 

Lá vai o homem dos sete instrumentos

Dizem que um dia ele já soube amar

Ninguém duvida dos seus talentos

Mas todos sabem para onde ele está indo

Com seus sete instrumentos geniais:

Um para rasgar todos os tratados

Outro para afiar a espada de Dâmocles

Um para desafiar os elementos

Outro para praticar mergulho no Letes

Um para cortar a outra orelha de Van Gogh

Outro para invocar Gog e Magog

Um para vazar os olhos da bondade

Quando for preciso garantir sua metade.

 

 

Lá vai o homem dos sete instrumentos

Dizem que é primo do flautista de Hamelin

Mas só de longe parecem ser ratos

Aqueles que se afogam com ele

Quando toca seus instrumentos geniais:

Um para fazer o circo pegar fogo

Outro para rir da tristeza do palhaço

Um para dinamitar estátuas de Buda

Outro para subir nas costas do enforcado

Um para atirar a primeira pedra

Outro para raspar a cabeça de Madalena

Um para bajular o self-made man

Na hora do vamos ver quem é quem.

 

 

Lá vai o homem dos sete instrumentos

Parece muito bem embora esteja preocupado

Pois as coisas não andam bem em casa

Sua filha não fala mais com ele

Nem quer ouvir seus instrumentos geniais:

Um para fazer chover em sua horta

Outro para mostrar quem está no comando

Um para fechar grandes negócios

Outro para ser o homem do ano

Um para matar o último moicano

Outro para não atirar no deputado

Um para merecer a grande medalha

Que incendeia o peito de um canalha.

 

 

 

 

 

 

O GOLEM

 

 

Interpelo

Esta sombra

A contrapelo

 

Do escalpo

Ao cerebelo

Me rebelo:

 

Como quem sente

Gelo nas veias

Te chamo vento

Deus das areias

 

Como quem teme

Saber o que ousa

Ser sem ouvidos

Me chamo coisa

 

Ouve essa voz

De lâmina cega

Essa faca atroz

Atrás do que nega:

 

— Podem os pedaços

Deixados no caminho

Plasmarem outro ser?             

                  

— Fruto constelado

Que ignore a queda

E assuma seu aço?

 

— Quem seria a serpente

A voar entre as dunas

Feliz em suas plumas?

                                                                

— Lembraria do barro

Que o pariu na estrada

Esse gêmeo do nada?

 

A sombra me nega

Seu verbo e se vai.

 

Afundo lívido em

Meu álibi:

 

Alívio de quem

Nada sabe.

 

 

 

 

 

 

ELA ESTÁ MUITO BEM AGORA

 

 

Ela está muito bem agora

O corpo pacificado

E o coração em pedaços

Muito além de toda retórica.

Foi um longo caminho, ela diria,

Caso houvesse um podium

E flashes afogando o ar em sua volta.

Ela só está vivendo o seu momento

Convertida em sumos ácidos

E proteína para as rotativas.

 

Se houvesse algum amante distraído

Que incensasse sua fronte de delírios

Ela deslocaria o eixo do mundo

E desmontaria a rosa dos ventos

Mas ela já não pensa em mais nada.

 

Investida de poderes genuínos

Vertidos do calor de suas espáduas

Ela apenas ri seu sorriso de água

Mais mortal que vinte mona lisas.

 

E apesar dos que se perderam na chuva

E do sangue nas mãos dos justos

Ela segue em frente

Com a alma em quarentena

E a bandeira branca do seu corpo

Hasteada acima de todos os insultos.

 

 

Ela está muito bem agora

Semeada por mil bancos de praça

Feroz adolescente acorrentada

Executiva dos partos clandestinos

Amante milenar das escrituras

Pitonisa rupestre

 

Meu amor

Sozinha em casa

E para sempre perdida.

 

 

 

 

 

 

PARA UMA GRANDE DAMA

 

 

Os olhos verdes

da atriz pornô

 

quando dançam fora de órbita

disparam no céu incolor

 

lampejos

de uma arte rara

 

flashbacks

de tragédia grega

e teatro nô

 

sacerdotisa fast-food

a preferida do imperador.

 

 

Os olhos verdes

da atriz pornô

 

são duros como

os olhos da virgem

 

não cabem

no discurso marginal

 

sua obra é sua moral:

pura vertigem

 

 

Os olhos verdes

da atriz pornô

 

anulam toda teoria

longe das luzes & olhos vorazes

despem as lentes verdes de contato

e encaram nus a luz do dia.

 

 

 

 

 

 

DESSA NOVA ESPÉCIE DE VELHICE

 

 

Dessa nova espécie de velhice

Onde o cinismo dava as cartas

Estava farto e por isso me disse:

Se é assim aqui me dispo disso

 

Sorvi a seco o travo e fui em frente

Supondo legiões em meu encalço

Mas apenas o silêncio me alcançava

Ignoravam meu ousado passo?

 

Mal me vi nu de ossos ao vento

E ainda a meus traços apegado

Deixei que a fome fizesse o balanço

Roendo o saldo até o bagaço

 

Por fim do fel desses escombros

Emerge uma presença sem alarde

Menos ou mais que mera sombra

Sob um sol sem sal que já vai tarde

 

Se hoje me tenho como sou

E às vezes o que sou me paralisa

Com surpresa recebo esse temor

Sem ódio, mas também sem amor.

 

 

 

 

 

 

TIGRE

 

 

um tigre

dentes de sabre

um tigre

dentes de sobra

um grrrrrr

e mãos à obra

um ssssshh

quase de cobra

um velho e ainda tigre

de bengala

ex-tigre) tinto

quase banguela

um triste tigre

e seus três

dentes de sábio

sobressalentes

silentes como

ridente dantes

flor

esta

 

 

 

 

 

 

OS KAMIKAZES DO AEROSOL

 

 

Os kamikazes do aerosol riem de tudo:          

 

do morto esquartejado suburbano

fatiado sobre o carro do ano

 

da namorada exposta de pernas abertas

que um escroto ex dinamitou via internet

 

do velho travesti e do conquistador barato

traças roendo o social contrato

 

(god save the queen, gargalham as baratas

viva o imperador, farfalham os cupins

só o mercado salva, ladainham os ácaros)

 

 

Os kamikazes do aerosol riem de tudo:

 

dos novos tribunais da inquisição

e do martírio de São Sebastião

 

da trajetória das balas perdidas

até que elas lhes achem as vidas

 

dos militares e paramilitares

e esse pendão arrancado pelos ares

 

(navegar é preciso, gemem as baleias

encalhadas

here comes the sun, riem amarelo os tigres

desdentados

nec spe nec metu, latinizam os elefantes

martirizados)

 

 

Os kamikazes do aerosol são peças raras

riem de tudo e nunca mostram a cara

vão tão fundo no afã de seu esguicho

que nem no lixo conseguem ser bichos.

 

 

 

 

 

 

A ÁRVORE DE JUDDAH

 

 

Dizem que Judas enforcou-se

No galho de uma árvore

Depois de trair o Mestre com um beijo

Para que as escrituras se cumprissem

E pelo sangue pudéssemos ser salvos.

Redimidos, esquecemos de perdoar

Esse cordeiro da revolta.

E assim ele não ressuscitou dos mortos

E nem Dante chorou por ele

Ao encontrá-lo ao final de sua jornada

Repasto da ira remoído a frio.

Seus pés balançam ao vento até hoje

Em algum lugar na mente dos justos

Enquanto contam as moedas ganhas

Com o suor honesto de seus rostos

Na guerra santa de todos os dias

Onde se marca a face do próximo

Com armas mais sutis que beijos.

Abismada com esse fruto estranho

Que dorme ao calor de sua seiva

Uma noite interna sem futuro

A árvore de Juddah se desvela

Para nutrir seu cadáver maduro

À espera da estação certa

Onde o podre resplandeça em puro.

 

 

 

 

 

 

HOMEM COMUM

 

 

Para o inglês W H Auden

escrever poesia era lembrar a si próprio sua condição, 

porque antes e depois do poema não tinha tanta certeza

de ser poeta.

O brasileiro Ferreira Gullar diz que só às vezes

 é o poeta Ferreira Gullar. Ou seja,

 nos momentos em que o clarão do poema

ilumina sua face.

O galês Dylan Thomas vociferava seus metros

direto no ouvido de Deus,

segundo ele próprio, para a glória de Seu nome

e em louvor do Homem.

Quanto a este que afirmam ser eu,

é só mais um homem comum,

vergado ao peso da coragem que inventa.

Comum, quando as engrenagens do

poema rangem dentro de seus ossos,

ao ponto em que é preferível escrevê-lo,

embora nada no mundo dependa disso.

Comum, quando por dentro tudo é deserto,

e ele se perde na multidão,

que também disfarça

e espera. 

 

 

 
 
dezembro, 2013
 
 
 

 

Fernando Abreu. Maranhense de São Luís, mas viveu na cidade de Grajaú, no interior do estado, até os 13 anos. Durante cerca de dez anos editou a revista de poemas Uns & Outros, ao lado de outros integrantes do grupo Akademia dos Párias. Tem três livros publicados, sendo o mais recente Aliado Involuntário (Exodus, 2011). Antes vieram Relatos do Escambau (Exodus, 1998) e O Umbigo do Mudo (Clara Editora, 2003). Como letrista, tem parcerias com Zeca Baleiro, Nosly, Chico César, Chico Nô, Junior Aziz, Neto Peperi e Gerson da Conceição.
 
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