©maria lemos
 
 
 
 
 
 
 
 

MAU PRESSÁGIO

 

 

Dona Elza pôs a mão no peito e gemeu baixinho. Mas não tão baixinho que Inês, a filha mais nova, não pudesse ouvir.

— O que foi, mãe? — indagou especada na porta que dava para os fundos da casa.

A mãe estava estendendo roupa no varal e largou o balde cheio de roupa no terreiro e voltou para dentro de casa. Passou pela filha sem responder e deixou-se desabar no sofá.

— O que foi, mãe? Insistiu Inês. — Está sentindo alguma dor?

— Não é dor, e suspirou fundo.

— Ai, a senhora me mata de susto assim!

— Foi um aperto no peito, sabe?, um mau presságio. As suas irmãs...

— Ah não, mãe, para com isso. A senhora tem sempre esses maus presságios e nunca acontece nada. Mania da senhora de ficar se preocupando. Só porque as duas vivem longe daqui a senhora fica tendo essas coisas.

— Pega um copo d'água pra mim.

Inês saiu e voltou com o copo d'água.

No seu rosto jovem não cabiam ainda essas preocupações maternais. As irmãs estavam longe, na Espanha, vivendo a vida delas, enquanto a mãe ficava ali, martirizando-se de preocupação. Com ela a mãe jamais se preocupava. Nunca teria um daqueles maus presságios em relação a ela. Por isso sonhava também em ganhar o mundo. Um dia ia sair por aquela porta e dizer adeus para a mãe, caminhar até o final da rua, dobrar à esquerda, depois à direita até a parada de ônibus, e daí para algum lugar no mundo, de preferência na Europa, como fizeram Íris e Isabel.  Ia dar uma banana praquela cidadezinha de merda no interior de Goiás e ganhar o mundo.

— Não seja tonta, dizia sempre a mãe. — Você não tem cabeça pra enfrentar o mundo. Vai ficar aqui, cuidando de mim.

— Melhorou, mãe?

— Sim, já estou bem, e levantou-se escorando na parede.

— Tem certeza?

— Absoluta. Foi só uma vertigem. Pode voltar pro que você estava fazendo.

— Eu não estava fazendo nada, só estava vendo televisão.

— Mas devia estar fazendo. Tem roupa pra passar.

— Não gosto de passar roupa.

— A gente não faz só o que gosta. Faz o que é preciso fazer.

— Um dia ainda vou fazer só o que eu gosto.

A mãe virou as costas para a filha e deu a ordem em tom de sentença irrevogável.

— Passe as roupas que estão sobre a cama e pare de conversa.

Foi nesse exato instante que Inês ouviu, vindo do televisor, o âncora do Jornal da Tarde anunciando, em tom de tragédia, o atentado a bomba no metrô de Madri.

 

 

 

 

OLHAR

 

 

A vida é mesmo muito sinuosa. Assemelha-se (pelo menos a imagino assim) a uma cidade cheia de esquinas abruptas, que sempre nos levam a deparar com o inusitado, com um cenário sempre novo. O que vem em seguida nunca pode ser prenunciado. Sua presença, que irrompe do nada, exige de nós o improviso; há uma partitura, mas, como no jazz, há sempre essa possibilidade do improviso, da apresentação solo, o ter que se arriscar por conta. Uma aventura que se inicia ao acordarmos e só finda ao dormirmos, e mesmo assim parece prolongar-se no sono, mais especificamente no sonho. 

Dobrei uma dessas esquinas e deparei-me com a mulher. Não uma mulher qualquer, pelo menos à primeira vista.

O garoto por trás do balcão trouxe o pingado e o pão de queijo. Perguntou se eu queria mais alguma coisa. Disse-lhe que não, obrigado, então ele virou-se e foi atender outro cliente. Só então percebi a mulher do lado oposto do balcão, aparentemente sorrindo para mim.

Nesse exato momento, como sempre acontece na melhor parte dos sonhos, o celular tocou e tive que atendê-lo.

Era minha esposa querendo saber se eu poderia passar no supermercado e comprar absorventes para ela. Sempre compro, mas com um pouco de constrangimento, como se estivesse invadindo o espaço alheio, como se somente mulheres pudessem estar ali analisando os pacotinhos de cores variadas. Sempre compro, mas pego e saio logo — imagine um amigo, desses bem sacanas, me surpreender no exato momento em que estou escolhendo o produto feminino! Minha esposa explicou o tipo de absorvente, com asas e noturno, disse ainda qual a marca, e fui gravando tudo de memória, mas nem precisava, já estava habituado, fazia aquilo sempre.

Eu havia me afastado um pouco para que ninguém ouvisse nossa conversa, minha esposa fala alto ao telefone e creio que certas coisas os outros não precisam ouvir. Antes que emendasse outro assunto, desliguei o celular e voltei meu olhar para o lado oposto do balcão. A mulher já não estava mais lá.

Busquei-a ao redor, como uma câmera que gira fora de controle, mas foi em vão. Num passe de mágica, assim como havia aparecido, a mulher sumiu.

Parecia até que minha esposa havia adivinhado o perigo rondando próximo e ligara exatamente para desviar minha atenção. Quase sempre ela faz isso. Coisas do seu sexto sentido. Ou então instalou em mim um chip que a permite rastrear cada ação que executo ou desejo que aflora no meu corpo.

Pensei em perguntar ao atendente se havia visto o rumo que a mulher tomara, mas uma luzinha acendeu-se em minha mente alertando-me para que não o fizesse: imagine se a mulher fosse assaltada, violentada ou morta horas depois?! Obviamente, eu seria o primeiro suspeito.    

Então pensei em sair logo à procura da mulher, mas lembrei-me de que ainda nem tocara no pingado e no pão de queijo. O pingado estava muito quente, não dava nem para tomá-lo de uma vez só. Pelo jeito, tudo conspirava contra o meu desejo. A mulher, que eu vira meio de relance, num clique rápido dos olhos, talvez já tivesse se misturado à multidão lá fora, no imenso corredor entre o Conjunto Nacional e o Conic. E como eu não havia tido tempo de fixar com nitidez os seus traços faciais nem o tipo de roupa que estava usando, — tudo ocorrera com uma rapidez impactante, dessas em que os olhos fotografam o objeto em pleno encanto, deixando de acentuar detalhes imprescindíveis — talvez nem conseguisse mais distingui-la na miríade de mulheres que iam e vinham segurando a bolsa made in China ou falando apressadas ao celular.

 Se eu fechasse os olhos e os reabrisse de chofre, a mulher reapareceria do outro lado do balcão? Tentei, não sem antes me sentir ridículo, e nada aconteceu. E se a imagem da mulher que estivera há poucos ali, falando com o jovem atendente, tivesse sido só uma projeção dos meus mais inconfessáveis desejos? O que eu vira, como numa projeção de slide, fora, provavelmente, um registro do meu subconsciente. Tanto que, se me perguntarem a cor da pele da mulher, eu nem saberia defini-la agora. Não com exatidão. Penso, num primeiro instante, que era negra, e esse foi o detalhe que me chamou a atenção, a cor e algo de forte e firme no modo como olhava para o atendente. Não, estou acrescentando detalhes que de fato não vi. Poderia ser branca, ou de uma cor intermediária, há no Brasil essa gradação de cores da pele, uma confusão de tipos, como posso saber a essa altura a cor exata da mulher? Era muito bonita, é só o que posso afirmar com absoluta certeza. E o sorriso...

Comecei a suspeitar de que, mesmo à distância, minha esposa confundia meus pensamentos. Estaria orando naquele momento e rogando para que algum santo (como um deus grego) interferisse, embaralhando minhas ideias? O que ela fazia (supunha eu) era agir antecipadamente ao que poderia acontecer assim que eu dobrasse uma dessas esquinas da vida. Antecipava-se ao improviso, ao jazz cotidiano.

Era isso mesmo ou eu estava superestimando a sua perspicácia de fêmea?

Peguei o troco, agradeci ao caixa (não abro mão dessas delicadezas) e saí ziguezagueando por entre a multidão que já lotava o shopping.  Lá fora, na calçada de frente para a rodoviária, vi o topo do Congresso Nacional e um céu muito azul às onze da manhã. Atravessei a pista e corri para o carro. A sensação era de que, ainda naquele momento, cada passo meu estava sendo monitorado por uma câmera ou coisa parecida.

 

 
 
junho, 2013
 
 
 

 

Geraldo Lima (Planaltina/GO, 1959). Professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira da SEDF, escritor, dramaturgo e roteirista. Vive em Brasília/DF. Em 1984, foi o vencedor de um dos mais importantes concursos literários do país, o Concurso de Contos de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Em 1987, ganhou o Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, que resultou na publicação do seu primeiro livro, A noite dos vagalumes (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, FCDF). Publicou, ainda, Baque (contos, LGE Editora/FAC), Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora), UM (romance, LGE Editora/FAC) Trinta gatos e um cão envenenado (peça de teatro, Ponteio Edições) e Tesselário (minicontos, Selo 3x4, Editora Multifoco). Tem três peças escritas: Error (encenada pela Oficina do Teatro de Periferia, 1987), Trinta gatos e um cão envenenado (da qual foi feita a leitura dramática na 5ª Mostra de Dramaturgia de Brasília, nas Quartas Dramáticas na UnB e na 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, em Brasília) e Enquanto tudo se desmorona ao redor (inédita). Tem textos publicados em antologias, jornais, revistas impressas e eletrônicas, sites e blogues. É, atualmente, colunista dos sites O Bule, Dona Zica tá braba e Portal Entretextos. Colabora com o Jornal Opção, em Goiânia, e o Jornal de Sobradinho, em Brasília. Mantém o blogue Baque.
 
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