escarafunchadores da poesia

 

 

poeta sem experiência comprovada em carteira

com algumas palavras para lhe dizer

que as coisas continuarão

encontre ou não você entre esboços/anotações

o mar que começou a cobrir tudo

com grande pressa com letras garrafais

você asfixiado em seu respirar

seu medo de grandes proporções

o mar que lhe roçou de leve ao passar

teria que lhe rebentar a cabeça?

 

 

 

 

 

 

breve relato de carreira

 

 

qualquer dia tenho que lhe contar porque eu não escrevia nada

deveria poder fazer isso sozinho escrever um poema uma carta

com a fina espessura das asas

às vezes a céu aberto às vezes

num ambiente fechado mas isso poderia ser feito eu deveria ter

feito como o profundo animal que sou com o cigarro aceso com

a pedra que se gastará na noite reordenando a vida que mesmo você

não mais reconhecerá

um dia tenho que lhe contar o que faz o artista trabalhar & o que faz o

seu carrasco

 

 

 

 

 

 

sobre anotações revistas para falar aos peixes ou às putas

 

 

mergulhados na piscina

não feito conserva ou picles

mas à sombra da penetrante língua da serpente

oceano não confinado entre quatro paredes

bem longe da costa & da borda

enlaçado à espiral com ênfase

nado-passo a mão na vulva

percorro seus caminhos

evoluo em meu estilo

crawl peito borboleta

a quem devo ser grato

pela ereção desse dia?

vivem os deuses acima dessas coisas?

que teus pentelhos despenteiem na água

desprotejam teu casulo?

não se deve pedir muito

não se deve pedir pouco

caso a estátua nade ou enferruje

vestida se dispa de seus espectros

mova cabeça & pescoço

desloque ombros: dilapide

 

 

 

 

 

 

ballet & metamorfose

 

 

minha mãe foi morar com outra mulher

um amor que estava já por aí ao ar livre

 

mas não se desejavam em segredo: em

segredo amar não é sempre o bastante

 

 

 

 

 

 

arco da histeria

 

 

parte de teu rosto lembra Clarice

que desceu ao inferno desfigurada

que rosto poderia ser sem dúvida teu rosto?

começa-se muito cedo a destruir a beleza

o céu índigo do deserto se torna negro

avança a um território proibido

 

escolhe o filho a própria mãe

ele a acha onde ela estiver

também tenta colher & pagar por um pai

numa declaração escrita-lida em silêncio

o pai está a caminho de ser uma coisa do passado

a mãe está a caminho de ser a erupção o terremoto

quem quer que se diga mãe de fato é a tempestade

 

 

 

 

 

 

teatro sadomasoquista de david hochney

 

 

dois homens deitados na mesma cama

dois homens mergulhados lado a lado na piscina

três pães no prato algumas maçãs sobre a toalha

girassóis ou antúrios duas alcachofras

cães à espreita da caça: amores raros

 

 

 

 

 

 

sempre fui louise bourgeois

 

 

quando meu pai morreu

emprestei a ele minha

melhor camisa/abrimos

a casa deixamos entrar

o ar/depois lançamos

suas cinzas no Danúbio

toda ocasião gostava de

lugares fechados/até sua

morte nunca o contrariamos

 

 

 

 

 

 

covil

 

 

se girar demais a palavra se rompe?

se parar que se fará com ela na garganta?

o que você quiser falar diga antes aos cães cobras pássaros

se você se esforçar as pedras anoitecerão mudas

 

 

 

afecções da boca

 

 

posso te mandar um livro?

sem resposta mandei

quatro histórias ao modo quase clássico

de Harold Brodkey lembras?

queria te acertar em cheio

pensava é cruel que ela exista

e não seja minha

esguia molde tulipa meia estatura

tua beleza me deteriorava

governava o mundo

sem que pudesse me esquivar

qualquer livro é bem menos que teu tipo

não vale o esforço de dias sem dormir

dá-se o trabalho de lavar palavras

num canto amargo da boca

ardilosa cova

o mar se esconde aí

máxima invisibilidade

segredo que depende de tanta coisa

 

 

 

 

 

 

um célini arrastando-se às três da matina

 

 

voltei ao mar marinheiro

num cargueiro vou dar

uma volta ao mundo

posso ajudar você a subir

a bordo como marujo

quem quer que tenha ido

Ícaro Ulisses Virgílio

sabe o espírito da coisa

escrever é não ter chaves

dos mares portos ilhas

périplo a esmo no pacífico

 

 

 

 

 

 

ao velho poeta

Max Martins

 

viver oitenta anos

não é mais do que uma aparição

esse ainda não é ele é um ícone

maço de cigarro com poema de impacto

pulmão devastado cérebro lesionado por um coágulo

a faca de Apolo prestes a descer

névoas de uma fotografia antiga

gritos do redemoinho

 

 

 

 

 

 

tive um caso com anne sexton

 

 

tive um caso com Anne Sexton

acho que foi o período da vida

em que ela menos foi triste

talvez mesmo estivesse alegre

experimentasse rir fumar falar

ao mesmo tempo

um esforço do amor

a que se entregou comigo

depois foi preciso escapar

de volta à poesia —

corpo espetacularmente nu

marcado pela vida

barriga & crânio abertos

 

 

 

 

 

 

nº 123 da fitzroy road

 

 

a porta era estreita negra

nem mesmo você a pode atravessar

chuva neve tempestade

o mal residia ali

antigo cão da família

depois de tudo você voltaria

rara intuição da surpresa

desperta de toda fadiga

em sua torção de sereia

 

 

 

 

 

 

imagens pesam mais do que o mar

Alessandra Negrinni como a vi em seus quarenta anos

 

 

ela não ri: move-se esquiva de um lado a outro

anda a casa como se fizesse fotos

pés trocados olhar confuso

faz pose pra ele pra o deter de quem?

fisicamente opostos & partidos

o mundo vira de ponta-cabeça

ele a olha com expressão vazia

voz baixa fala devagar

diz ter um problema enorme

precisa urgentemente viajar

ir ao mar ao fogo às nuvens

"ou quem sabe de um bom xampu anticaspa"

sempre diz isso pra fazer as pessoas rirem

ela não ri ele pergunta "por que você não ri?"

desde pequena que não sabe

rir nem dos pequenos dramas

"ria se alguém está sofrendo

perto de você — por causa de você"

pra ela o inferno é isso

ele nada sabe a respeito

não presta muita atenção

suspensa no ar sem deixar

as coisas como exatamente são

ela faz outra pose transfigurada

espera detê-lo a seu próprio enigma

 

 

 

 

 

 

eu queria estar com vocês hoje

 

 

ganhei coragem pra dizer a ela

não gosto de Cindy Sherman

prefiro Otto Stupakoff ou Larry Clarck

por uma razão bem simples

o mundo do homem em geral

tem menos constrangimentos

eles se dizem homens  & são

o que anelam ser

mulheres se põem a discutir

personagens a que se mesclam

auto-incluindo interioridades

dramas teses de todo tipo

brutos disfarces entre nós

 

eu prefiro Francesca Woodman

revoluteando o corpo cada vez

mais depressa

morta na sala: simples fácil alegre

ela se aproxima faz cintilar a cena

por danças palavras em conexão

parece querer estar comigo hoje

arfa precipita-se contra a parede

tenta vencer pela velocidade a dor

 

vê-se a câmera mexer — tensão dos

corpos à maneira do teatro de Artaud

 

depois dela nenhuma mulher pode

dizer "eu sou fotógrafa"

sem conhecer a bílis &

os rumores do gesto

sua espiral muito louca

 

sem aspirar ser cinema

sem soletrar literatura

 

 

 

 

 

 

na longa fila de autógrafos

 

 

comprei um livro semissurdo de poemas

sob a pele ele revolveu página-a-página

mas nada de poesia ele me disse

não houve entre nós cumplicidade

tudo que pretendia era "gritar um pouco" mais & mais

ao modo de um Bukowski sem nenhuma gota de álcool

tentando se safar duma crise hemorrágica

ou se desemaranhar de um casulo ou caixa

surdez do livro: tentar recuperar o fôlego

na pele de um animal de memória gasta

que nada escuta mas a tudo dá ouvidos

 

 

 

 

 

 

poesia completa com quem anda o poeta

 

e deslocamentos doem

D.H. Lawrence

 

tudo errado desde o começo

travessia assente em fragmentos

acasos    fissuras    interditos

tempo de embebedar cavalos

ganhar a vida com livros

objeto incerto de design

talvez eu venda sapatos

respire ciclópicos rastros

a cara enfiada em botinas

calçar a palavra não voltar atrás

 

 

 

[imagens  ©francesca woodman]

 

 

 

 

Ney Ferraz Paiva. Autor de Não era suicídio sobre a relva (2000), Nave do Nada (2004), Eu queria estar com vocês hoje (plaquete, 2012), e Arrastar um landau debaixo d'água (inédito). Participa da antologia de poetas brasileiros contemporâneos Em la outra orilla del silencio (Cidade do México: Universidade Nacional Autónoma de México-UNAM, Ediciones Libera, 2012). Colaborador da Revista Literária Polichinello. Reside em Belém. Bloga em http://www.hospiciomoinhodosventos.blogspot.com.br.