©jane fulton alt
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

A Escriba

 

 

A estrela entregou-se ao negrume das nuvens

E sucumbiu ao despenhadeiro da Finitude.

Antes, cuspiu o seu grito de fogo

Sobre o plúmbeo das águas,

Sobre a baía do espaço todo azul.

 

Enquanto a escrivã das coisas vãs,

Sem contê-las — as estrelas —

Tremia diante do leme sem controle.

E via içarem suas velas acesas

Sobre montanhas de cinzas azuis.

 

A escriba crivada de falas

Perece do silêncio das Constelações

 

E da hedionda mudez dos Astros.

 

 

 

 

 

 

Ácaros e Culpas

 

 

Eu descobri entre ácaros e culpas

Que não sorrio há muitos rios e embarcações.

O meu nome ficou entre o limo das pedras

E você seguiu sem mim em diáspora sem par.

Cavando velhos fósseis entre as lembranças

Dos remorsos que carcomem a seiva dos sobreviventes.

Deixando a herança inflada dos cansanções

E a ira das ressacas deixadas pelos olhos de Capitu.

 

Você seguiu mascando urtigas no meu velório.

 

E eu, como esta máquina de datilografia,

Estou entregue, há anos, ao desamor

Das coisas apropriadas ao Abandono.1

 

O meu sol, consolo não tem!

Nem manchas vermelhas sobre a pele,

Nem resfriamentos no inverno da carne,

Nem meras subjetividades de palavras vazias.

 

 

 

 

 

 

Acridez

 

 

A noite acortinou-se sobre o meu sorriso

E nada mais seria, desde então:

Comunhão de corpos, inclusão de membros,

Festejamento de carnes,

Nem mesmo amplidão de águas.

 

Vi-me no falecimento das ânsias

A sangrar sobre o vinhaço.

 

Corria mansidão sobre o meu desespero

E, em tempos desiguais, o querer perdeu-se

No despenhadeiro da distância.

O gosto perverso da separação

Ventilou minha boca de mulher que ama.

 

Ninguém viu o sabor na língua.

Ninguém viu o sofrer dos dentes.

 

 

 

 

 

 

Andorinha

 

 

As andorinhas existem!

Saíram das páginas do livro

E resolveram viver

Nas alvenarias

Do invisível.

 

Mas a tua ausência dentro de mim é puríssima dor.

Não há voo que dissipe minha esperança.

Nem vento, nem rosa, nem crença

Que suavize a melancolia parasita nos ossos.

 

Alheios desejos nos levaram

Para ilhas opostas:

Tu foste para Creta.

Eu, para o Crato.

E do anonimato dos dias

Tenho feito poesia secreta

E prosadura.

 

 

 

 

 

 

Crepúsculo das Vertigens

 

 

Ante o teu olhar de céu marítimo,

Cedo oferendas ao teu cinismo-seco.

Crepusculo raízes de verdades verdes,

E ainda assim, quero-te meu!

Apaixonado e obscuro-louco,

Encantador das minhas servas serpentes.

 

Mente quem olha em silêncio

Tua brandura!

És ofertado a escândalos de botequins.

Tens no nome um Império de mangues,

E no meu lodo escavas pepitas,

Pratarias de negra apanhada

Em arrecifes de ciúmes.

 

Vingo-me perante o ópio epiderme de teus olhos

E morro a cada romper de casco sobre pedras.

 

 

 

 

 

 

Diário da Separação

 

 

Ele vai e volta!

Cada vez mais perdulário dos meus perdões.

Cada vez mais disposto a cobrir de velários

Meus velórios matutinos.

Ele chega menino e se vai vilão,

Zorro assombrando minhas carnes.

 

Mostra-se quase factível de mudanças,

Mostra-se quase afeito aos meus caprichos de fêmea.

 

Inferniza minhas ínguas, lambe minha pelve:

— Perverso!

Deposita escarros nos vasos da minha Casa.

 

E vai-se, Tarzan depois da gripe.

Enredado em seus cipós,

Distante do chão-pergaminho

Das minhas Vertentes.

 

 

 

 

 

 

Embate de víboras

 

 

O meu corpo toma o teu,

Trama carnes novas dentro do teu,

E te alinhava na minha pele.

Fere velhas feridas tuas

E não mais regressa,

Deixando ao relento o teu ciúme.

 

O teu corpo vinha de sangue

O esmalte dos meus dentes.

Morde a maçã e diz malsã

Minha sandice de anemias.

 

Tu e Eu:

Adultério, torpezas e vilanias.

 

 

 

 

 

 

Esbeltez

 

 

A quem minha embriaguez seca,

Meus depósitos de pele crua,

Minhas vastidões interrompidas,

Meus abortos clandestinos,

E o meu destino de santa?

 

A quem ofertar minha Esbeltez

Sem alicerces, nem cárceres,

Nem desbravadas cercanias

Que alimentam a vitalidade

Da minha alma ainda à toa,

Na invasão das tormentas?

 

Equilíbrio algum

Invalida meus anseios.

 

 

 

 

 

 

Herdade

 

 

Adio os búzios ante a vastidão dos tempos

A fim de ocultar o que em mim

Será o nascer inadiável do sol,

Ou a cicatrização paulatina dos ferimentos.

 

És, em mim, a Herdade.

O feudo imensurável dos meus quilombos.

O abandono mais desatinado de mim mesma

E dos projetos de Ser que armazenei nos ponteiros.

 

Enquanto aguardava o despotismo

Do teu aferro à inércia,

E dizia dos teus erros apenas Pacatez

E dissonância,

Fincava no Desejo o meu deus de obstinações!

 

Adiava a Exaustão!

Afugentava abstinências!

 

 

 

 

 

 

Ílio

 

 

Osso meu,

Na ilicitude dos meus requintes.

Cravado em terreno fértil de flamas,

Abnegado esterco na orgia

Dos meus desacertos correntes,

Corpórea mácula na vértebra do meu querer.

 

Homem Ilíaco!

Indagam sobre minhas adegas

E meus repastos de fêmea acometida

Pelas danosidades da carne.

Indagam sobre minhas vestes e os meus vexames.

Apontam-me entre as professas

Enquanto devassam meus pergaminhos

De mulher conhecedora de homem.

 

Indagam sobre os meus tormentos

Indagam sobre certas Adagas

Fincadas no lastro da minha cama.

 

 

 

 

 

 

Inclemências

 

 

A pedra seca abriga resíduos

Fósseis da saudade extinta.

O tempo roga inclemências Ermas

Nas fibras do meu desespero.

E pinta dor de espátulas

No desconsolo das vésperas.

 

Diante destes navios,

Minha janela se cansa.

E eu, fruta peca,

Flor sem pétalas,

Coração de máculas,

Mergulho muda

Num mundo-mar de vastidões.

 

Cansei de ser triste

Cansei desta matéria

Que alimenta e devora

A Poeta,

A Porta da minha casa,

A Puta da avenida Sete.

 

Aos demônios o cacete

Dos homens demasiadamente

Homens!

 

Infensos à demência réptil

Da minha esperança Yerma.

 

 

 

 

 

 

Muda Nudez

 

 

Nem saberás da minha oferta de nudez muda

Nem que andei vestida de teus dedos no espelho

Nem que foi tua minha vulva absoluta

E o meu olhar mais caro de desejos.

 

Ando querendo horas com o teu silêncio

Sem que a cidade saiba do meu mutismo

Nem das páginas do meu calendário

Doadas ao tempo da tua confissão.

 

Sofro a secura dos dias sem as pedras

Do teu quintal de inventários,

E as Fedras que nascem em meus olhos

Jazem mortes tão tristes, tão tristes.

 

Vivem tão tristes nos subterrâneos

De um amor que mais se arrefece,

Quanto mais se ama em arrecifes.

 

Tudo por ti!

Por ti, tirânico espadachim dos meus tormentos.

 

Amor que nem Veneno mata.

 

 

 

 

 

 

Selva

 

 

Banho teu corpo de Deus

Nos cuidados dos meus caldos quentes.

Banho-te de Nardo, óleo das Olivas,

Aroma do Lótus.

Acendo-te incensos de mirra,

Cozo alecrim nas carnes para teu regaço.

 

Adianto os anos para perecer

Mais rápido de velhice

E encontrar teus dias

No crepusculário dos desejos.

 

Adejar de banjos e tulipas

Sobre nossa cama de incêndios.

Vivo à espera de dezembros que não chegam.

À espera de janeiros,

À espera de abris cheios de março,

À espera de maios nunca tidos

À espera de uns raios da Sicília.

 

E volto a rendar tua pele gasta

Com meus dedos de menina, Selva.

 

 

 

 

 

 

À Sombra do Divino

 

 

A quem dedicar versos, se estou só?

Ao cacto preso nos barrancos daquela estrada,

Ao assovio das antigas cantigas de março?

 

Ao namoro das esquinas noturnas

De apitos e gritos engolidos no silêncio?

Sou aquela moça da janela:

Sem namorado, sem amantes, sem projetos,

Sem teto, sem concretos fingimentos.

 

Se a poesia resolveu abandonar-me?

— Sim, desde então vivo à sombra do divino.

 

 

 

 

 

 

Tardo Amor

 

 

Tardo amor

A me conceder óbolos

Sem que eu os queira.

Eu, linfa, em tuas veias

A multiplicar meu desencanto

Em cada canto cauto

Do teu medo.

 

Herdeira de Heredera

Amante das fortunas vastas,

Dos horizontes, das eras vácuas

E distantes.

 

Eu, maldizida, malfalada,

Maldizente de almas fadadas

Ao infinito.

Morro num grito

Dentro do teu mudo peito.

 

 

1 BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 57

 

 

[Poemas do livro Alforrias. Ilhéus: Editus, 2012] 

 

 

 

 
 
dezembro, 2013
 
 
 

 

Rita Santana (Ilhéus/BA, 1969). Atriz, escritora, professora licenciada em Letras pela UESC. Ganhou o Braskem de Literatura para autores inéditos em 2004, com o livro de contos Tramela, pela Fundação Casa de Jorge Amado. Em 2005, participou da coletânea de prosa e poesia Mão Cheia com quatro escritoras baianas. Publicou os livros de poesia Tratado das Veias (As Letras da Bahia, 2006) e Alforrias (Ilhéus: Editus, 2012). Vive em Lauro de Freitas, Bahia.
 
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