©roberlan borges
 
 
 
 
 
 
 
 
 

carnaval 1


você acha que está pronta?, perguntou. apenas olhei para ele como dissesse estou madura feito a maçã que criou o inferno. aquilo era eu: a nudez de uma mulher que estava por baixo da nudez dessa mulher. acordo. num cemitério.


acordo. num cemitério. todos os que somem um dia estiveram aqui. que horas são? o sol responde. é a rodoviária ali do outro lado da rua? estou assim: de maiô. às cinco da tarde. confirmo agora com um homem que passa levando um skate. enojado, ele me responde enojado. em que cidade estou, moço? o homem já não me escuta. caminha rápido, digo, para um homem que manca. e o céu não querendo ser cinza nem azul.

 

com dez mil leões no cabelo, a dor sem sombras


acordo acordo. fedor de álcool e suor. vem do grupo de pessoas dormindo ao meu lado. a minha bolsa. não é travesseiro não, vadia. tiro debaixo de sua cabeça com cuidado. a calçada vai. acordo. são tantas garrafas que mal posso contar. ardem meus olhos, lesmas no sal. pego a bolsa ou não? é minha, deve ser. acho que caminho. chego numa avenida. é a.

 

a dor sem sombras e sua lã sem derme


escuto um rádio e o locutor. vem da portaria do prédio azul. detesto futebol. sensação angustiante que a narração dentro do final da tarde é dentro da cidade vazia. conheço bem este desamparo e o nome que lhe dei.


caminho, nem sei se avanço. a bolsa. ah, quem sabe encontro meu celular. devo ter um, todos tem. abro ou não a bolsa? abro. e as mensagens não estou pronto, amor, para sob a chuva adentrar o bosque verde musgo. mas vou. sou um jardineiro de livros. vou... até a cozinha. as frutas estão amadurecendo, hoje não me apetecem. suas mensagens chegam pelo celular: facadas de afagos.


abro ou não a bolsa? se não for minha... meto a mão no fundo: uma faca. caminho. não reparo se acordada. preciso ir para casa. minhas virilhas doem. e os peitos. estou ferida. este barulho no asfalto. onde moro? meus pés são cascos.

 

pude lamber sua cara mergulhar na claridade dos raios solares de álcool


agora lembro. é. com a faca limpei peixes ontem. onde foi quando? no jantar, isso. estava preparando o jantar. um peixe falou comigo você é melhor cuspindo fogo.

agora não lembro mais


já sei quem sou. e o peixe? nada. sou uma desistência, um acidente. um deserto. e o peixe o peixe o peixe é. a minha verdade não estou nem aí. já sei. o peixe falou como se as facas não fossem os peixes mais macios que a carne sabe engolir.


oito quadras conto na avenida, uma se abre para a outra, e outra. e aqui estou reconhecendo este lugar. a placa é explícita: Café do Teatro. uma festa a fantasia, ah. por isso estou vestida assim. claro. quando foi ontem? o peixe estava comigo. tinha mais alguém. quem? e o peixe pergunte à sua cidade, ela pode dizer.


preciso ir. minha casa.


reze

preciso dela. por aqui? vou. subo a rua ou não? faz sol, nesta rua não. nesta rua a tarde tem a cor dos paralelepípedos. eu conheço você, rua. reze, a rua diz sarcasticamente. já fomos apresentadas. temos vícios parecidos. já andei por você que. que alegria que tristeza. que alívio. que merda fui fazer? você aparece na minha frente, você é a fumaça. na bolsa, o celular apita mensagens atente para o rastro do homem-gosma e saberá até onde consegui ir, gostava de ser suas coxas para fazer inveja às outras moças. penso nas frutas, se soubessem que apodrecerão, bem antes nos implorariam socorro: come-me, por favor.


subo a rua. batuques. sei que subo na direção da música.


a dor sem sobras, em quem me farto?


batuques. subo, subo, subo a rua. chego. sei que chego. numa espécie de fonte de fogo. centenas, talvez milhares de pessoas. roupas coloridas. o baile é de máscaras. homem que é mulher que é homem. que bom que veio. rio um pouco envergonhada. que bom que vim. devem estar me confundindo com alguém.


sei que chego sei. as pessoas comemoram a minha presença. de onde me conhecem? quem vai cantar no trio-elétrico? tirem uma foto minha. olham para mim como eu fosse alguma coisa que tivessem tirado do nariz. quem diria, hein, de enfermeira a. eu sei cantar, eu sei fazer. acho que sei. todo mundo sabe. talvez. mas. será?


lagarta e códigos de vozes em choque

 

avisto alguém que conheço. sim, não. penso conhecer. não estou convencida. certeza, é ele. não nos vemos desde. é ele? o próprio.


encosta na minha carne doendo. mania que o coração tem de falar comigo: uma voz no tempo. prédios sobre a face da Terra não existiam e roxo queria dizer adoro, sou uma fanática lambe minha teta, a esquerda, sim. conheci um poeta. acho que dormi tempo demais dentro de seus poemas. e o bicho roxo poeta encanta-me ó frase que indaga, dá-me a exasperação da saudade de nós naqueles que amamos. e eu. conheci cada lágrima é uma lâmina que eu choro um poeta. e o nojento roxo não tem o menor constrangimento, é abundância. e eu. conheci um poeta quem não conheceu? aceno.


aceno. é ele mesmo no meio dos foliões. (foliões... estranho, esta palavra não era para estar aqui). ele vem na minha direção. está tão perto ela me olha sem entender. experimenta meu rosto com as mãos, a barba de pregos. diz meu nome e meu nome é outro. me chama por esse quem sou eu. pergunta se quem está em sua frente é o de sempre. não, digo eu. quem então? quem você quer?, pergunto. outro, diz ela. que seja, digo eu. e então ela, menos amarga: você não é... mas está aqui.


vou encostar nele com a minha mão. não o alcanço. ele continua se aproximando. me sorri. abro a bolsa sem dar para o ato. ele está tão longe. abro abro abro, sei o que estou fazendo. mas não hoje, hoje não, meu Deus, o quê? estou desesperada, por que fiz isso comigo? enfio a mão na bolsa, aperto com minha garra a faca, sou dela como o osso é do cachorro. ah, querido, desculpe estar te conhecendo agora. e ele, o não estou pronto de sempre, o a cinza chuva me venera de sempre, o a neblina cria esconderijos no ar de sempre. e eu você sabe como nunca me destruir. e aí, ah, nos beijamos.


nos beijamos, olhos fechados, os lábios da faca. abro os olhos. além de mim, não pode ser um cemitério, ninguém no Largo. é inverno. meu maiô... rasgado. chove. tenho um peixe morto na mão. o vento, rascante gemido de uma cuíca.

 

 

 

 

mão

 

o escritor não está salvo se não tem porque contar sua noite quando a manhã chega.

 

antecipar a velhice, como experimento. por alguns dias experimentar ser idoso. voltar a si antes que seja tarde demais, quando já for.

 

se sou alguém, sou alguém com uma pata de toupeira no lugar da mão. e adquiro completamente estrutura por demais grotesca nos dias em que sou obrigado a dedicar cem por cento do meu tempo ao trabalho burocrático. após tão dolorosa deformação, quando a pressão passa e me é permitido relaxar, imediatamente sou devolvido à forma humana. porém, minha garra peluda e dura, a fétida mão que escreve, permanece imutável em tais características. quase sempre me envergonho dela. parece que nunca vou me acostumar. detesto seu cheiro e voracidade. sei que assusta a todos.

 

cruzo o centro. chove e o branco e o cinza a emergirem dos livros de sangue do vovô vampiro. e os sons das partituras do Bento Mussurunga esquecidas nalguma gaveta emperrada nos porões de poeira e fungos da Escola de Belas Artes. ainda, os sussurros de cor sépia que se apalpa em ruas estreitas e úmidas, a São Francisco, onde se arrastam correntes das Iluminações, uma Paris do tempo em que ainda cheirava a estrume das montarias e carroças e as horas eram marcadas pelo sino das igrejas. meus olhos chupam este cinza e chuvoso cenário de cafés, confeitarias, alfaiatarias, chapelarias, charutaria. e as insondáveis sarjetas dos olhos mostarda de um pobre diabo ao final da tarde a estipular quando termina o turno das atrocidades diuturnas e cai maciadocicada a treva. chove o inverno porque convém, aliás, aos condenados em suas prediletas horas.

 

e tem este velho poeta. só ele pode me ajudar. só ele pode fazer operar em mim a cirurgia que me exaspera.

 

vai ver o velhote do décimo sétimo. enfraquecido, doente, curvado diante de tudo, me recebe. ele diante do velho preciso de um favor. pois não, filho. o senhor coleciona armas. estou ouvindo.

 

não dá para saber se é um sorriso o que tem na cara. há aqueles que sorvem catástrofes feito sorvetes sorvessem. abre a porta e minha vida foi arriscar tudo como pisasse em gelo fino sobre o lago frio. nos dias que correm, penso, preservado reformado limpo o tempo todo, nada é mais ruína, só o poeta. seu escritório tem grossas grades protegendo a porta. estamos em horário comercial. a porta e a grade, abertas. vejo seus pés só com meias. os sapatos de couro ao lado. que bom, ter uma mulher bonita aqui. rio, pois sou um homem. além de nós dois, está a Esperança. isso, entre nós a Esperança: o frio gagueja, pregos são inquilinos de seus olhos. olhos... hum, olhos, diz o poeta, ontem tive vontade de fritar os meus, eles e a língua em óleo podre, mas a Esperança, obrigado querida, não permitiu tamanho desatino.

 

olhos, penso eu e enxergo bem a Esperança. como se prenhe dos pavores gelados da morte, a Esperança, serzinho menor que esta joaninha, tivesse vindo para debruçar o poeta no parapeito do abalo sísmico de si mesmo. do poeta, conheço o seu desejo fundo de ser bom. que anjos olham dos olhos de um homem caído? o filho (travesti no motel impessoal a recordar o suburbano pai) está longe. a mulher da sua vida, hoje anciã no asilo São Vicente de Paula a mascar a dentadura do tempo em que foi alegre e cobiçada. e ele, só mais um que rememora com fotografias da família e ninguém ama sozinho, é ilusão o que não esqueço, o resto foi real, a memória resiste na umidade, no mofo que agarra onde pode, a memória, falsificadora de quadros de água, não empoça — onda que bate na orla e desmancha, esquecimento. o poeta é todo ele esquecimentos, o que ama está diariamente sendo comido pelos cardumes de peixes da mente. então penso: ele está mesmo certo, pois nem é estourada feito a luz a memória, nem completamente escura, pode que um espelho estilhaçado: grãos do indefinível, fagulhas de universos. necessário é ir aonde somos ínfimos, olhar cada pedaço isoladamente, quem sabe, apalpar algo do que um dia fomos sem comparação. lembrar não doeria se a lembrança não aprisionasse o que esquecemos. o desespero da memória é reinventar esquecimentos. sim, pois o futuro extremo é o fogo ou a terra com suas bibliotecas de ossos.

 

cadê o Dinheiro?, quer saber o velho poeta. Dinheiro, animal roxo de espasmos. Dinheiro, animal aberto de gritos. Dinheiro, peito de cimento. ele diz é preciso fazer mais uma vez a alegria, mesmo com Dinheiro, sucata ideológica, franja na testa do búfalo, feridas em seu esôfago, tudo vira sopa, mas mesmo assim, que a alegria.o velho não é direto. meus olhos passeiam pelas paredes carcomidas da sala abarrotada de pastas e caixas de arquivos. daí tiro a carteira do bolso e abro. conto as cédulas, em seguida alcanço o maço ao velho. ele pergunta se minha sócia (Esperança?) é casada. meu filho também não é. seu filho trabalha aqui com o senhor?, pergunto. espanto-me um pouco, pois há muito tenho sido mais calado que os mudos. é bom ouvir minha voz. esqueço que sei falar. nunca lembro de ser em voz alta. a mãe dele se incomoda, viu, a coitada sofre de pressão alta, qualquer dia cai dura. a mãe dele? a mulher do Asilo que não é. mas então quem, se o velho é viúvo, se dura já caiu tem muito tempo, possivelmente, a mãe do filho, o travestido. o senhor pode me dar um recibo? claro, o recibo, repete o velho. e procura com os pés os sapatos debaixo da mesa. ele arfa. enquanto levanta da cadeira.

 

isso, o velho poeta, ele levanta da cadeira, corpanzil de quase dois metros de altura e larga estrutura. lento paquiderme sem idade. resurge de dentro de um dos arquivos. vou mostrar o meu tatu, ele tem uma machadinha reluzente na mão. é ela, penso, a que será minha. ele diz enquanto acordamos sob o sol, é preciso fazer com fúria, é preciso limparentrar no chão com o olho. mas eu só vejo o que se mostra. nada mais terrível. penso: quem vai morrer de quem, eu dele, ele de mim? pobre criatura de Deus. os poemas que fez, sangue a pingar de seus afagos. ser feliz na fúria, diz o velho, juiz a extrair duras falas como unhas dos próprios pés arrancasse. olho novamente para baixo da mesa, o tapete me enoja. o cabo é feito de casco de tatu, diz e depois já esteve fuça a fuça com um bicho destes?

 

inventa (o texto inventa) que é um velho sozinho. um mosquito o acerta na panturrilha. ele deixa que beba o sangue e vá embora inchado. poderia tê-lo esmagado, quis saber até onde iria. não me arranho, estudo o desconforto. igualmente toleráveis sejam as invisíveis lesões, veneno do passado, também alívio? por ser passado?. por que buscaria obter alívio? opção vã. a natureza nunca está parada. a dor, parede com infiltração, comichão a percorrer veias. o silêncio lateja e não deixa hematomas. se o mosquito tivesse bebido um pouco mais teria estourado a si próprio, mas soube a hora de parar (embora a natureza nunca pare).  resta-nos algum futuro, diz para si e ao mosquito. talvez o meu, de mão, seja mais trágico.

 

adoro o aço, diz o velho, tenho mais de noventa facas em casa. súbito, estamos eu e ele numa fazenda, de tocaia, espingardas em punho, com sussurros de vamos cercá-los e gestos circulares com o braço indicando as direções. conheço bem este tipo, o velho conversa, encanta os animais antes de abatê-los. adoro o aço e a pólvora, diz, também coleciono armas de fogo.

 

para a Esperança o hálito matutino é querosene. para a Esperança hoje é mais um dia de caça, matar outro leão. penso: mão, de adeus ao poeta. sim, adeus porque posso querer esquecer, mas se esquece por aí mais facilmente guarda-chuvas que amores. e se esquece, infinitamente, mais canetas que guarda-chuvas. mas eu não. eu sou o melhor em encontrar canetas para continuar escrevendo sob a chuva. posso querer esquecer, só que escrever é lembrar do futuro. talvez por isso, para ainda me ensinar algo mais, ele diz a idade é uma filha que tenho, e a manhã seguinte, sempre essa insistência de ressurreição.

 

sou uma mão horrível. sou uma mão que para nada serve. estou parecendo um baiacu pescado. ninguém quer comer um baiacu, o peixe mais nojento dos mares. penso nele morrendo fora da água. inchando e, depois de quase explodir em sua febre gorda, alívio, graças a seu aspecto repulsivo, é devolvido ao lugar de onde o tinham exilado. veja, não é só a beleza que salva. ao contrário, a beleza em alguns casos é mesmo capaz de assinar a sentença de morte. já a feiúra, que pode ser relativa, é sim do ponto de vista comum uma espécie de condenação, especialmente se a pessoa não está (mas quem está?) bem resolvida. no entanto, mesmo ela, a feiúra, pode salvar vidas. funciona mais ou menos como um final feliz entre os infelizes. decepe-me, maldito escritor. um baiacu na frigideira não é alimento, mas veneno letal.

 

a mão sua. lambo a palma salgada. olho para ela: as marcas, as linhas da vida que espantaram a Cigana que me quis ler. tenho uma machadinha comigo. lambo a lâmina. testo o corte de seu fio com a língua: suave. passo os dedos. as pontas se mancham de vermelho. a mão chora não faça isso comigo. cale a boca. não, eu imploro.

 

ele diante dele preciso de um favor. pois não, filho. o senhor coleciona armas. estou ouvindo.

 

escândalos são cuspidos. ferroadas de luz. choques fedorentos. pobre mão. com a esquerda, não aplico a anestesia. ela corre o lado direito do meu corpo. com a esquerda, a morta canhota que nunca falou, a canhota inábil. seguro firme a machadinha. respiro fundo. minha testa pinga. a camisa está molhada. a canhota, a única que não titubeia. é agora NÃO, grita a mão selvagem, apavorada. o golpe certeiro. o barulho de veias: ossos e cartilagens, plástico que se partisse. o sangue, terracota, ensopa a página amarela do caderno aberto.

 

 
 
abril, 2013
 
 
 

 

Luiz Felipe Leprevost (Curitiba/PR, 21/03/1979). É formado em artes cênicas pela CAL (Casa de Artes de Laranjeiras/RJ). Escritor, diretor teatral (Cia. Teatro de Geada) e músico. Produziu poemas, contos, novelas e dramaturgia. Autor do romance E se contorce igual um dragãozinho ferido (Arte e Letra, 2011). Também publicou os poemas de Ode mundana (Medusa, 2006). E os livros de contos Inverno dentro dos tímpanos (Kafka Edições, 2008), Barrasantipânico e barrinha de cereal (Medusa, 2009) e Manual de putz sem pesares (Medusa, 2011). Integra as antologias de poesia Roteiro da poesia brasileira, anos 2000 (Global Editora) e Peso Pena (Black Demon Press). Poemas de sua autoria foram publicados na revista Coyote, número 20. Tem contos publicados nas revistas Arte e Letra, Jandique e Lama 1 e 2. Entre peças teatrais encenadas: Hieronymus nas masmorras, O butô do Mick Jagger, Na verdade não era. No momento trabalha em sua nova novela, Dias nublados. Vive em Curitiba. Bloga em www.notasparaumlivrobonito.blogspot.com.br.
 
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